O processo
penal está repleto de regras de procedimento, de tratamento das partes, da
igualdade e de preceitos relativos à aplicação das penalidades cabíveis. Tais
comandos naturalmente prestam reverência aos princípios constitucionais da
ampla defesa, do contraditório processual e do devido processo legal, no
sentido de que essas são medidas inafastáveis em caso do cidadão ser levado à
Justiça Criminal, particularmente quando a lide penal se refere a episódios da
chamada Operação Lava-jato e diz respeito ao ex-Presidente Lula.
Essas
garantias, entretanto, reduzem-se muito na proporção em que os aplicadores da
lei penal, em especial órgãos do ministério público e juízes se deixam
persuadir por ideias próprias ou as professam deliberadamente, em particular
quando encorajadas por fatos ou atos recolhidos na instrução processual.
Pesquisas
recentes, aqui e no exterior, têm dado conta de que a magistratura é formada
por juízes recrutados de determinadas camadas sociais cujos condicionamentos de
classe, de família, de religião, de formação, de convicção politica-ideológica
– o que são fenômenos normais e previsíveis – muito seguidamente infiltram em
seus julgados pressupostos (não necessariamente ilegítimos), mas claramente
insuscetíveis de controle por contraditório, pela ampla defesa, vulnerando
dessa forma o devido processo legal substantivo.
A esse
respeito, a Revista do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (o mesmo que vai
ler as provas e decisões desse processo criminal) produziu e publicou no seu
número 31(07/1998) os resultados de uma pesquisa entre os magistrados (e o
padrão encontrado a despeito das alterações pontuais aparentemente mantem-se,
bastando conferir pesquisa realizada em 2014 pelo Conselho Nacional de Justiça
com resultados no site respectivo).
O magistrado
dessa Região era majoritariamente urbano, masculino, branco, de classe
média/média alta, com família organizada e bens próprios, a indicar que seu
perfil e extrato social poderiam ser facilmente identificados e rastreados e,
com a mesma facilidade, os condicionamentos a que sua educação, instrução e
atuação profissional ficaram seguidamente expostos.
Esse
importante fator processual, nada obstante as ditas garantias constitucionais,
não é alcançado pelo mecanismo de controle do contraditório ou dos recursos
cabíveis, e assim, ao menos por essa perspectiva, o demandado, o acusado ou o
réu, não têm como questionar ou defender-se, sobretudo quando, sem integrar o
universo sociocultural dos “operadores do direito”, dele seja, ao contrário,
crítico ou adversário.
Ora, a
coleta da prova material, a orientação das inquirições das testemunhas, as do
próprio interrogatório do réu e tantas outras medidas de natureza processual, e
em especial as de cunho cautelar ou restritiva e limitativa de direitos,
naturalmente se sujeitam a esse quadro de contingências subjetivas do
magistrado para os quais a lei processual não oferece resposta formal.
A instrução
processual, de outra parte, constitui, observadas as regras correspondentes, o
método legal de formação da convicção do juiz que, por essa razão, logicamente não se esgota numa
suposta “livre apreciação da prova” embora o texto da lei ainda a abriga de
modo antiquado (art. 155 CPP), a despeito de hoje por certo desqualificada,
senão pela doutrina seguramente pela evidência de que afronta as garantias
constitucionais.
Além disso,
o conjunto dos elementos de prova pode propor uma conclusão afirmadamente
objetiva, mas será indiscutivelmente será também apoiada em pressupostos e
condicionamentos subjetivos os quais por sua vez podem inserir-se involuntária
ou deliberadamente na formação das convicções do Juiz.
Nessa linha
de compreensão, a sentença de mérito vai refletir as convicções formuladas à
base desse mesmo conjunto probatório assim como
vai reproduzir os ditos condicionamentos de classe, de formação, de
família, religião e, em muitos casos, os de caráter político-ideológico que
ajudaram a construção da prova e das convicções dela resultantes.
A questão,
todavia, não é simplesmente demonizar tais fragilidades que de qualquer sorte
tendem a sobreviver pois não há cultura, política ou posições ideológicas
“puras” enquanto obra humana. Entretanto, se essa é um universo em que necessariamente se movimentam os
agentes do processo é essencial que tais condutas sejam sempre e
invariavelmente submetidas ao escrutínio do debate público ainda que seu
critério de convencimento -- conquanto desprovido dos elementos da prova
processual -- não é distinto daquele que empregam juízes e membros do
ministério público na formulação de juízos condenatórios e, no caso, ainda
enriquecido pela variedade e diversidade.
Resolver
esse dilema perpétuo que se instala na causa penal principalmente nos casos de
repercussão, reclama ao menos duas diretivas.
Uma, de que
na análise de qualquer dos fatos, atos ou circunstâncias da causa penal, sempre
e incondicionalmente, qualquer dúvida ou inconsistência seja obrigatoriamente
interpretada em favor do réu ou acusado, pois essa é uma consequência
igualmente obrigatória da salvaguarda constitucional da presunção de inocência
ou da não culpabilidade, até o trânsito em julgado, observado em qualquer
hipótese o processo justo.
Outra, a de
que ao magistrado condutor do processo, também por essa superior razão
constitucional, deve, sempre e invariavelmente, despir-se de suas condições
pessoais mediante autocritica reiterada e, portanto, como requisito mínimo
desse despojamento obrigatório, oferecer à parte demandada, garantindo-as,
todas as oportunidades de manifestação e de participação nos atos do processo.
Tanto é
certo isso quanto é certo ser ilimitada a disposição constitucional garantidora
do exercício da ampla defesa donde remanesce claro que não há paridade de armas
no processo penal se se leva as garantias constitucionais do réu às
consequências logicamente compatíveis.
O nosso
regime processual penal constitucional é, ou deve sê-lo, declaradamente em
favor do réu e a jurisprudência histórica da Alta Corte do país tem seguido
essa concepção de justiça processual exatamente porque sendo muitas e
imperceptíveis as variáveis na formação e formulação da convicção dos
magistrados criminais, cabe controla-las através da intransigência no rigor da
produção das provas e da benevolência na interpretação delas em respeito à
presunção da inocência, donde ressai que a condenação de alguém não resultará
de convicções senão de certezas objetivas e que ante a menor dúvida irrelevam.
As razões
finais do órgão do Ministério Público Federal no Caso Triplex, dadas a público
há poucos dias e que vão subsidiar a decisão judicial, quando submetidas a esse
quadro de considerações, ao invés do pretendido pela acusação, ressaltam a
procedência dessas criticas.
Afirma-se no
resumo introdutório das razões que “[e]m vez de buscar apoio político por
intermédio do alinhamento ideológico, LULA comandou a formação de um esquema
criminoso de desvio de recursos públicos destinados a comprar apoio parlamentar
de outros políticos e partidos, enriquecer ilicitamente os envolvidos e
financiar caras campanhas eleitorais do Partido dos Trabalhadores – PT em prol
de uma permanência no poder assentada em recursos públicos desviados. A
motivação da distribuição de altos cargos na Administração Pública Federal
excedeu a simples disposição de cargos estratégicos a agremiações políticas
alinhadas ao plano de governo. Ela passou a visar à geração e à arrecadação de
propina em contratos públicos.”.
E mais
adiante,
“Os presentes
autos partem da revelação de um cenário de macrocorrupção para além da
PETROBRAS, no qual a distribuição dos altos cargos na Administração Pública
Federal, incluindo os das Diretorias da PETROBRAS, funcionava como instrumento
para a arrecadação de propinas, em benefício do enriquecimento de agentes
públicos, da perpetuação criminosa no poder e da compra de apoio político de
agremiações a fim de garantir a fidelidade destas ao governo federal, liderado
à época por LULA. Nesse contexto, a distribuição, por LULA, de cargos para
políticos e agremiações estava, em várias situações, associada a um esquema de
desvio de dinheiro público e pagamento de vantagens indevidas. Trata-se de um
complexo esquema criminoso praticado em variadas etapas e que envolveu diversas
estruturas de poder, público e privado”
Como a
denúncia em apreciação refere tão só o episódio do apartamento Tríplex, a
guarda de volumes e correlatos, tais conjeturas
tentam buscar consistência a partir de diversas afirmações oriundas de
“delação premiada” em outros processos que notoriamente envolvem comportamentos
de caráter estritamente político ou de cunho administrativo externos aos fatos
em questão nesta causa.
Como
evidenciado pelo conjunto dos fatos desse modo reunidos, é inviável destacar um
de outro ato do então Presidente da República no correspondente campo de
atuação, de modo que a deliberada generalização, como mostra o texto acima
reproduzido, além de converter-se em pressuposto indiscutível a iluminar as
ponderações subsequentes, transforma ex-Presidente, por definição, em “vértice
comum dos casos de corrupção”.
Assim
apropriadas pelo MPF, resulta daí um complexo de condutas interelacionadas com
grande número de outros envolvidos e outros interesses diversos, que passa a
ser severamente perturbador de uma instrução límpida, clara, e objetiva,
bastando ver, pela voz do próprio MPF que são crimes de difícil elucidação onde
a lógica comum autoriza a atenuar a rigidez da valoração e a maior elasticidade
na admissão da prova de acusação.
Esse quadro
pré-valorizado e pleno de pressupostos subjetivos revela de modo claro a
insistência dessa generalização que, inclusive, termina por responsabilizar o
réu pela “devolução” de R$ 87.624.971,26 embora tenha supostamente recebido e
lavado tão só R$ 3.738.738,01.
Ora,
conquanto em determinadas situações criminosas seja admissível aceder a uma
flexibilização como ponderado pela acusação, no ambiente de disputa eleitoral
ou marcadamente politizado, ao contrário, essa inteligência acaba revestindo-se
de um caráter autoritário em tudo contradizendo as garantias e direitos do
processo penal democrático.
Aliás, toda
a construção acusatória, diz-se confessadamente indiciária e, à base da
afirmação de que são crimes de difícil elucidação, propõe implicitamente, na
prática, uma virtual e injusta inversão do ônus da prova. De fato, pela
invocação de “teoremas” ou “teorias” racionalistas impregnadas de ideias de
origem anglo-saxônica, estranhas ao nosso costume e história, destinados a
justificar teoricamente uma condenação, tais indícios bastariam sem prova real
precisa.
Contudo,
mesmo a pretendida probabilidade, para além do standard de uma “reasonable
doubt,” a legitimar em certos casos as presunções e indícios, aqui não se
compadece com o regime constitucional brasileiro, dados os limites
expressamente referidos no art. 5º da Carta, de acordo com os quais o
pressuposto para uma condenação criminal justa é a ausência de dúvida e a
necessidade de certeza objetiva, tanto que aplicação das teorias de domínio do
fato ou de culpa objetiva, no campo penal, em geral, afrontam diretamente os
fundamentos éticos e axiológicos do regime adotado pelo direito brasileiro.
Resumindo, a
presunção de autoria pelo domínio do fato e a certeza da materialidade, autoria
e dolo, decorrentes apenas de indícios, ao revés, na verdade completam um
quadro de violação de direito.
É que,
percorrendo as 300 e tantas páginas das razões finais da acusação não fica
claro em momento algum qual a exata e efetiva conduta do ex-Presidente, com
autoria, materialidade e dolo precisamente descritos e provados que
caracterizassem a figura típica da corrupção passiva e a lavagem de ativos, de
pouco valendo as referências a casos julgados pelos Tribunais pois quando
vistos de perto são distintas as condutas de cada caso, e não há, no adágio
popular, dois casos iguais.
Ademais, a
suposta lavagem de ativos (de suposto crime anterior de corrupção) convertidos
em um apartamento supõe a titularidade do imóvel mas até o momento não se
esclareceu jurídica e formalmente sequer do ponto de vista civil a propriedade
do mesmo que, é intuitivo, se prova pela transcrição ou registro e matrícula
respectivos.
Por isso, as
seguidas indicações na peça em questão de que o ex-Presidente “orquestrou o
esquema de arrecadação de propinas” e ainda “atuou para que seus efeitos se
perpetuassem” porque era ele o responsável pelo provimento e distribuição de
cargos da administração pública, “voltados a perpetuação no poder”, e adiante
descrevendo as diversas movimentações político-partidárias como se fossem única
e exclusivamente manobras da “organização criminosa”, constitui expediente para
envolver e transformar condutas singelas provocando repercussão artificiosa.
Não se trata
de negar fatos ou evidências delituosas e até mesmo circunstâncias conhecidas e
provadas de caráter indiciário (art. 239 CPP) que por certo existiram,
impõe-se, todavia, recusar a simplificação e a generalização baseadas em
premissas elas próprias fundadas em suposições derivadas de suas conclusões, de
resto ainda exaradas em tonalidade raivosa e agressiva, quiçá revanchista.
Talvez por
isso tenha o réu razão ao afirmar que não é ele que está em julgamento mas seu
governo, e pelo modo com que as razões finais do MPF se referem aos fatos e os
relacionam sempre a uma “organização criminosa” extrai-se a sensação notória de
que, acusações e suspeitas, convergem para uma crítica condenatória à pessoa do
titular da Presidência na impossibilidade de atingir sua administração o que,
descabido nessa fase, de qualquer sorte requereria mais e melhores razões.
Essa ilação,
repita-se, torna-se tanto mais evidente (e por isso questionável) quanto, ao
longo dessas 3 centenas de páginas, é perceptível a insistência do MPF na
menção e referencia a condutas relacionadas com outros casos, em outras
circunstâncias e envolvendo outras pessoas, com isso mostrando muito pouco do
caso ora em apreciação seja com respeito ao apartamento do Guarujá, seja da
guarda dos pertences presidenciais, sejam ainda outros episódios correlatos
raramente mencionados ao longo da peça, o que mostra ser propósito deliberado
da acusação, mais do que condenar o réu, destruir seu patrimônio politico e a
história da sua administração – aliás, passando assim inconstitucionalmente da
pessoa do réu -- ao invés de propor a ação penal pessoal, clara, precisa,
democrática e pleitear uma sanção penal justa de uma conduta individual certa e
imputável.
Todo esse
espiolhar de ilicitudes no afã de incriminar o réu não se amolda ao regime
constitucional processual e penal sempre resguardados pela presunção de
inocência e protegidos pelos direitos constitucionais de ampla defesa e
contraditório útil mediante devido processo legal justo.
Cuida-se, pois, não de exculpar rasamente os
réus mas de expungir das acusações esse ranço politico e ideológico em que se
transformou a operação policial cada vez mais concertada em juízo como uma
verdadeira “caça às bruxas”.
Esse não é
um processo que legitime um veredicto justo e não é assim que se constrói a
convicção do juiz.
Do GGN, Manoel Lauro
Volkmer de Castilho - é Juiz do TRF 4ª Região aposentado; ex-Consultor-Geral da
União