Assistimos ontem no Recife à pré-estreia de O Processo. O
cinema São Luiz estava lotado, como em suas melhores noites, com todas idades e
classes sociais. Estávamos jovens e muito jovens, maduros e muito
maduros, a cantar e gritar várias bandeiras, das quais a mais unitária foi
#LulaLivre. A agitação no público era tamanha, que gritos se ouviam até mesmo
quando as luzes no cinema se apagaram. Quanta rebeldia reprimida. As vozes
somente pararam quando alguém gritou: “quem fizer barulho é golpista!”.
Silêncio na plateia. Então o documentário começou.
Agora, enquanto escrevo, pesquiso e leio uma sinopse onde se
fala: “O documentário acompanha a crise política que afeta o Brasil desde 2013
sem nenhum tipo de abordagem direta, como entrevistas ou intervenções nos
acontecimentos. A diretora Maria Augusta Ramos passou meses no Planalto e no
Congresso Nacional captando imagens sobre votações e discussões que culminaram
com a destituição da presidenta Dilma Rousseff do cargo”. E mais descubro. Na
estreia mundial de O Processo, no Festival de Berlim, o filme foi aplaudido sob
gritos de “bravos”, o que nunca havia acontecido com um filme antes em terra
alemãs. Em Portugal, quando recebeu o prêmio de melhor longa-metragem no
festival de cinema IndieLisboa, o júri assim falou sobre as razões da escolha:
"Pela sua montagem aberta, que é fluente e elegante. Trata-se de um drama
político contado através da narrativa clássica sem cair no classicismo
gramatical e formal."
Mas nós, que assistimos à pré-estreia no Recife, bem podemos
acrescentar outras razões de público e amantes do cinema. Tanto na abertura,
quando um voo de helicóptero sobre Brasília nos mostra os lados de amarelos e
vermelhos em confronto sobre a terra, até atingir as cenas finais, atravessa a
gente um sentimento de indignação e afeto profundo pela memória da militância
contra o impeachment. Então sabemos que O Processo é um dos melhores
documentários do Brasil até hoje. E se me fazem um desconto do entusiasmo, pois
o filme continua dentro da cabeça até agora, ouso escrever mais claro: O
Processo é um dos melhores documentários do mundo. Entendam as razões.
Quando o debate se abriu para o público, pude falar no
microfone em meu natural pouco eloquente. Na medida do que lembro de ontem à
noite, consegui falar: “Ao ver os últimos 10 minutos, quando se completa o
golpe, e a digna representação dos parlamentares do PCdoB e do PT que
discursaram contra o impeachment, senti que O Processo devia se chamar O
Pesadelo. E pude perceber que o documentário no Brasil, que já havia atingido
um ponto culminante com Eduardo Coutinho, e passa pelos belos filmes de
Vladimir Carvalho, ganhou um novo caminho com esse documentário. De todas as
maneiras se faz arte. Neste, o que parecia ser uma grande reportagem se fez
arte. Acredito que este é um filme que sobreviverá a estes malditos anos. Se me
permite uma sugestão, só lhe peço que não siga o roteiro de alguns estetas da
reportagem da imprensa, que lhe pedem o relato do método ou técnicas do
filme. Para mim, seria como transformar o quadro Lição de Anatomia, para pegar
a experiência holandesa da diretora, e limitá-lo à descrição do desenho, tons,
sombra e tintas. Transformar a arte em um verdadeiro cadáver da composição.
Creio que de modo mais simples você poderá dizer que fez esse filme com intensa
paixão. E com imenso talento, como acabamos de ver”.
O que disse no microfone ontem, bem ou mal, bem e mal
no calor da emoção, continuo aqui: os discursos da bancada de bravos que
resiste, no dia da conclusão do impeachment, o discurso de Dilma ao se
despedir, o rosto de Lula no plenário, nessas imagens pudemos ver o
Brasil de hoje, com o pior parlamento da nossa história, com o presidente
mais entreguista que tivemos, e a desgraça anunciada nos discursos que se
cumpre com a perda de direitos inalienáveis do povo, como saúde e
trabalho.
Já antes, a militante e professora Isa Ferreira me perguntou
o que fazer diante dessas agressões contra os brasileiros, e se eu achava que
sairíamos desta e como sair. Quem sou eu para achar, se me encontro tão
perdido? Mas na hora lhe respondi que não sei como, mas que se houver uma saída
popular, talvez não alcance os nosso dias. Enquanto isso, não poderemos
submergir à depressão e desespero desta má hora. Cada um que lute à sua
maneira, da melhor forma possível.
Ao voltar para casa, o motorista do Uber, que é músico e
trabalho pela madrugada a dirigir um carro, me falou que vivemos hoje uma
distopia. É isso, sim, é isso, eu me falei para mim, surpreso da qualificação
que o jovem trabalhador dá para o que vivemos. Então me veio à lembrança de
novo de O Processo como O pesadelo. O nome de uma obra sempre vem depois.
Nunca antes, como o batismo que damos a um filho.
Em uma ocasião, a diretora falou em entrevista: “Nós não
sabemos para onde isso vai, e isso é angustiante e doloroso... Essa é a minha
contribuição para esse momento que estamos vivendo”. Sem dúvida. O documentário
de Maria Augusta Ramos realiza o seu presente deste infeliz momento. E mal pude
dormir até a hora de escrever estas linhas.