A maior reação do Ministério Público
Federal e de associações de juízes contra o projeto de lei sobre abusos do
Judiciário é em relação ao risco de criminalização da hermenêutica – isto é, da
possibilidade de os juízes interpretarem as leis de acordo com sua convicção.
Alegam que tiraria a liberdade dos juízes julgarem.
O relator da proposta no Senado, senador
Roberto Requião, deixou claro que:
"A divergência na interpretação de
lei ou na avaliação de fatos e provas não configura, por si só, abuso de
autoridade". Por outro lado, ampla liberdade de interpretação aos juízes
significará abdicar de qualquer papel normatizador da Constituição e das leis.
Sem ter sido votado, o procurador e o juiz passariam a fazer as leis.
A melhor maneira de analisar os limites e
abusos é na chamada “prova do pudim” – conferir um caso prático. E nada mais
significativo do que a Operação Lava Jato e, nela, o episódio da prisão
temporária do blogueiro Eduardo Guimarães por crime de opinião.
Peça
1 – as primeiras ações contra Eduardo
Em 2015, a AJUFE (Associação dos Juízes
Federais) do Paraná entrou com uma petição na Polícia Federal acusando Eduardo
Guimarães do crime de injúria e ameaça.
As denúncias se referiam a Tweets postados
por Guimarães, com o seguinte conteúdo:
O Tweet suspeito dizia: “Os delírios de um
psicopata investido de um poder discricionário como Sérgio Moro vão custar seu
emprego e sua vida”.
Chamar alguém de psicopata é ofensa.
Interpretar o texto como ameaça ao juiz é indício de desequilíbrio grave.
A
AJUFE-Paraná deu asas à hermenêutica, acusando Guimarães de ameaçar o juiz
Moro, embora estivesse claro que “custar seu emprego e sua vida” se referia a
“cada brasileiro que se entusiasma ao ver a derrocada petista”.
Mas, enfim, como parte, a AJUFE-Paraná
poderia recorrer ao livre-interpretar. O jogo de abusos ocorreu nos momentos
seguintes.
Injúria é crime penal privado. Significa
que só a vítima pode entrar com a queixa. Já a ameaça é crime sujeito a
comprovação: a vítima tem que representar, ou seja, pedir para o
Ministério Público atuar.
O delegado não poderia instaurar inquérito
sem ouvir a vítima, Moro. Mesmo assim, a Polícia Federal recorreu à
hermenêutica e instaurou o inquérito (Hermenêutica 1).
Há um prazo legal de 6 meses para a vítima
representar contra crime de injúria. Em setembro de 2015, dentro do prazo de 6
meses, Moro representou pelo crime de ameaça. Não entrou com queixa de crime de
injúria porque o prazo já havia vencido.
A legislação diz que no caso de crimes
pela Internet, o foro é o do local da postagem; no caso cível, é fora.
Por isso, o delegado de Curitiba alegou
que a apuração do suposto crime não era da sua alçada, porque publicado em São
Paulo, onde mora Eduardo.
O MPF não viu problemas em interpretar a
lei.. Interpretou que, como Sérgio Moro mora em Curitiba, a acusação de crime
teria que ser julgada em Curitiba. O caso caiu na 14a Vara Federal; a Vara de
Moro é a 13a. O juiz da 14a acabou concordando com a interpretação do MPF (Hermenêutica
2). Simples assim.
O delegado pediu, então, condução
coercitiva de Guimarães e a apreensão dos equipamentos. O juiz da 14a não
concedeu. Não viu cabimento no pedido e seguiu o procedimento padrão, enviando
carta precatória para São Paulo.
A Polícia Federal recebeu, intimou e
Eduardo compareceu e depôs. Havia um prazo legal de 4 semanas, período em que
seu advogado acessou os autos, soube do que se tratava e preparou a defesa.
Peça
2 – o inquérito do vazamento
Na terça-feira seguinte ao depoimento, no
entanto, Guimarães foi preso em sua casa.
Não era mais o inquérito da ameaça, mas a
acusação de que participara de uma trama em cima de dados vazados da Operação
Lava Jato. Era o suspeito, sendo alvo de uma condução coercitiva, arrancado
casa às 6 da manhã, e, assim que chegou na Polícia Federal, sendo interrogado
sem a presença de advogados (Hermenêutica 3).
Os delegados pressionavam: você pode negar
a responder, mas não vai ser bom.
Em seguida, disseram já saber quem era a
fonte. Mostraram a foto e nome de uma auditora da Receita. Eduardo não tinha a
menor de quem se tratava. Só sabia o primeiro nome do jornalista que lhe passou
os dados.
Sem orientação, estava prestes a assinar o
depoimento, quando surgiu o advogado Fernando Hidao, leu o depoimento e exigiu
que fossem tirados três trechos. Uma leitura mais atenta mostrou que os
delegados haviam colocado alguns contrabandos do depoimento.
O depoimento que empurraram para Eduardo
assinar visava claramente comprometer Lula e incluía declarações que, depois de
conferir, Eduardo garantia jamais ter falado.
Um dos trechos dizia que Eduardo tinha
certeza de que Lula tivera conhecimento da operação depois que ele, Eduardo
conversou com o Instituto. Eduardo negou, na frente do advogado, ter dito
aquilo. Os delegados insistiram, então, para substituir a parte afirmativa por
uma suposição: supunha que Lula soubesse. Eduardo negou-se.
Até então, não se tinha a menor ideia
sobre do que se tratava o inquérito.
Hidao pediu para ver o inquérito. Não
tinha. Só tinham vindo o mandado de condução coercitiva e as perguntas, visando
impossibilitar a defesa.
A intenção óbvia da Lava Jato era apanhar
Eduardo desprevenido para arrancar informações, incluir interpretações da sua
fala para criminalizar Lula.
À medida que os fatos foram sendo
conhecidos, aumentava a relação de abusos.
A condução coercitiva existe apenas para
testemunhas, jamais para investigados – que têm a prerrogativa de nada dizer
que possa comprometer sua defesa. No entanto, Guimarães foi conduzido
coercitivamente mesmo sendo o investigado (Hermenêutica 4).
Mais: o despacho de Curitiba já definia o
indiciamento de Guimarães, antes mesmo que fosse ouvido (Hermenêutica 5).
Só à tarde, Hideo juntou a procuração
digitalizada nos autos de Curitiba e, no dia seguinte, teve acesso ao
inquérito.
Peça
3 - o esquentamento de provas
Lendo o inquérito, conseguiu reconstituir
o roteiro de arbitrariedades.
Primeiro, o MPF pediu ao juiz Sérgio Moro
a queda do sigilo telefônico de Guimarães. Em um primeiro momento, Moro não
concedeu alegando sigilo de fonte.
De alguma forma, no entanto, conseguiram
chegar à fonte de Eduardo.
A partir da quebra do sigilo telefônico,
que ocorreu em algum momento da operação, não registrado oficialmente, chegaram
a um jornalista de Curitiba e, quebrando seu sigilo telefônico, à auditora da
Receita. Não apenas quebraram o sigilo, como recolheram algumas conversas
íntimas no WhatsApp e trataram de espalhar.
Souberam, então, que a auditora conhecera
o jornalista em uma viagem de ônibus, passaram a se relacionar e ela lhe
repassou as informações sobre a quebra do sigilo fiscal de Lula e familiares.
Para quebrar o sigilo da auditora, se
valeram de um recurso simples: como já sabiam que era ela, através de provas
provavelmente obtidas de maneira ilícita, refizeram a investigação de trás para
diante para esquentar as provas.
Conseguiram dessa maneira a quebra do
sigilo da auditora:
· Havia 30
pessoas com acesso aos dados, procuradores do MPF e funcionários da Receita.
·
Procuradores são acima de qualquer suspeita. Logo a investigação tem que se
concentrar na Receita.
· Na Receita
havia 10 funcionários com acesso aos dados, mas 8 eram antigos. Logo, as
suspeitas recaíam nos 2 restantes,
· Foram
então ao Facebook de ambos e descobriram que o alvo seguia o escritor Fernando
Moraes. Usaram desse fundamento, um filtro ideológico, para quebrar seu sigilo
telefônico.
Ou seja, bastou ir ao Facebook e constatar
que ela seguia um escritor de esquerda, para conseguir a quebra do seu sigilo.
Aliás, nas duas ações que me movem, delegados da Lava Jato apresentam como
argumento central o fato de eu ser supostamente de esquerda.
Em algum momento, no entanto constataram –
os procuradores, os delegados e Moro - que, a partir de Eduardo, poderiam
atingir Lula, desde que a hermenêutica lhes garantisse formular a tese de que
havia uma organização criminosa por trás do vazamento.
A lei diz que são necessárias quatro
pessoas para caracterizar a organização criminosa.
Eureka!
1. Quem vazou.
2. O jornalista
curitibano que recebeu a informação.
3. Guimarães, para
quem o jornalista passou a informação.
4. O Instituto
Lula, que foi ouvido para a reportagem.
Constatada a possibilidade, imediatamente
Moro decidiu reavaliar sua avaliação sobre Eduardo.
Foi até seu blog, deu uma olhada e
decretou que não era mais um blog jornalístico, mas um blog de propaganda
política. Simples assim, porque a hermenêutica lhe garante o direito de
livre-interpretar as leis. E autorizou não apenas a quebra do sigilo telefônico
como a do sigilo de e-mail de Guimarães (Hermenêutica 6).
A formalização da quebra do sigilo era
condição essencial para a validação das provas e para a denúncia de
constituição de organização criminosa.
No final da história, houve os seguintes
abusos cometidos:
1. Quebra de
sigilo telefônico
2. Quebra de
sigilo de e-mail
3. Condução
coercitiva
4. Busca e
apreensão.
Não apenas isso, Sérgio Moro deu um
despacho difamatório contra Guimarães, com ampla publicidade, reeditando outra
prática da ditadura, que consistia em arrancar confissões sob tortura e depois
divulga-las no Jornal Nacional visando desmoralizar o inimigo.
Aí, já entrava em jogo uma questão
pessoal: punir Eduardo por ter representado contra ele no CNJ (Conselho
Nacional de Justiça) e tê-lo taxado de psicopata. Mas, como assegura o Ministro
Luís Roberto Barroso, Moro é um juiz bastante equilibrado.
A condução de Eduardo provocou uma onda de
protestos da mídia, da ABRAJI (Associação Brasileira de Jornalismo
Investigativo), cobertura em jornais, repercussão em jornais estrangeiros.
Imediatamente, Moro voltou atrás e
reconheceu no trabalho de Eduardo características jornalísticas. E não devolveu
a virgindade perdida dos e-mails e telefone de Eduardo.
Esse mesmo espírito de respeito à
Constituição se apossou dos procuradores da Lava Jato:
“O Ministério Público Federal
reforça seu respeito ao livre exercício da imprensa, essencial à democracia.
Reconhece ainda a importância do trabalho de interesse público desenvolvido por
blogueiros e pela imprensa independente. Trata-se de atividade extremamente
relevante para a população, que inclusive contribui para o controle social e o
combate à corrupção.”
Na entrevista semanal de Veja, o diáfano
Ministro Luís Roberto Barroso garantiu que os erros da Lava Jato, em todas as
operações, se contam nos dedos de uma mão. Arrisca-se a ganhar um novo apelido
no Supremo: o de Ministro centopeia.
Peça
4 – as raízes do arbítrio.
Globalmente, houve um questionamento dos
limites do direito penal no combate ao terrorismo, explica Fernando Hideo, que
está trabalhando em uma tese para seu doutorado.
O direito penal é instrumento de controle
e dominação em qualquer situação: do investigador em relação ao investigado, do
Estado em relação ao suspeito.
Nas últimas décadas ocorreram dois
fenômenos, um global, outro interno. O global foi o avanço do crime internacional
e do terrorismo. Nesses casos, não há mais a relação vertical entre Estado e
suspeito, mas a tentativa do terrorista de derrubar o Estado. Essa constatação
levou a mudanças radicais na visão penalista.
Internamente, até a década de 1990, havia
um padrão herdado diretamente da escravidão, do capitão do mato. Praticava-se o
estado de direito para quem estava na casa grande e aplicava-se à rapa o
direito penal do pobre.
Com a onda neoliberal que se amplia nos
anos 90, com a integração dos capitais brasileiros aos internacionais, não é
mais a elite nacional que controla o jogo, mas a internacional. E parte da
elite nacional é expurgada da zona de conforto do estado de direito e jogada na
vala comum dos abusos, conforme constata Hidao.
Essa escalada da repressão, segundo o
advogado Hideo, se baseia em três leis votadas ainda no governo Dilma Rousseff:
1. Lei anticorrupção
2. Lei das organizações criminosas
3. Lei antiterrorismo
Foram os instrumentos que escancaram a
porta para o processo penal de exceção.
Criou-se o instituto da delação premiada,
que é uma radicalização das confissões obtidas mediante tortura na ditadura.
Lá, depois de solto, o torturado podia refazer o depoimento tomado sob
tortura. No atual instituto da delação, ele ficará eternamente refém: se
revisar a delação, volta para a prisão.
Antes, não havia no Código Penal a figura
da obstrução da Justiça. A partir da lei das organizações criminosas, impõe-se
as mesmas penas ao criminoso e a “quem impede ou de qualquer forma embaraça
investigação que envolva organização criminosa”.
Foi o que aconteceu recentemente com o
blogueiro dono do Blog Limpinho e Cheiroso. Ele foi enquadrado na Lei de
Organização Criminosa. O entendimento sedimentado é que, ao publicar
determinadas matérias que desagradam a Força Tarefa da Lava Jato, o jornalista
está sujeito ao §1º, do artigo 2º da Lei 12.850/13, a Lei de Organização
Criminosa, cuja pena vai de 3 a 8 anos de reclusão.
Este artigo estabelece como crime impedir
ou embaraçar a investigação de infração penal que envolva organização
criminosa.
Ora, criticando a Lava Jato a matéria
visaria afetar a credibilidade da operação perante a sociedade
caracterizando-se, assim, o “embaraçamento da investigação”.
O blogueiro foi condenado por calúnia a 2
anos e 1 mês de detenção por ter publicado matéria contra Sérgio Moro. A pena
foi substituída pior prestação de serviço à comunidade. No entanto, Moro
determinou que fossem enviadas cópias à PF para instauração de inquérito para
apuração do crime de embaraçamento de investigação contra organização
criminosa.
Peça
5 – a delação comissionada
O caso Eduardo Guimarães é um micro
exemplo do que provavelmente ocorreu com toda a operação. Como é possível a um
juiz de 1a instância, do Paraná, em cima de uma operação contra uma lava
jato, assumir o julgamento de uma estatal, a Petrobras. Por ser de economia
mista, a instância correta seria a justiça estadual; por sua sede ser no Rio de
Janeiro, já deveria ser o foro de julgamento.
A cada dia fica mais nítido como a
operação foi montada. A espionagem norte-americana, revelada no episódio da
NSA, já tinha obtido bons elementos sobre a corrupção na Petrobras.
Descobriu-se o caminho, identificando a
conexão do doleiro Alberto Yousseff com o posto de gasolina. Yousseff já era
velho conhecido do juiz e de procuradores em várias investigações anteriores.
Foi detido, aceitou delatar, no primeiro
caso de delação comissionada de que se tem notícia: pelo acordo, terá direito a
2% sobre tudo o que for recuperado pela Lava Jato, a partir de sua delação.
Poderá sair dessa aventura com uma
comissão de R$ 20 milhões. Graças à Hermenêutica.
Do acordo de delação de Alberto Yousseff:
Do GGN, por Luís Nassif.