Foto Marcelo Casal Jr/Ag Brasil
Quer gostemos ou não a violência é parte integrante da nossa sociedade e está na formação de cada um de nós. Não é possível “viver num mundo sem violência”. Na prática, ao tentar proibir alguém de vivenciar a violência já se está sendo violento. Restrição é violência. Qualquer uma. Se havia um ponto que os liberais dos séculos XVII sabiam perfeitamente bem é exatamente a impossibilidade de se afastar a violência de qualquer arranjo social. Thomas Hobbes ainda ia mais longe, afirmava que dada a máxima liberdade, dela resultaria a máxima violência. O famoso “Estado de Natureza” o “todos contra todos” era exatamente isto. Seres entregues à sua máxima liberdade que seriam incapazes de conviver em função da máxima violência.
Muitas
pessoas estão preocupadas com a fúria e o “vandalismo” dos protestos. A
violência é condição de existência humana. Não há existência sem experiência,
como sujeito e objeto, de alguma forma de violência. Qualquer verbo de ação
humana que você possa pensar envolve violência em alguma dimensão. Educar é
violento. Libertar é violento. Integrar é violento. Sentir é violento. O que
ocorre de fato, é que muitas pessoas têm uma visão errada do que é violência,
pensam que violência é algo que produz dor ou pelo menos algum desconforto.
Ledo engano.
Pode-se
dizer que a História é, em grande medida, o estudo das formas de violência que
os homens aprenderam a infligir e suportar uns dos outros, ao longo do tempo. E
devo dizer que somos muito bons em criar formas de violentar nossos semelhantes
e, em seguida, naturalizá-las. Fazer parecer que é tudo “normal”, que é “assim
mesmo” e até que “sempre tenha sido assim”. A ideologia pode fazer a
sempre-presente violência ser finalmente percebida ou passar completamente
incólume.
Imaginar que
protestos, com alguma eficácia política, podem ser totalmente pacíficos é
imaginar que os detentores do poder o obtiveram de forma consensual, o usam de
forma benevolente e são altruístas o suficiente para cederem seus espaços
quando convidados. Como isto nunca existiu, também não existe protesto sem
violência. Nunca. Gandhi, que você provavelmente pensou, preferia infligir a si
mesmo violência e com isto mostrar resiliência para tocar simbolicamente o
outro. Este é o princípio das greves de fome, das auto-imolações e foram das
Marchas do Sal, por exemplo. Mulheres palestinas saíram, entre 2005-2007, a
caminharem com velas nas mãos e crianças de até seis anos no colo, após os
toques de recolher de Israel. E só quem nunca leu nada sobre as sociedades e o
conflito no Oriente Médio achou este um protesto “pacífico”.
O que
impressionou na última semana, no Brasil, foi a quantidade de profissionais da
área de humanas rápidos no gatilho a deslegitimarem os protestos por causa da
“violência”. Ora, se violência é uma constante nos seres e nas sociedades, o
que faz você apontar umas e não enxergar outras? Por que alguns são legítimos
para se sentirem violentados e outros não merecem sequer ser ouvidos? A
resposta é simples: ideologia. Só através da ideologia que você é capaz de acreditar
que uma pedra jogada num símbolo de poder é “mais violento” do que a retirada
da aposentadoria de milhões de pessoas por um governo não-democrático. Só
através da ideologia você pode justificar o contrassenso de acreditar que o
roubo a um celular é um ato “insuportável” ao passo que a chacina de jovens de
periferia é ... “boa coisa não deveriam ser” como se lê nos cantos fétidos da
rede mundial de computadores.
Só pode
deslegitimar um movimento de protesto se moralmente você julga que a causa de
manifestar é ínfima se comparado ao dano produzido pelo manifesto. Eu acho que
milhões de trabalhadores perderem seus direitos à aposentadoria, perderem seus
direitos a um final de vida com alguma dignidade vale incomparavelmente mais do
que toda a cidade de Brasília (e não apenas uma vidraça). Portanto, quando você
reconhece algumas atitudes como violentas e outras “normais” esta distinção
fala sobre a SUA personalidade, sobre seus valores e sua ideologia.
Impressiona
o conservadorismo de alguns especialistas da área de humanas que, de posse da
errada visão sobre liberdade, violência e direitos acreditam que a violência
“deslegitima” a agenda de protestos. Apenas os protestos parecem sofrer esta
lógica. O governo legitima-se com violência, por todos os lados. O sistema
capitalista se naturaliza pela violência, parecendo “normal”. As velhas ordens
se cristalizam por causa da violência, seja comportamental, cultural ou social
... mas protestos? Não! Protestos devem ser pacíficos ou não são legítimos. A
narrativa conservadora é a primeira a negar legitimidade aos que sofrem e
emprestar toda aos que defendem a “ordem”. O “novo” deve pedir licença para ter
seu espaço. Os que sofrem devem reclamar com educação para serem ouvidos.
Alguém falou
em Revolução Francesa esta semana, ligando aos protestos. Aqui vai um pouquinho
do Robespierre falando ao parlamento:
“E ousamos
falar de República! Invocamos formas porque não temos princípios; gabamo-nos de
delicadeza porque nos falta energia; exibimos uma falsa humanidade porque o sentimento
de humanidade verdadeiro nos é estranho; reverenciamos a sombra de um rei
porque não sabemos respeitar o povo; somos ternos com os opressores porque
somos sem entranhas para com os oprimidos” 3/12/1792.
Do GGN