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quinta-feira, 25 de maio de 2017

O ataque a Reinaldo Azevedo mostra justiça-espetáculo que se propaga no Brasil a parti da lava jato

O colunista Reinaldo Azevedo é o mais novo exemplo de injustiça contra jornais e jornalistas, situação típica de um quadro de avanço de um estado de exceção.

Se for para falar de casos nacionais, vamos lembrar de Edu Guimarães, alvo de uma condução  coercitiva escandalosa na Lava Jato.

Se for para ficar em Minas Gerais, a perseguição a inúmeros profissionais de imprensa que ousavam criticar desmandos do outrora todo-poderoso Aécio Neves constitui um fato tão banal que deixou de ser notícia.

Já no período chamado de interinato, Michel Temer consumou uma intervenção em grande estilo na EBC. Destituiu um presidente com mandato legal de quatro anos, ponto de partida para o esvaziamento de um jornalismo que fazia o contraponto ao pensamento único. Entre outras coisas, nunca deixou de denunciar os preparativos de um golpe de Estado em curso.

A perseguição a jornalistas tornou-se possível no interior de uma paisagem mais ampla no Brasil desses tempos, quando se assiste à caçada  a Luiz Inácio Lula da Silva e já se viu a prisão absurda José Genoíno, um dos mais decentes parlamentares da geração que produziu a Constituição de 1988. Claramente injustiçado, condenado a penas duras, sem relação com qualquer denúncia que tenha sido comprovada, a situação de José Dirceu encontra-se no mesmo quadro.

A injustiça contra Reinaldo Azevedo consistiu em divulgar trechos de uma conversa com Andrea Neves, irmã e personagem importante do grupo político de Aécio. Um diálogo profissional e pessoal, típico das relações entre um jornalista e sua fonte.

A divulgação de conversas privadas, sem relação com qualquer fato jurídico sob investigação, faz parte de uma velha técnica stalinista de desmoralização de personalidades públicas que incomodam aparelhos de poder.

Foi descrita de forma genial pelo tcheco Milan Kundera em A Insustentável Leveza do Ser. Kundera mostra por que a construção de uma ditadura imposta pelos tanques do Pacto de Varsóvia -- responsáveis pelo esmagamento do projeto  democrático da Primavera de Praga -- tinha necessidade de humilhar e desmoralizar personalidades ligadas ao governo deposto. Era uma forma  de tentar destruir a memória da população.

No Brasil de nossos tempos, Marisa Letícia foi alvo de uma operação particularmente cruel na operação Lava Jato. Em abril de 2016, Sérgio Moro autorizou a divulgação de diálogos da mulher de Lula com um de seus filhos, numa conjuntura em que a desmoralização sem limites da figura do presidente era essencial para impedir sua posse como ministro-chefe da Casa Civil de Dilma.

É mais que provável que Reinaldo Azevedo tenha sido gravado por acidente. Havia uma escuta sobre as conversas de Andrea Neves, que captou centenas de diálogos --pelo menos um deles com Reinaldo Azevedo. É evidente que outras conversas, com palavras e argumentos típicos de quem não imagina estar sendo gravado, também foram grampeadas. Talvez estejam por aí, para serem vazados em outra oportunidade, ainda que o ministro Edson Facchin, do STF, tenha tomado medidas para reforçar o sigilo dos áudios relativos a JBS.

A pergunta é saber quem tomou a decisão de publicar a conversa, em vez de simplesmente destruir o material, como determina o regimento da Polícia Federal.

A tradição nacional manda culpar os guardas da esquina e pedir desculpas sempre que vítimas mais graúdas são atingidas, gerando  uma reação inesperada que a tentativa de denúncia num  escândalo em si.

Num caso obviamente político, que só pode ser produzido por quem possui estatura para agir nesse patamar, no qual as  decisões podem trazer louros ou pedradas, não custa lembrar o lugar de Reinaldo Azevedo na conjuntura de 2017.

Conservador até a medula, produz textos e comentários que fazem uma  crítica feroz -- a meu ver inteiramente errada e superficial -- aos governos Lula-Dilma e às políticas progressistas em geral. 

Ao mesmo tempo, não deixa de denunciar -- e isso se tornou cada vez mais claro com o passar do tempo -- os abusos e desvios que ameaçam o Estado Democrático de Direito. Não é uma crítica nova mas Reinaldo demonstra conhecimento de causa ao empregar argumentos que são um ponto fora de curva num ambiente político polarizado.  

Em seus direitos como jornalista, Reinaldo Azevedo deve ser defendido sem poréns nem todavias. Sua postura diante de direitos e garantias faz dele um adversário a ser respeitado.

Deve ser combatido e derrotado no plano das ideias e da luta política -- e não por medidas de intimidação.

(Não custa lembrar que seria um combate com "paridade de armas" se a mídia não fosse um latifúndio de grandes famílias alinhadas com suas próprias conveniências e interesses, o que permitiria celebrar em bases concretas a inesquecível frase de Voltaire: "Discordo inteiramente do que dizeis, mas defenderei até a morte seu direito de fazê-lo").   

O debate sobre o lugar dos jornalistas na conjuntura atual está longe de resolvido, contudo. 

Há muito tempo nós sabemos da importância da  mídia e de seus profissionais para a justiça-espetáculo. É um dos fatores essenciais.

Os leitores deste espaço recordam que, no texto clássico sobre a Operação Mãos Limpas, inspiradora da Lava Jato, Sérgio Moro fala da importância de conquistar a simpatia dos meios de comunicação, indispensável para deslegitimar personalidades que podem ser alvo de denúncias de corrupção. A razão é simples:  frequentemente, os alvos são lideranças reconhecidas pela população e é preciso que a mídia ajude a quebrar o apoio de que desfrutam.

Avaliando as várias etapas da Mãos Limpas, que incluíam vazamentos através de jornais e revistas classificadas como "simpatizantes", o juiz sublinha: "a deslegitimação, ao mesmo tempo em que tornava possível a ação judicial, era por ela alimentada."

O que se descreve, aqui, não é o jornalismo como um meio de apuração, acumulo de conhecimento e crítica social, capaz de expressar livremente os vários pontos de vista de uma sociedade. O que se enxerga é uma  força instrumental, um braço auxiliar de ações judiciais -- desprovido de crítica, de distanciamento.

Num artigo publicado hoje pela Folha de S. Paulo, o PGR Rodrigo Janot dedica quatro parágrafos para falar sobre o tema.

Sem dar nomes, Janot rebate críticas de um "editorialista"  de um "importante veículo de imprensa" para fazer a defesa do acordo de delação premiada com Joesley Batista e o grupo JBS. Não vou discutir os argumentos de Janot.

O simples fato do Procurador-Geral da República dar-se ao trabalho de formular uma resposta de próprio punho é revelador da importância que atribui ao apoio da mídia.

A reação dos mesmos veículos é um sinal de que os tempos de adesão automática parecem estar chegando ao fim.

No dia anterior, o  editorial "Sem Rumo", o Estado de S. Paulo bateu com força.

"São um insulto, aos brasileiros de bem e um escárnio da Justiça, os termos da colaboração premiada assinada entre o senhor Joesley Batista e a Procuradoria Geral da República."

Numa crítica direta, personalizada, o editorial afirma: "há mais do que indícios de que o sr. Janot já não sabe aonde se situa o norte firme da lei e da Constituição."

Na mesma edição da Folha de S. Paulo que publicou o artigo de Janot na página 3, saiu, na página 2, um editorial ( "Acordo açodado") que classifica a divulgação dos diálogos de Reinaldo Azevedo como "violação ao princípio constitucional". Numa avaliação mais abrangente sobre o acordo com a JBS,  o texto também afirma, a título de conclusão: "Conseguiu-se assim ampliar o sentimento de que as autoridades cedem as tentações do arbítrio, da onipotência e da precipitação."


É obrigatório recordar que, ao aproximar-se do PSDB de Aécio Neves e José Serra, do PMDB de Michel Temer e das reformas de Henrique Meirelles, as investigações deram uma grande contribuição para o despertar dos princípios democráticos e garantias que ficaram longamente adormecidos quando o alvo a ser atingido era o PT de Lula. Não há nem pode haver dúvida a respeito.   

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