Os três
governos petistas - dois de Lula e o primeiro de Dilma - foram, sem dúvida.
arranjos conciliadores em sentido amplo do termo. Abrigavam partidos que
representavam interesses diversos, incluindo setores do capital nacional,
internacional, do agronegócio etc. Foram governos de conciliação também no
sentido ideológico ao abrigarem partidos conservadores como o PP, o PTB, o PRB,
entre outros.
A partir do
segundo mandato de Lula, o eixo principal das alianças teve na forte estrutura
e capilaridade do PMDB uma nitidez centrista, secundado pelos partidos
conservadores, hoje identificados no chamado centrão. A funcionalidade dessa
aliança conciliadora teve no chamado jogo do ganha-ganha, bem analisado por
André Singer, seu alicerce de sustentação. Sem entrar no mérito dos erros e dos
acertos dos três governos, o fato é que sem o ganha-ganha, a conciliação se
torna insustentável, como, de fato, se tornou, levando à derrubada do governo
Dilma.
Os governos
de conciliação petistas talvez tenham um paralelo, guardadas as diferenças
históricas, no Gabinete de Conciliação do Marquês do Paraná, no Segundo
Reinando, entre 1853 e 1856. Nos governos petistas, tal como naquele Gabinete,
grupos que estavam alijados do poder passaram a integrar as estruturas
governamentais. Sob o Gabinete de Paraná, houve um período de paz e de certa
prosperidade, após uma série de dissídios liberais em várias províncias. Sob os
governos petistas houve uma pacificação das lutas sindicais e sociais, depois
de sua ascensão cuja trajetória havia se projetado nos processos de
redemocratização, da Constituinte e das lutas trabalhistas, sindicais e
sociais. As ações do governo, tanto em relação à política de recuperação
do salário mínimo, quanto às diversas políticas sociais de combate à pobreza e
a desigualdade, resultaram nessa relativa paz social. No caso do Gabinete de
Paraná, Cristiano de Abreu, por exemplo, nota que a "conciliação implicava
abrandamento das paixões, renúncia aos meios violentos, ...".
No Gabinete
de Paraná e nos governos do PT, viabilizou-se um reformismo brando em face das
estruturas rígidas e conservadoras do poder no Brasil. Como resultado, a
Conciliação do Segundo Reinando fortaleceu a unidade das elites e a sua
estabilidade. Mas com a morte de Paraná, ainda durante o governo, quem assumiu
a chefia do Gabinete foi Caxias, o Duque de Ferro, que havia combatido quase
todas as revoluções regenciais e liberais do período anterior. A instabilidade
política retornou com todo ímpeto ao Segundo Reinado, provocando o seu fim em
três décadas.
O resultado
da conciliação petista traduziu-se numa instabilidade política generalizada,
com o colapso do sistema político, e num catastrófico golpe que expurgou as
esquerdas do poder, promove uma grave regressão nos direitos sociais e articula
uma via conservadora para as eleições de 2018. Ou seja, as elites conservadoras
triunfaram e agora procuram meios de estabilizar o poder com a aposta em uma
estratégia de constituição de um longo ciclo de poder.
EM RESUMO: nem Paraná e nem Lula, nos seus
devidos tempos e com suas específicas causas, conseguiram produzir reformas
fortes que mudassem substantivamente o padrão conservador, anti-social e
antipopular das estruturas de poder no Brasil. Como diria Raymundo Faoro, a
conciliação é um método de operação das elites para permanecerem no poder,
mantendo o statu quo, sob uma enganosa aparência de mudança. Como caminho
de mudanças efetivas, a conciliação fracassou.
OS INIMIGOS DO POVO
As
conciliações enganam os sentidos políticos das partes mais fracas que as
integram. Cria-se uma ilusão de amizade e de comunhão de propósitos. Perde-se
de vista a lógica antagônica amigo-inimigo, tão bem ilustrada por Carl Schmitt,
mas que já estava pressuposta em boa parte dos filósofos políticos anteriores.
Na medida em que o conflito é inerente às sociedades humanas, ele jamais pode
ser expurgado da atividade política. A relação amigo-inimigo sempre existirá
enquanto os humanos forem dotados desta natureza. O que ocorre é que esta
relação segue gradações diferentes, determinadas pelas circunstâncias e pelos
interesses dos atores do jogo político.
A gradação
mais branda da relação de inimizade implica em tratar o oponente como um
adversário e a mais extrema, resulta na guerra. Se a guerra permite perceber
com nitidez e pureza a relação, a conciliação dissolve a inimizade na
normalidade política, trazendo desvantagens evidentes para os setores
subalternos da sociedade que lutam por igualdade, direitos e justiça. Esses
fins e bens legítimos do corpo político sempre têm inimigos e esses inimigos
precisam ser tratados como inimigos. A política é, de fato, a continuidade da
guerra por outros meios, como sentenciou Clausewitz. Mas a atividade política
pode desaguar na guerra, sendo esta sempre uma possibilidade daquela.
Dissolver o
antagonismo amigo-inimigo na política representa deixar um vazio estratégico e
cavar o fosso da própria derrota. O problema da conciliação do PT é que os
inimigos estavam dentro do governo. Mesmo que pudessem estar. pelas
circunstâncias da singularidade da vitória eleitoral do PT, deveriam ter
sido tratados ou vigiados como inimigos. O erro consistiu em tratá-los como
amigos.
O PT, em
estando no governo, viu apenas como inimigo o PSDB e seus grupos orbitais.
Viu-os, recobrindo-os com uma capa ideológica, a capa do neoliberalismo,
dissolvendo, em grande medida, o tipo de risco que eles representavam para os
interesses reais das grandes massas do povo localizadas nas periferias.
Criou-se um curto-circuito entre o discurso das esquerdas (e não só do PT) com
os interesses das massas populares. Nos governos de conciliação, em grande medida,
o espaço do inimigo fica vazio ou é preenchido por conteúdos que dissolvem o
combate e a polarização.
Supor que
nas democracias se dissolve o antagonismo amigo-inimigo representa um
auto-engano. Se esse antagonismo implica gradações, então significa que, a
depender das conjunturas e dos atores, se pode disputar ou fazer alianças com
adversários e se pode rivalizar e combater inimigos sem que isto leve à
violência e à guerra, pois as regras das disputas e dos combates estão
constitucionalmente definidas. Evidentemente, quando se fala de inimigo se está
falando no sentido político do termo ou em um agregado humano definido por uma
comunhão de vontades. Isto é: um movimento, um partido, um povo, um Estado. Na
democracia, os indivíduos podem até ser amigos, mas no jogo político público,
enquanto membros de partidos ou movimentos hostis, são inimigos.
É impossível
dizer onde o PT chegaria se não tivesse optado pela conciliação. Mas é possível
constar que a conciliação, como método e estratégia de mudança histórica,
fracassou. Diante disso, os petistas podem e devem rever sua estratégia no
processo de Congresso partidário. Se o caminho não é o da conciliação, a
estratégia deve ser de longo prazo, de construção de um campo democrático,
progressista e de esquerda, constituindo espaços de poder popular de baixo para
cima.
Essa
estratégia deve remeter-se a uma representação das massas populares, das
pessoas que vivem nas periferias, das chamadas classes C, D e E, a partir de
uma nova pedagogia política emancipadora, que saiba combinar participação
horizontal com estruturas verticais. Será preciso propor um conjunto de
reformas radicais, removedoras das condições de desigualdade e novas políticas
públicas. Será preciso reinventar os métodos de governo, viciados pelo burocratismo
e comodismo. Será preciso propor um novo federalismo, radicalmente
descentralizador, que permita uma ação e um controle da sociedade organizada
sobre o Estado.
Do GGN, por *Aldo
Fornazieri