Cena 1 – de onde nada se
espera
Nos
últimos dias, o dito comum “de onde nada se espera, nada vem” foi desmentido.
Em
Londres, a Procuradora Geral da República Raquel Dodge, de quem se esperava
algo, dizia, sobre a democracia brasileira: "O Brasil experimenta o
período de mais longa estabilidade institucional e democrática desde a
proclamação da República. As instituições brasileiras estão funcionando bem. Há
uma fundamentação que é contestável e a possibilidade dessa contestação tem
sido livremente garantida e exercida no Brasil", disse (https://goo.gl/dGFqE20).
Em Davos, Michel Temer ensaiava o dueto: “As instituições no Brasil estão
funcionando e isso aumenta a confiança no Brasil”.
Segundo
a grande pensadora política Raquel Dodge, democracia é o direito que todos têm
de espernear contra as decisões que são tomadas por poucos, contra o direito de
todos de escolher. Depois de um Rodrigo Janot, o MPF não merecia uma chefia tão
anódina. Ou será que merece?
Em
Brasília, o Ministro da Justiça Torquato Jardim, de quem não se esperava nada –
menos pela biografia, mais por ser Ministro de Temer – suspendeu a promoção da
delegada Érika Merena. Inocentada por um inquérito camarada da Polícia Federal
para apurar abusos cometidos no caso da Universidade Federal de Santa Catarina.
Exigiu que seja ouvida a família do Reitor Luiz Carlos Cancellier, levado ao
suicídio pela truculência da delegada. Mais que isso, ordenou à Polícia Federal
que não seja tomada nenhuma medida contra o ex-presidente Lula até que o caso
chegue ao STF (Supremo Tribunal Federal).
Coloque-se
uma figura pública em uma sinuca. Estar em Londres, representar o Brasil, não
poder falar contra as instituições, mas não poder ignorar as perguntas sobre
impeachment e sobre o julgamento de Lula; principalmente, não ignorar a
enxurrada de críticas da comunidade jurídica institucional à partidarização do
Poder Judiciário.
Pela
resposta encontrada, avalia-se o grau de esperteza ou a dimensão política da
pessoa. Raquel Dodge mostra, com sua resposta, a razão de se encaramujar e se
encolher no cargo: não sabe o que dizer e como se comportar..
Cena 2 – os componentes
do Estado de Exceção
Vamos
ver na prática como funciona a democracia enaltecida pela doutora Raquel
Dodge.
Na
Papuda, o juiz Ademar Vasconcellos quase provocou a morte de José Genoíno, por
recusar atendimento médico em uma crise cardíaca. O Ministério Público Federal
(MPF) denunciou seu descaso. Louve-se o procurador que tomou a iniciativa. Mas
foi exceção.
No
Rio de Janeiro, mais de três dezenas de funcionários de carreira do BNDES
(Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social) foram conduzidos
coercitivamente à Polícia Federal, tiveram bens bloqueados, equipamentos
apreendidos, foram expostos em todas as redes de TV sem o menor sinal de culpa
apurada. Os autores da façanha foram o juiz Ricardo Leite e o procurador da
República do Distrito Federal Anselmo Lopes, com interpretações imbecis sobre
financiamento à exportação e diplomacia comercial.
Em
Brasília, o juiz Almir Costa de Oliveira autorizou a Polícia Civil a aplicar
corretivos, ou seja, métodos de tortura, em menores de idade.
Em
Florianópolis, 120 policiais da PF de todo o Brasil foram convocados para
conduzir coercitivamente seis professores da Universidade Federal de Santa
Catarina, impondo humilhações que acabaram provocando o suicídio do reitar Luiz
Cancillier. Responsáveis: a juíza federal Janaína Machado e a delegada da PF
Érika Merena. O abuso foi avalizado pelo procurador da República. Um inquérito
interno da PF concluiu que a colega Erika seguiu os manuais e liberou sua
promoção. Que foi suspensa pelo Ministro Jardim. A PGR não se preocupou em
apurar os abusos cometidos.
Por
conta da total impunidade do movimento anterior, a PF voltou a invadir um
campus universitário, desta vez a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
apesar da posição contrária de um procurador da República corajoso. Os
responsáveis: a juíza Rachel Alves de Lima e o delegado da PF Leopoldo Lacerda.
As prerrogativas das universidades foram ignoradas pela PGR.
Antes
disso, a Polícia Civil de São Paulo invadiu a Escola Florestan Fernandes, do
MST, aterrorizou crianças e velhos. O responsável foi o delegado Adriano
Chohfi, do Paraná, que seguiu incólume.
No
Rio de Janeiro, a Polícia Federal atende a uma ordem do juiz Sérgio Moro e
conduz o ex-governador Sérgio Cabral com algemas e correntes no pé. Há um
alarido, seguido de um jogo de cena: o juiz pede explicações ao responsável
pela operação – Delegado da Lava Jato Igor de Paula -, o delegado dá uma
explicação qualquer. E fica tudo por isso mesmo. Não se ouve um pio da PGR.
Antes
disso, em São Paulo, 18 rapazes e moças resolvem espernear contra o golpe do
impeachment. Um militar infiltrado leva-os a uma armadilha. Agora, os 18 estão
sendo processados. Responsáveis: a juíza Cecília Pinheiro da Fonseca e o
promotor estadual Fernando Albuquerque. Os bravos Procuradores da República que
acorreram em defesa dos meninos, quando levados para a delegacia em uma
verdadeira operação militar, foram admoestados pelo Conselho Nacional do
Ministério Público (CNMP), por invadir a competência dos colegas paulistas, em
defesa da integridade de jovens do outro lado. E nenhuma defesa da parte da
PGR.
O
Instituto Lula é sumariamente fechado pela decisão dos mesmos juiz Ricardo
Leite e procurador Anselmo Lopes.
Em
São Bernardo do Campo, o Museu do Trabalhador é criminalizado porque, em
determinado momento, foi taxado de Museu de Lula.
Agora,
a Justiça tenta proibir palestra de Lula no exterior, exigindo seu passaporte
devido à sentença no TRF4, mesmo não tendo nenhuma relação nem com o processo
nem com o TRF4. Os responsáveis são os de sempre: juiz Ricardo Leite e
procurador Anselmo Lopes, indicando atitude persecutória.
A
PGR não vai se pronunciar nem agora, nem quando os grandes temas civilizatórios
chegarem ao STF (Supremo Tribunal Federal). Enfim, uma escolha à altura da
dimensão de Michel Temer.
Cena 3 – a síndrome do
guarda da porta do presídio
O
que ocorre hoje, no Brasil, é a disseminação do Estado de Exceção através da
atuação, na ponta, de juízes e procuradores, convalidade pelos esbirros de
autoritários e pela timidez dos legalistas. Trata-se de uma lógica conhecida,
especialmente em períodos ditatoriais.
Quebram-se
os limites de atuação dos poderes. Há uma invasão de um poder por outro –
apesar do país da doutora Raquel não ter dessas coisas.
Na
base, os abusos são estimulados pela falta de liderança e de comando da ponta.
Jovens juízes, jovens procuradores, bem remunerados, podendo ser o poder de
fato na sua comunidade, é uma fórmula que tende a pegar os imaturos e a se
espalhar pelas respectivas corporações.
Consolida-se
a imagem do juiz punitivo, o sujeito que condena em qualquer circunstância.
Cria-se a ideologia de que os grandes crimes nascem dos pequenos. E toca a
punir o roubo insignificante, a criminalizar a energia política do jovem, a
perseguir as ideias contrárias. Nesses tempos de opinionismo desvairado na
Internet, toca a definir o que pode ou não pode em recintos públicos. E, nos
quatro cantos do país, a disseminar a imagem do juiz e do procurador que, antes
de respeitados, precisam ser temidos.
É
um quadro dantesco, que inibe os maduros, os que têm consciência dos limites de
sua atuação, expondo qualquer cidadão ao arbítrio de um poder sem referências.
Porque a referência do Judiciário é uma Ministra que fala e não diz; e do MPF,
uma PGR que nada fala, nada diz.
PS
-
O desembargador Vitor Laus, filho de preso político, foi o autor da acusação
mais circular do julgamento: "Quem responde por crime tem que ter
participado dele. E, para ter participado dele, alguma coisa errada ele
fez". É a lógica jurídica que impera no reino de fantasia da doutora
Raquel.
Do GGN