Foto:
Reprodução
O que o
procurador pastor tem a ver com a desmoralização do Direito?
Parece que
vivemos o apocalipse zumbi-jurídico (vejam — zumbis sempre estão em busca de
cérebros; em alguns lugares do Direito morreriam de fome..., como sugere o
brilhante filósofo Marco Casanova). Quando achamos que o estamos no fundo do
poço, sempre aparece uma camada a mais para cavar.
Parece que
perdemos o pudor. Desrespeitamos as leis e a Constituição e em lugar dela
colocamos nossas convicções políticas e/ou morais. Ou simplesmente as
convicções religiosas (falarei disso na sequência). Ou “só pessoais”. Assim
“tipo eu-acho-que”. Em todos os quadrantes. Ao mesmo tempo em que são liberados
grandes corruptos e corruptores, sob o mesmo ordenamento deixamos presos pobres
e esgualepados. Dia desses alguém me questionou: “Professor, o senhor quebrou a
cara. Dizia que la ley es como la serpiente; solo pica al descalzos (frase de
Jesus De la Torre Rangel que o senhor repete há tantos anos) e agora está vendo
os grandes irem para a prisão”.
Em resposta,
perguntei: será mesmo? Falemos dos indefectíveis irmãos Batista ou dos réus que
receberam liberdade no Superior Tribunal de Justiça enquanto esse mesmo
tribunal deixou presa uma mulher que furtou peito de frango e outros
quejandinhos. Desde quando as delações inverteram a frase que repito há tantos
anos? Na verdade, há uma esperta inversão ideológica nisso tudo. O futuro
mostrará isso. O episódio dos irmãos Batista é só a ponta do iceberg (veja-se o
lúcido texto da professora Érica Gorga, no Estadão). Temos quase um milhão de
presos. Destes, não mais que 0,001% são da "lava jato". O resto não
tem nem direito à delação. E nem a benesses.
Mas quero
falar de outro poço. O do moralismo que fez uma fagocitose do Direito (sem o
benefício desta). Em nome da tese moral-utilitarista de que os fins justificam
os meios, fizeram delações à revelia da lei (veja-se o texto de JJ Gomes
Canotilho — ver aqui). Todos os dias as teses morais fazem predação do Direito.
Em vez da boa doutrina, jurisprudência e, enfim, da lei e da Constituição
Federal (peço desculpas pode me referir a essa coisa demodê chamada “Direito”),
usa-se “justo concreto”, “minha consciência”, “minha convicção”, “meu
iluminismo”, “o réu merece” etc. Atenção: até a revista Veja, por
arrependimento ou oportunismo, reconhece que houve ilegalidade na interceptação
da conversa Lula-Dilma, na sua divulgação (na época, a revista pensava o
contrário) e agora no caso Reinaldo Azevedo. Nome da matéria da Veja: Estado
Policial! Bem sugestivo!
A última
(mais recente) pataquada moral(ista) veio do Mato Grosso do Sul, em que um
procurador de Justiça, a partir da convocação feita pela Promotoria da Infância
e Juventude aos pais de alunos para comparecimento sob pena de multa e prisão
para assistirem a ele, procurador, em estádio com 10 mil pessoas, proferir
palestra. Ocorre que a tal palestra esteve eivada de pregações religiosas, além
de decretar a cidade de Dourados “capital de Cristo” ou algo assim. Vejam a
matéria (ver aqui). Já li, inclusive, a defesa que um colega seu fez, dizendo
que a oração foi pequena e apenas ao final. Bom, não é o que a reportagem e as
filmagens mostram. Além disso, o promotor (ler aqui) não explica a convocação
para o comparecimento ao Estádio sob pena de multa ou prisão. O Ministério
Público esticou a corda, pois não?
Despiciendo
fazer maiores criticas à atitude do procurador. O Conselho Superior do MP por
certo não deverá dar uma medalha ao colega. Espero que não. Moralizar o Direito
(isto é, fazê-lo soçobrar diante de raciocínios morais) por vezes é,
exatamente, aquilo que desmoraliza, se me entendem a ironia e o jogo de
palavras.
Vejam lá.
Não discuto aqui os bons propósitos do membro do Ministério Público. A evasão
escolar é um problema sério e o crime de abandono intelectual não é
inconstitucional. Agora, constranger pais (relapsos que sejam) a, sob vara,
acompanhar uma doutrinação religiosa, certamente não é o caminho. “Ah,
professor, mas os resultados são bons.” Pois é... o Direito não é exatamente o
lugar em que o “argumento do resultado” tem preferência, não é mesmo? Ou bem o
poder público tem um poder, ou bem não o tem; ou bem o cidadão tem um direito,
ou bem não o tem. O código do Direito é, por assim dizer, binário. Eis o fórum
é do princípio. É preciso, portanto, ajustar os bons propósitos do
Procurador/pregador às premissas e preceitos de um Estado laico e de um Direito
Penal conformado à Constituição (ou alguém entende correto que um pai que não
comparecesse ao evento esse — sem “justificativa” (sic — aliás, que
“justificativa” seria suficiente para o não comparecimento? Quem sabe a
laicidade?) respondesse criminalmente só por esse fato?).
Na verdade,
o que devemos discutir não são essas questões pontuais com as quais encheríamos
páginas e páginas de bizarrices que estão se tornando “normais”. Isto é mais um
sintoma da lambança que se fez do Direito. Como exemplo, lembro que o Brasil
arde e o panpenalismo avança até para cima das crianças e dos seus pais.
Enquanto isso, alguém lança um livro chamado Direito Penal Superfacilitado.
Depois dizem que é implicância minha...
Teoria
política do poder substituiu o Direito: só os fortes sobrevivem?
Como
chegamos a este estágio? O que fizemos com o Direito? Transformamos o Direito
em um jogo de poder. Isso. A questão é saber: a) ou nos dobramos e dizemos
“isso é assim mesmo e vamos achar um modo de ser mais esperto que o outro” ou
b) voltemos a estudar Direito (e direito) e enfrentemos de frente esse monstro.
Sim, porque
se pensarmos que direito é isso que está aí e interpretação é um ato de vontade
(como dizia Kelsen no oitavo capitulo da TPD, mostrando todo seu relativismo),
então estaremos fazendo uma coisa pior ainda. Sabem qual é? Só os fortes
sobreviverão.
Se o Direito
se transformou em um estado de natureza, em que quem é mais esperto no seu agir
estratégico ganha, então deixemos de lado qualquer pretensão teórica. Ou, ao
menos, desistamos da teoria normativa — o que não é um problema menor; venho
dizendo há tempos que o principal papel da teoria do Direito é, exatamente,
fornecer as condições de possibilidade para tornar concreto o programa
constitucional, para concretizar direitos fundamentais. Do contrário, façamos
sociologia ou ciência política, disciplinas certamente tão relevantes quanto,
apenas que não são... Direito!
O que
aconteceu é que institucionalizamos aquilo que hoje se faz nas pobres
faculdades de Direito de Pindorama: estudar uma frágil teoria política do
poder, pela qual o Direito é só vontade (de poder) e opinião pessoal. E, é
claro, só se darão bem os mais fortes. É Behemoth engolindo Leviatã (lembremos
que um dos sentidos do Leviatã de Hobbes é o de um Estado garantidor da paz,
enquanto o Behemoth quer dizer o contrário).
De minha
parte, penso que devemos estudar Direito e — sem fazer provocação ao Procurador
pregador de Mato Grosso do Sul — espalhar a palavra “doutrina”. Só ela poderá
nos salvar. Só a Constituição salva. Aleluia, irmãos.
Minha
reflexão: nestes tempos de grave instabilidade, creio que, como Ulisses aos
mastros, estamos, os concidadãos, ao império do Direito. É o apego pelo Direito,
é o cuidado com Ele, que pode nos guiar por um bom caminho. Tudo parece cinza e
os sólidos, como poucas vezes na nossa história recente, dissolve-se pelo ar.
Estamos sob
teste. E os juristas temos um papel nessa conversa toda. Por isso, ofereço minha
dose de prudência constitucional, recordando uma frase que disse e escrevi em
1989, no primeiro aniversário da Constituição de 1988: “Constituição quer
significar constituir-a-ação”.
Do GGN