Linchamento
ocorrido no Brasil em 2015 que vitimou Cleidenilson Pereira
Silva. Foto: Biné Morais
1 – Apresentação do Problema
Era uma vez,
um tempo em que o brasileiro se orgulhava de conhecer como ninguém a beleza, as
estratégias e os segredos do futebol. Esse tempo passou, talvez em razão da
transformação dos campeonatos brasileiros em mercadoria (e de qualidade ruim),
talvez diante da ferida narcísica provocada pela derrota para a Alemanha na
última Copa do Mundo. Hoje, abandonada a sensação de que todo brasileiro
entende de futebol, o Brasil tornou-se a pátria dos juízes. Os duzentos milhões
de técnicos de futebol tornaram-se duzentos milhões de especialistas em
direito, duzentos milhões de juízes prontos para julgar com celeridade fatos e
pessoas. Todos se sentem habilitados a julgar e, enquanto isso, os juízes
profissionais, aqueles concursados ou indicados para exercer a jurisdição
estatal, tornaram-se protagonistas da vida política brasileira (alguns falam em
efeito colateral do ativismo judicial, outros em hegemonia do “partido da
justiça”).
O que
interessa neste texto é analisar a “pátria de toga” à luz da formação cultural
desses milhões de julgadores. Em uma sociedade de “juízes” forjados em uma
tradição autoritária, os julgamentos serão sempre marcados pelo autoritarismo.
E o Brasil, até agora, fracassou na missão de construir uma cultura democrática
e isso repercute no teor dos julgamentos.
Os
brasileiros, de um modo geral, acreditam no uso da violência para resolver os
mais variados problemas sociais e, em consequência, apostam e apresentam
respostas violentas como a solução para qualquer situação problemática. Não há
que se estranhar, pois, o aumento do número de agressões a pretexto de fazer
“justiça”, com especial destaque para os linchamentos tanto físicos quanto
virtuais, tanto nas ruas das cidades quanto nas redes sociais. Em uma sociedade
de milhões de juízes que foram levados a acreditar que os direitos e garantias
fundamentais são obstáculos transponíveis à eficiência repressiva do Estado ou
aos lucros dos empreendedores (e até os explorados, hoje, acreditam ser
empreendedores), os julgamentos tendem a desconsiderar os limites
civilizatórios.
Em apertada
síntese, pode-se afirmar que uma cultura autoritária produz julgamentos
autoritários, nos quais se verifica não só forte aderência aos valores da
classe média (valores produzidos – vale frisar – em favor da elite econômica),
mesmo quando esses valores estão em oposição à normatividade constitucional,
como também o recurso à simplificação da realidade e ao pensamento
estereotipado. Nos julgamentos do dia-a-dia cresce a tendência a explicações
hipersimplistas de eventos humanos hipercomplexos; a reflexão é demonizada em
tempo de anti-intelectualismo, típico de momentos autoritários. No país de
duzentos e oito milhões de juízes verifica-se uma preocupação em afirmar desproporcionalmente
os valores “força” e “dureza”, em manifestações de hostilidade generalizada,
com muito cinismo e a desconsideração dos valores atrelados à dignidade da
pessoa humana.
Mas, para
além da tradição autoritária que condiciona os julgamentos do dia-a-dia, o
problema é ainda mais grave. Basta lembrar que, não raro, esses julgamentos que
se dão nas ruas, sem informação suficiente e por pessoas sem formação jurídica
ou mesmo democrática, passaram a influenciar os julgamentos dos juízes profissionais
(dos funcionários públicos a que se reserva o exercício da jurisdição estatal),
inclusive nos tribunais superiores. Muitos juízes passaram a justificar suas
decisões a partir da necessidade de “ouvir as ruas”, de ouvir a opinião dos
milhões de juízes sem toga em seus sofás. Com isso, progressivamente o caráter
contramajoritário da função jurisdicional, necessário ao modelo de democracia
constitucional, passou a ser abandonado.
Nas
democracias constitucionais, marcadas por limites rígidos ao exercício do
poder, a “voz das ruas”, a “opinião pública” e as “maiorias de ocasião” não são
suficientes para afastar os diretos e garantias fundamentais de qualquer pessoa
concreta, culpado ou inocente, amado ou odiado. Em outras palavras, na
democracia constitucional o principio da maioria (ou a percepção do juiz acerca
da “voz das ruas” ou do “clamor popular”) não se sobrepõe à normatividade
extraída da Constituição da República, dos tratados e das convenções
internacionais que reconhecem direitos humanos.
Neste pequeno
artigo, a proposta é analisar a mudança que parece ocorrer na atuação do juiz
brasileiro, que estaria a abandonar o modelo racional e eticamente regrado de
apuração dos fatos para aderir à lógica de uma espécie de “cognição mística
radicada nas vísceras comunitárias” (Cordero). A hipótese assumida aqui é a de
que o recurso às “vísceras comunitárias” estaria a serviço de justificar
decisões a partir das convicções dos atores jurídicos (muitas vezes, certezas
delirantes do julgador), ainda que essa convicção se revele afastada do acervo
probatório ou em desatenção aos limites constitucionais, éticos ou epistêmicos.
2 – Dos Ordálios à “voz do povo”
Com as
invasões bárbaras, tornou-se comum no Ocidente um instrumento usado para
resolver controvérsias de todo o tipo: o ordálio. Pode-se, em certo sentido,
afirmar que os ordálios constituíram uma espécie de sistema probatório composto
de uma variedade de técnicas (duelo judicial, prova d`água, caldeirão fervente,
etc.) que poderiam ser utilizadas em cada situação, a depender das tradições
locais e, em alguns casos, da vontade das partes ou mesmo do juiz.
Alguns
afirmam que os ordálios eram meios de prova irracionais. Isso não parece estar
correto, como percebeu Taruffo. Os ordálios obedeciam a uma lógica racional,
funcional e amplamente aceita no contexto (dominado pelo enchantment) em
que eles eram utilizados: o divino podia e diria a verdade para solucionar um
conflito. Na realidade, pode-se afirmar que o ordálio era tido como a liturgie
d`um miracle judiciaire (Jacob).
Em um
contexto de profunda fé religiosa, os ordálios eram a prova de que Deus estava
presente nas disputas judiciais, sempre que outros meios se revelavam
insuficientes para por fim à controvérsia. O ordálio caracterizava-se por ser
decisivo e o seu resultado, as consequências positivas ou negativas da prova
(então, mais um desafio do que um elemento de cognição), sempre claro e
incontrastável (como duvidar da resposta fornecida por Deus?). Após o órdálio,
não havia mais dúvida possível, Deus definia a parte vencedora.
O declínio
do recurso aos ordálios, ao que parece, coincide com profundas mudanças na
sociedade, e em especial nas práticas judiciárias. Passou-se a acreditar que a
verdade dos fatos, a solução justa para uma determinada controvérsia, podia e
devia ser apresentada a partir de condutas humanas e não mais por revelações
divinas. Do ponto de vista teológico, aderiu-se à tese, já presente em São
Tomás de Aquino, de que não se deveria desafiar Deus a resolver matérias que a
razão humana poderia dar conta.
Michele
Taruffo aponta o surgimento de “caminhos divergentes” após o declínio dos
ordálios. Na Inglaterra e no Continente Europeu, o fim dos ordálios produziu
consequências diferentes. Na Inglaterra, esse declínio guarda conexão com a
consolidação do jury trial. Enquanto isso, na Europa Continental,
a probatio substituiu a divinatio, com o aparecimento de novos
meios de prova (apresentados como “racionais”), voltados a descoberta da
verdade dos fatos (a principal técnica era a inquisitio), que passaram a
ser geridos, no mais das vezes, por juízes profissionais.
Na
Inglaterra (e de lá para o mundo anglo-saxão), o Júri se consolidou como o
principal método à resolução dos conflitos postos à apreciação judicial. Os
jurados, antes “testemunhas dos fatos” e depois “juízes do fato”, tornam-se
autores de um veredicto imperscrutável (e nesse particular, se assemelha à
solução alcançada pela via dos ordálios). É importante lembrar que o juramento
solene dos jurados, que ainda hoje se faz presente, invoca a intervenção de
Deus no julgamento. Pode-se afirmar que o jury trial, construído como uma
garantia individual contra a opressão do poder, busca nas “vísceras
comunitárias” a legitimidade dos julgamentos (o que no sistema dos ordálios era
obtido mediante a evocação divina).
No modelo
originado na Europa Continental, e em princípio adotado no Brasil, procurou-se
abandonar os ordálios em uma tentativa de “racionalizar” a busca pela verdade
como condição para a realização do valor justiça. O “mito de Deus” acabou
substituído pelos mitos da “razão” e da “ciência”. Nesse modelo, os julgamentos
têm por base a reconstrução dos fatos através de meios probatórios admitidos na
legislação, razão pela qual tanto a “divindade” quanto a “voz das ruas” ou as
“vísceras comunitárias” mostram-se estranhas à solução justa dos casos postos à
apreciação do Sistema de Justiça. A “verdade” é elevada à condição de
legitimidade dos julgamentos e, ao mesmo tempo, as garantias processuais e
demais direitos fundamentais, limites jurídicos e éticos ao exercício do poder,
passam a funcionar como condições de legitimidade da busca da verdade.
Em apertada
síntese: enquanto no modelo europeu-continental (civil law) a verdade dos fatos
é tida como um dos principais escopos do processo, no modelo de common law a
confiança na correção e na justiça do veredito dos jurados baseia-se no fato
dele ser formulado por pessoas que retratam a vox populi (nesse
sentido, por todos, Taruffo).
Costuma-se
aproximar a “voz do povo” do princípio majoritário. Este, por sua vez, costuma
ser apontado com uma manifestação necessariamente democrática. Trata-se de uma
concepção que identifica a vontade da maioria (ou, ao menos, a “voz do povo”)
com a democracia. Não faltam exemplos históricos de que essa visão é equivocada.
Basta pensar na maioria alemã que levou Hitler ao poder e apoiou o projeto
nazista ou na maioria dos estadunidenses que apoiava a segregação racial. A
democracia e a justiça, coo se percebe, não guardam relação com a opinião das
maiorias.
Em princípio,
decisões que buscam legitimidade a partir da “voz do povo”, isso é, a partir da
opinião (algo da ordem da doxa) dos milhões que se consideram aptos a
fazer julgamentos no Brasil, não se mostram sensíveis a limites, sempre que os
limites se revelem incompatíveis com o princípio majoritário. Em outras
palavras: levar em consideração a “voz do povo” nas decisões judiciais, muitas
vezes, vai significar a violação dos limites jurídicos, éticos e epistêmicos (e
aqui não se esta problematizando a questão do significado da expressão “voz do
povo”). Nada assegura que a “voz do povo” retrate a verdade ou produza justiça.
Registre-se
que nos Estados Unidos da América, o trial by jury, pensado como uma
garantia contra o poder (a voz Populi em defesa das garantias
individuais), vem sendo substituído por técnicas da chamada “justiça negocial”
(bargain), adequadas à razão neoliberal, que faz com que todos os valores
(verdade, liberdade, etc.) sejam tratados como meras mercadorias (negociáveis,
portanto).
III – O Brasil da voz autoritária
No Brasil,
apesar da adesão inicial ao modelo europeu-continental, verifica-se, nos
últimos anos, a incorporação de institutos, práticas e modos de ver o Sistema
de Justiça cunhados para o modelo anglo-saxão. Esse fenômeno, todavia, ocorreu
sem a incorporação dos correlatos limites à atividade das partes, à produção e
à valoração das provas. Com isso, a vox populi foi elevada a fator
decisório, mas sem a dimensão de garantia que existia no modelo do Júri. Mas,
qual é a “voz das ruas” que passou a justificar as decisões no Brasil?
Uma vox populi selvagem, sem limites, desconstituinte e autoritária.
No Brasil,
para satisfazer “as vísceras comunitárias” e atender à “voz das ruas”, atores
jurídicos passaram a desconsiderar direitos e garantias fundamentais, vistos
não como conquistas civilizatórias, mas como obstáculos à eficiência do Estado.
No lugar da busca pela verdade (respeitados os limites jurídicos e éticos),
surgem construções narrativas adequadas ao que o julgador afirma ser a “voz das
ruas”, mas que muitas vezes não passa de uma estratégia discursiva para decidir
contra a lei ou a doutrina.
Muitas
sentenças passaram a assumir como “verdade” o que é uma mera possibilidade. São
acolhidas as versões que vão ao encontro das convicções dos atores jurídicos (e
dos milhões de julgadores), mesmo que os fatos afirmados não encontrem respaldo
nas provas produzidas ao longo do processo. Aliás, se verifica uma mutação na
valoração da prova: a prova vista como positividade (a “boa prova”, a informação
útil, etc.) é apenas aquela que confirma a hipótese já assumida como verdadeira
pelo julgador ou pela “voz das ruas”. A verdade judicial passa a ser aquilo que
o juiz afirma ser “verdade” a partir de “convicções” prévias (leia-se:
preconceitos e pré-compreensões), mesmo que inexista prova nesse sentido
(ressuscitou-se a máxima de viés autoritário: auctoritas facit veritas).
Em nome da
“voz das ruas”, a natureza contramajoritária da função jurisdicional acaba por
desaparecer, o que representa risco concreto aos direitos das minorias e
facilita a opressão estatal. Como já se disse no início deste texto: sociedades
autoritárias, produzem decisões autoritárias. Escutar a vox populi em
um contexto autoritário equivale a abandonar não só o modelo de democracia
constitucional como também qualquer pretensão de verdade e justiça.
Rubens
Casara é Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Juiz de Direito do
TJ/RJ e escreve a Coluna ContraCorrentes, aos sábados, com Giane Alvares,
Marcelo Semer, Marcio Sotelo Felippe e Patrick Mariano.
GGN