O
golpe que derrubou Dilma trouxe consigo muitas mazelas: erosão da democracia,
crise institucional, decomposição política e moral do país, um governo
criminoso rejeitado por quase a unanimidade nacional, revogação de direitos e
cancelamento de políticas públicas sociais, destruição da pesquisa científica e
da cultura. Mas as mazelas não param ali. Já no processo do impeachment se
multiplicou o número de analistas na mídia e de mercado, explícita ou
envergonhadamente neogolpistas, que passaram a falar em nome de uma certa
neutralidade científica, de uma equidistância do objeto analisado - a crise.
Essa suposta neutralidade só tem duas explicações: ou se trata de gente que não
entende a natureza das teorias sociais e políticas ou de gente que usa um ardil
para dissimular as suas posições, despossuídos da coragem de assumi-las.
Muitos
deles defenderam o impeachment de Dilma, argumentado que ela não tinha
capacidade de governar porque tinha perdido o apoio popular. Covardemente,
agora se calam diante de rejeição nacional a Temer. Sugeriam, de forma
explícita ou nas entrelinhas, que Temer era um político habilidoso e que a
crise desapareceria com a simples mudança do governo. Deu tudo errado. E a
autocrítica que cobram dos outros, se mostram incapazes de fazê-la.
Recentemente,
viram no depoimento de Palocci uma "bomba de nêutrons", um
"efeito radioativo", que teria implodido Lula e o PT. Mesmo depois
dessa bomba, as intenções de voto em Lula continuam subindo e a rejeição
caindo. Aqui começa o pânico analítico. Duas novas explicações surgem a partir
dele: "Lula chegou ao teto" e o seu desempenho se explicaria por
"um efeito emocional", pela sua vitimização, pelo caráter de seita
dos eleitores de Lula.
Em
primeiro lugar, não há política sem emoção, mesmo nos povos mais racionais do
mundo. Em segundo lugar, a política está imersa em um complexo de variáveis,
envolvendo emoção, razão, interesse, engano, ardil, astúcia, persuasão,
retórica, convencimento, ódio, amor, circunstâncias econômicas, políticas e
sociais, fé, carisma etc. Somente os idiotas da objetividade pensam que a
política implica apenas em escolhas racionais, seja dos líderes ou dos
eleitores.
Se
a intenção de voto em Lula aumenta e a rejeição cai, há nisso uma tendência,
com a perspectiva da curva do crescimento e a curva da queda se aproximarem.
Lula está ganhando votos no chamado centro político, nos eleitores
"neutros", e cada vez mais se reconhece, mesmo em setores que não
votam nele, que há uma ação persecutória por parte do juiz Moro. Este, que era
quase uma unanimidade nacional, vê as curvas da aprovação e da rejeição se
movimentarem no sentido inverso do movimento que elas fazem no gráfico de Lula.
Existe
uma combinação de fatores que explica o desempenho de Lula: nos governos Lula,
a vida era melhor do que no atual momento; quase 60% da população avalia o
governo Temer pior do que o governo Dilma; para um número cada vez maior de
pessoas houve uma "armação" (golpe) para afastar Dilma; o governo
Temer é fortemente identificado como uma organização criminosa; percebe-se cada
vez mais que o maior protagonista da corrupção na Petrobrás foi o PMDB; o PSDB
e Aécio Neves têm a imagem de hipócritas, cínicos e falsos moralistas; contra
os 51 milhões de Geddel, a mala de dinheiro de Temer e Rocha Loures, as jóias e
dinheiro de Cabral e várias contas no exterior de vários políticos, as provas
contra Lula são imateriais; na visão majoritária das pessoas, Lula foi o
presidente que mais fez pelos pobres, para a maioria da população; Lula
incrementou o desenvolvimento do Nordeste; Lula promoveu a recuperação do
salário mínimo, do emprego e da renda; no governo Lula foram implementadas
várias políticas sociais, desde habitação, Prouni, Luz Para Todos, Bolsa
Família etc.; parte dos eleitores têm fé no poder carismático de Lula, ausente
em outros políticos; Lula tem uma imensa capacidade persuasiva.
A
aposta do eleitorado em Lula é racional
A
maior parte dos fatores que explicam o crescimento de Lula, numa situação
completamente adversa e persecutória, são de ordem racional, por interesses,
por comparações e por resultados. A tese de que Lula se mantém principalmente
porque tem seguidores devotos e porque ele é chefe de uma seita é absolutamente
falsa, como são falsas as supostas neutralidade e a cientificidade de quem a
sustenta. O desespero analítico dos dissimulados volta todas as suas esperanças
para que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região declare Lula impedido de
concorrer para que as fraudes das parcialidades analíticas salvem as
aparências.
Vejam
o que escreveu Murillo de Aragão em abril deste ano: "Para piorar, caso
Lula consiga chegar a 2018 elegível, sofrerá um bombardeio midiático intenso,
já que passou a personalizar tudo de ruim que aconteceu no Brasil nos últimos
anos. Poderá até chegar ao segundo turno, mas ganhar é outra história".
Este tipo de torcida pode ser boa para ganhar dinheiro no mercado, mas não é
uma análise neutra, menos científica. Neste momento, Lula, dentre os políticos,
é o que mais personaliza o que o país teve de bom, pois a ética resiste exatamente
na promoção do bem comum.
Veja-se
esta afirmação em outro texto: "Pois nem PT nem Lula têm inspirado as
pessoas. A não ser lavar propina a jato nos cofres da Petrobras". E ainda
tem muita gente levando a sério este tipo de análise. Lula e o PT certamente
cometeram muitos erros. Mas daí a lavrar esse tipo de sentença é um
despropósito analítico. Lula, hoje, lidera em todos os cenários para 2018 e uma
pesquisa do Datafolha publicada em junho mostra que o PT é o partido de maior
preferência dos brasileiros, com 18% das preferências, distante dos 29% já
alcançados em outro momento, mas igualmente distante dos 5% do PSDB e do PMDB.
A
superação da crise passa por uma eleição democrática e legítima. A eleição não
será nem democrática e nem legítima se Lula for excluído dela. Este é o memento
em que os conflitos, as diferenças programáticas e estratégicas têm que se
explicitar. Os campos eleitorais devem se definir em torno desses conflitos e
diferenças, pois a democracia é dissenso e conflito. O único acordo possível é
em torno da eleição democrática e legítima, até porque, se há que existir um
consenso este deve ser em torno das regras e dos valores básicos da democracia.
Esse consenso básico foi rompido pelo golpe e foi rompido pela quadrilha que
está no poder, com seus aliados, incluindo o PSDB, ao violentarem a vontade
popular com a imposição de uma agenda de contra-reformas que não foi nem
discutida e nem referendada pelo voto popular.
Somente
um governo emergido da eleição democrática e legítima poderá restabelecer as
condições do diálogo democrático e de serenar a exaltação dos ânimos, sem que
isto signifique uma conciliação fadada a sacrificar as classes populares. A
democracia pressupõe negociação. Mas a negociação pressupõe a legitimidade do
governo, algo que Temer não tem e algo que um futuro governo saído de uma
eleição ilegítima não terá.
ALDO FORNAZIERI, Cientista político e professor da
Fundação Escola de Sociologia e Política (FESPSP).
Do 247