Antes
de me aposentar, fui alvo de um Processo Administrativo Disciplinar no Conselho
Nacional do Ministério Público (CNMP) porque, num artigo para o sítio
eletrônico do Consultor Jurídico,
havia dito que o colegiado passara a ser expressão do corporativismo do MP,
decidindo conforme o agrado da plateia que é chamada a eleger boa parte de seus
membros.
Soube,
depois de publicado meu artigo, que muitas de suas excelências tinham ficado
sentidas, dizendo-se gravemente ofendidas. Como conhecia pessoalmente os
membros do órgão, resolvi pedir-lhes desculpas para a hipótese de minhas
palavras terem ferido suscetibilidades. Não havia sido essa a intenção.
Não
adiantou.
O
então corregedor do Conselho instaurou o procedimento disciplinar, no qual fui
instado a dar minhas razões. Demonstrei cabalmente que o objetivo não era
insultar ninguém, mas descrever vícios num processo decisório. Fiz outra
matéria, no mesmo espaço do Conjur, reiterando minhas escusas.
Mais
uma vez, meu tiro foi n’água. Não consegui aplacar a ira das briosas
excelências ofendidas. O corregedor abriu o PAD monocraticamente. Foi
repreendido pelo Ministro Gilmar Mendes, que determinou fosse a decisão de
instauração do processo submetido ao plenário do CNMP.
Assim
foi feito. Na sessão que cuidou da matéria, Janot, desnecessário dizer que era
suspeito, cedeu a presidência ao colega Bonifácio de Andrada, que muito
elegantemente dirigiu os trabalhos. Todos os conselheiros votaram a favor da
abertura do PAD, com exceção do presidente ad hoc, que defendeu com ardor minha
liberdade de expressão.
(Confesso
que fiquei tocado com a solidariedade inesperada do colega Bonifácio de
Andrada, que mostrou hombridade e retidão de caráter).
As
declarações de voto dos conselheiros foram patéticas. Não escondiam sua
irritação e desancavam contra meu topete, minha ousadia de “ofender” o
colegiado. Só rindo para não chorar. Afinal, já que suas excelências se faziam
de vítimas, deveriam, a exemplo de Janot, se declarar suspeitas. Passaram a
alimentar contra mim indisfarçada hostilidade. Sem exageros: nunca se viu tanto
grito, choro e ranger de dentes no CNMP.
Mas
não. As bicudas vítimas abriram o PAD contra mim, para se desagravarem. Claro
que um mandado de segurança resolveria a teratologia colegiada. Mas preferi,
cansado de guerra, aposentar e o PAD, que, se chegasse a termo, não levaria a
mais do que uma advertência, foi arquivado.
Depois
de 30 anos de serviços prestados ao MPF, sem qualquer mácula – tendo ocupado
quase todos os cargos de direção da instituição – e mais sete anos de serviços
ao executivo, nos ministérios da Educação e da Justiça, sem nenhuma censura,
chegava ao fim minha vida pública, passando pela experiência de ser admoestado
por conselheiros que não sabem distinguir sentimentos pessoais dos deveres da
função. Triste constatação.
Por
que conto isso hoje, depois de quase seis meses de minha aposentadoria? Porque
soube na semana que se encerra que o mesmo CNMP liberou o Sr. Deltan Dallagnol,
aquele jovem procuradorzinho tagarela de Curitiba, a fazer palestras
remuneradas sobre assuntos de sua atuação funcional, pois, afinal, tratando-se,
segundo os briosos conselheiros, “atividade de interesse público”, a
remuneração teria apenas “caráter indenizatório”.
Pimba!
O CNMP tirou-me uma pedra do coração. Se minha consciência, meu rabugento
sargento interior, me impunha, antes, dúvidas sobre a justiça de minha
invectiva, o colegiado finalmente deu provas de que eu tinha falado a verdade,
por mais crua: o CNMP se revelou órgão da corporação nacional do ministério
público.
A
decisão que franqueia o procuradorzinho a encher as burras com dinheiro de
palestras remuneradas por controvertidas fontes é apenas mais uma teratologia
colegiada, por diversas razões. Vamos a cada uma delas.
Se
fosse tecnicamente honesto, o CNMP (assim como, antes, devesse ter sido seu
irmão siamês, o Conselho Nacional de Justiça, ou CNJ, que deliberou de forma
semelhante para juízes, dando origem à lambança) deveria se lembrar que a
remuneração de membros do MP por fontes privadas encontra clara delimitação na
Constituição.
O
art. 128, § 5º, II, não deixa margem a dúvida, aplicando-se-lhes, dentre
outras, as seguintes vedações: “receber, a qualquer título e sob qualquer
pretexto, honorários, percentagens ou custas processuais” e “receber, a
qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas,
entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei”. A
Lei Complementar nº 75, de 1994, a Lei Orgânica do Ministério Público da União,
repete parcialmente a disposição constitucional em seu art. 237.
A
vedação é clara. Membros do ministério público não podem perceber remuneração
por fora. Está é a regra geral. Não podem receber honorários a qualquer título.
Ponto. Nem por consultorias e nem por palestras, conferências ou coisas do
gênero. Também não podem receber de entidades públicas ou privadas, seja qual
for o pretexto, qualquer auxílio ou contribuição, de caráter indenizatório ou
não. Tanto faz, a natureza, a Constituição não distingue e não cabe ao
intérprete distinguir.
Há
três exceções à vedação. A primeira é a participação em sociedade comercial ou
não, como cotista ou acionista. A segunda é o magistério. E a
terceira é a advocacia, que, por disposição constitucional transitória (art.
29, § 3º, do ADCT), é excepcionalmente permitida aos que ingressaram na
carreira do Ministério Público Federal antes da promulgação da Constituição de
1988, em decorrência do direito de opção pelo regime funcional anterior.
No
primeiro caso, não se trata de remuneração por desempenho de qualquer
atividade, mas de remuneração de capital. Não se aplica, pois, à nossa
discussão. O terceiro caso também não interessa para o exame do caso Dallagnol,
pois palestras não se confundem com advocacia e o moço é um “greenhorn”, muito
novo para falar em regime anterior a 1988.
Então
sobra para o jovem mancebo o tal magistério, seu único meio de ganhar uns
trocados extra fora da carreira, sem levar em consideração seus investimentos
especulativos em imóveis do programa social “Minha Casa Minha Vida”.
A
Constituição disciplina a atividade docente por membros do ministério público
no art. 128, § 5º, II, d. É de observar que sua liberação é tratada ali (e na
lei complementar) como hipótese de acumulação de cargos públicos apenas.
Cuida-se, consequentemente, de acréscimo de vencimento aos ganhos de promotores
ou procuradores, dentro do teto constitucional (esse aspecto, aliás, até hoje
não está completamente pacificado, havendo quem entenda que a soma dos ganhos deva
observar o teto e outros que preferem que cada cargo tenha teto próprio,
incomunicável).
Na
prática, entretanto, tem-se incluído, na permissiva, o magistério assalariado
em instituição privada, que, conquanto não envolva acumulação de cargos
públicos, deveria ter o mesmo tratamento no que diz respeito ao acréscimo
lícito de ganhos, até porque o ensino superior privado é serviço público
autorizado ao particular.
Curiosamente,
em relação aos juízes, o art. 95, parágrafo único, I, da Constituição adota redação
diferente da que consta, para membros do ministério público, no art. 128, § 5º,
II, d, sendo, a estes últimos, vedado “exercer, ainda que em disponibilidade,
qualquer outra função pública, salvo uma de magistério”. Para os magistrados,
outrossim, não se trata apenas de limitação ao acúmulo de cargos públicos, mas,
de um modo geral, de restrição de pluralidade de atividades remuneradas, de
certo para não prejudicar o desempenho do exercício da jurisdição.
Assim,
aos juízes é vedado “exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou
função, salvo uma de magistério”, aqui sem distinguir se o cargo ou função é
pública ou privada. Mas, do mesmo modo que os membros do ministério público,
juízes não podem “receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou
contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas
as exceções previstas em lei”.
O
CNJ, adiantando-se ao CNMP, espertamente resolveu disciplinar essa exceção à
vedação de acúmulo de atividades remuneradas para os juízes, misturando alhos
com bugalhos e contrabandeou “palestras”, mesmo por magistrados sem formação
acadêmica, ao meio da regulamentação de magistério.
A
partir de então, como corolário da liberação, qualquer palestra proferida por
magistrado poderia ser remunerada, como se magistério fosse: auto-ajuda, boas
maneiras, culinária, zen-budismo, homilias em templos, biodança ou até yoga.
Afinal, onde a lei não distingue, não caberia ao intérprete distinguir…
Para
esse efeito, foi editada, em 2016, a Resolução CNJ nº 226, que, à guisa de
cuidar de magistério, alterou a Resolução 34/2007 e passou a dispor em seu art.
4-A: “A participação de magistrados na condição de palestrante, conferencista,
presidente de mesa, moderador, debatedor ou membro de comissão organizadora […]
é considerada atividade docente para os fins desta resolução”.
A
única limitação temática para magistrados palestrantes é prevista no § 3° do
art. 4-A: “A atuação de magistrados em eventos aludidos no caput deste artigo
deverá observar as vedações constitucionais relativamente à magistratura […],
cabendo ao juiz zelar para que essa participação não comprometa a
imparcialidade e a independência para o exercício da jurisdição, além da
presteza e da eficiência na atividade jurisdicional”.
Quem
conhece a prática de magistrados palestrantes, sabe que o dito § 3° jamais foi
e parece que não será observado por boa parte deles e sem qualquer consequência
disciplinar. Norma sem sanção é como banho sem sabão. É só reparar para as
recorrentes declarações políticas de Moro et caterva, ou, com muito mais
frequência, do Ministro Gilmar Mendes nessas ocasiões, muitas constituindo
verdadeiro pré-julgamento de feitos em curso, que logo se constata que o CNJ
normatizou só para “inglês ver”.
Essa
cupidez em disciplinar mais um ganha-vinténs para suas excelências sugere, em
verdade, que estão a precisar se safar duma carestia que não dignifica seu
sacerdócio. Coitados, ganham tão mal. A começar por muitos magistrados da
cúpula que fazem das “palestras” uma fonte de ganho extra. Alguns até no
exterior. E o fazem com regularidade tal, que não raro faltam a sessões dos
tribunais para ganhar seus caraminguás em algum evento de academia,
empresariado ou corporação.
O
CNMP, em sua resolução que trata do magistério (Resolução nº 73/2011) não
cuidou de palestras. Por isso, ao decidir a situação do Sr. Deltan Dallagnol,
parece que preferiu tomar de empréstimo a regulamentação do CNJ. E, como vimos,
a disciplina constitucional não é idêntica.
A
vedação, na Constituição, de receberem, membros do ministério público e juízes,
qualquer auxílio ou contribuição de pessoas físicas e entidades públicas ou
privadas tem sido letra morta, pois palestras, na maioria dos casos, não são
atividade docente e muitas regiamente remuneradas. Que docentes profiram
palestras, é da natureza de sua vocação acadêmica, mas nem por isso todo
palestrante é docente! A identificação de uma atividade com outra é
escancaradamente falaciosa.
Para
começar, atividade de magistério em faculdade particular só se inclui entre as
exceções da vedação de atividades extrafuncionais de membros do ministério
público por um exercício hermenêutico, dada a natureza da prestação do ensino
privado como serviço sujeito a autorização pública. Simpósios e conferências,
eventos com palestrantes, na FIESP, no Instituto Millenium, em Harvard, em
seminário da Editora Abril ou coisa que o valha não se confundem com ensino
privado, por lhes faltar o indispensável ato autorizatório que publiciza o
empreendimento educacional particular. Logo, as palestras ali proferidas com
paga são completamente estranhas à hipótese excepcional da Constituição.
Só
se poderiam liberar palestras que fossem decorrência de atividade de docência
regular, comprovada, não se incluindo entre elas homilias piegas em templos,
discursos politiqueiros no recebimento de prêmios, aulinhas sobre “combate à
corrupção” em cursinhos “Walita”, exposições para empresários e suas
organizações para-sindicais ou, até mesmo, participação remunerada em simpósios
de universidades estrangeiras se o expositor não é docente.
Pior
ainda é a utilização de coach ou empresário para vender as palestras do membro
do ministério público. Nesse caso, já se trata de verdadeira atividade de
mercancia, porque regular e destinada ao faturamento de vulto mediante contraprestação
de um serviço economicamente estimável. E a atividade de comércio é proibida
não só para membros do ministério público, mas para servidores em geral.
É
totalmente irrelevante se o fruto desse comércio é destinado aos bolsos do Sr.
Dallagnol e outros que incidem no mesmo ilícito, ou se vai para uma instituição
de caridade, para angariar graça da opinião pública. A escolha do que fazer com
o dinheiro, se destinado a comprar uma Ferrari ou a fazer doação de maior
nobreza d’alma, é um problema moral, mas não jurídico.
Enfim,
qualificar palestras desse jaez como de “interesse público”, como o fez o CNMP
no caso do Sr. Dallagnol, só pode ser entendido como chiste de mau gosto, ou
completo descolamento da realidade institucional. “Falta de noção”, como diriam
os jovens.
Desde
quando procurador tecer juízos sobre investigados ou acusados em palestras é de
interesse público? Desde quando revelar-se, o membro do ministério público,
militante de causas moralistas, quase partidárias, num momento de tanta polarização
política, é de interesse público? Desde quando tornar público slide de
“PowerPoint” com prejulgamento de ator político é de interesse público?
É
de interesse público que o ministério público se cale. Só fale nos autos. Suas
manifestações têm enorme potencial de acirrar conflitos, mormente quando trata
a ferro e fogo pessoas sobre as quais ainda prevalece a presunção de inocência.
É de interesse público que o ministério publico se porte dentro dos estritos
ditames da lei, respeitando os outros poderes e seus agentes, dentro do
princípio de sua separação harmônica.
É
de interesse público que o membro do ministério público não invada, com seus
juízos públicos, a esfera de atribuição de outros órgãos, como a do
Procurador-geral e a de colegas em outros estados. É de interesse público que o
ministério público colabore com órgãos do executivo em suas competências
próprias, como a recuperação de ativos e a leniência fiscal e de poder de
polícia.
Para
nada disso as palestras do Sr. Dallagnol têm contribuído e, porque logrou apoio
da mídia e de expressivos setores atrasados da sociedade, o CNMP se acanha. Não
lhe toca um só cabelo. Deixa acontecer, no mais puro espírito corporativo.
Enquanto
isso, muito além do interesse público, não bastasse o Sr. Dallagnol e seus
colegas receberem subsídios perto do teto constitucional, apesar de sua tenra
idade e pouca experiência, o CNMP lhes permite, à margem do direito, se
remunerarem com palestras que mais se assemelham a comícios de campanha. Se
isso não for o mais bronco corporativismo, o que será?
A
verdade dói, Senhores Conselheiros, mas, como ensina o evangelho de João,
“conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Joh 8:32). Talvez,
gentilmente advertidos, repensem sua teratológica decisão e se libertarão dos
vícios de sua corporação.
DCM