Considero que os primeiros grandes intérpretes do
patrimonialismo brasileiro são os juristas Vitor Nunes Leal (em sua
obra Coronelismo, voto e enxada: o munícipio e o regime representativo no
Brasil) e Raymundo Faoro (Os donos do poder: a formação do patronato político
brasileiro). Ambos os autores, ainda que partindo de pontos diferentes,
conseguiram lançar as primeiras luzes sobre o funcionamento e a organização do
poder no Brasil, mostrando que este sempre foi exercido por uma elite
descomprometida com os interesses do desenvolvimento do país como nação e
forjada na conveniência dos interesses pessoais.
Vitor Nunes Leal partiu da análise das relações de poder
exercidas nos munícipios e grotões, microcosmos nos quais os interesses do
mando constroem sua organização de poder e de onde dirigem sua influência na
formação do Estado, instrumentalizada mediante o controle das instituições
estatais por um grupo de correligionários. Constitui-se, assim, uma grande
família (expressão nossa) formada pelo laços do “filhotismo”, cujo mandamento
principal é “para os amigos tudo, aos inimigos o rigor duro e cruel da lei”.
Raymundo Faoro faz seu campo de observação a partir do
processo de colonização portuguesa, que nos legou a forma de organização
política estruturada no Brasil. Sendo assim, os atuais donos do poder são os
descendentes de portugueses, que introduziram um modo de pensar e um agir
político influenciados pela cultura latina, em que as relações de proximidade
pessoal serviram de base para a formação do Estado patrimonialista brasileiro,
que tem como característica a condução do país por uma elite desinteressada do
desenvolvimento nacional e sem nenhuma preocupação com o destino da maioria da
sua gente.
Independentemente das diversas críticas às duas
interpretações acima apresentadas, como fez mais recentemente Jessé de Souza
(em A tolice da inteligência brasileira ou como o país se deixa manipular
pela elite), que questionou principalmente a obra de Faoro, pode-se afirmar que
o pensamento dos dois juristas continua atual no Brasil de hoje, tomado pelo
ódio de uma manipulada luta de classes que joga brasileiros pobres e explorados
uns contra os outros.
Não queremos, com isto, negar a existência de lutas de
classes no Brasil, onde a exploração do capital pelo trabalho, como em todo o
mundo, aumenta cada vez mais, tendo em vista a concentração exponencial da
renda nas mãos de um número cada vez menor de pessoas, que se tornam cada vez
mais ricas.
Com efeito, quando me refiro à manipulação das lutas de
classes no Brasil, tenho em mente que, tanto os trabalhadores brasileiros (dos
mais miseráveis aos da classe média) quanto os empresários (industriais,
comerciantes, prestadores de serviço, agricultores e microempreendedores) sofrem
um contínuo e duríssimo processo de exploração de sua força de trabalho e de
seu capital, que lhes retira inteiramente a capacidade de resistência política,
social e econômica, uma vez que as forças produtivas estão sendo apropriadas
pelo capital especulativo internacional.
Como escrevi anteriormente, não são apenas os trabalhadores
que estão sendo condenados com a retirada de direitos fundamentais e
essenciais, decorrente do corte dos investimentos em saúde, educação, direitos
trabalhistas e previdenciários, mas são afetados também os empresários
brasileiros, muitos dos quais estão se deparando com a necessidade de vender a
preços baixos suas fábricas e terras, enquanto outros são diariamente forçados
a fechar lojas, empresas e estabelecimentos diversos.
A elite brasileira parece não ter a capacidade de compreender
que o projeto político e econômico em curso, por ela apoiado cegamente, está
retirando de si mesma a capacidade de comando político (certo ou errado, não
importa neste momento a análise), construída ao longo de séculos, como
observado por Vitor Nunes Leal e Raymundo Faoro.
Ao ser determinada a destruição de todo o complexo industrial
de engenharia nacional, como se fez por meio da estranhíssima “Operação
lava jato”, retirou-se das empresas brasileiras o imenso mercado de obras
públicas no Brasil, que foi então entregue a empresas estrangeiras e, em
consequência, passou-se a utilizar aqui a mão de obra vinda de outros
países; além disso, os equipamentos e insumos necessários às atividades passaram
a ser comprados em outros lugares, trazendo ainda maiores dificuldades às
empresas conectadas de alguma forma com aquela cadeia produtiva.
O mesmo acontece ao se permitir o desmonte da Petrobras. As
petroleiras estrangeiras irão dominar com exclusividade a exploração do nosso
petróleo, que doravante só trará benefícios para elas, que, inclusive, não
precisarão pagar qualquer tributo, conforme a lei aprovada pela elite que
compõe o atual governo e o Congresso Nacional.
Nossos campos estão sendo dominados por estrangeiros, que
compram barato as nossas terras e utilizam mão-de-obra estrangeira e máquinas,
tecnologia e insumos agrícolas produzidos em seus respectivos países.
O mesmo tem ocorrido no campo da educação, no qual escolas e
universidades, antes de propriedade de brasileiros, estão hoje sob o controle
de fundos de investimento estrangeiros, que estão se assenhorando também
dos segmentos de saúde, segurança, comunicação social, previdência privada,
finanças, transportes, infraestrutura, informática, livrarias etc.
É o maior processo de desnacionalização já visto em tempos
recentes, mediante o qual a elite brasileira está perdendo o controle de seus
negócios e em breve perderá completamente o poder de influência política
interna, quando será finalmente relegada a um papel inexpressivo, limitado à
mera repressão, a ser executada por uma burocracia judicial sem qualquer
capacidade de compreensão da sua função, da mesma forma que foi delegada no
passado pela elite brasileira aos capitães do mato.
Assim, por culpa exclusiva de sua elite, que comete suicídio,
ao Brasil e ao povo brasileiro está sendo imposta a mais dura subserviência
colonial, que poderá nos condenar por décadas a uma posição de subalternidade,
a exemplo do que ocorreu com a China após a derrota nas Guerras do Ópio
(1839-1842 e 1856-1860).
Jorge Rubem Folena - Advogado e cientista político
GGN