É complexa essa relação de pais e filhos, especialmente os da
nossa geração, presos a uma educação mais formal e a um fechamento maior entre
as gerações.
Dia desses, ousei enxergar na essência da criação de Guinga
uma relação não resolvida com o pai, especialmente depois do impressionante
“Meu Pai”, letra e música dele, apresentado em uma sessão intimista no Bar do
Alemão.
A permanente tensão da harmonia, que caminha na frente
levando a melodia consigo, parecia uma decorrência desse conflito. O tema é a
busca incessante para desvendar o enigma do pai, a tentativa permanente de
entender cada gesto, cada atitude, um conhecimento gradativo e doloroso que vai
se dando aos poucos quando, a cada nova etapa da vida, as experiências e
semelhanças vão se acumulando.
Apenas no final do percurso é que se percebe que a busca, em
si, acaba moldando nosso próprio destino, nos fazendo repetir a saga paterna,
as cabeçadas, os desafios, os erros, os desafios, como maneira de ir
internalizando o pai dentro de nós para conseguir as respostas. A melodia, o
trajeto, a vida, é mera decorrência.
Pela emoção de Guinga, uma semana depois, achei que tinha
acertado no diagnóstico.
Em cada ida a Poços vou juntando as informações sobre seu
Oscar, a saga inicial do jovem filho de imigrantes, arrimo de família desde a
adolescência, que adquiriu a farmácia com vinte e poucos anos no momento em
que, com o fim do jogo, Poços começava a se desenvolver. Era um grupo de jovens
comerciantes que mudou o centro do comércio da rua Marechal Deodoro, que
acompanhava o rio, para quatro quarteirões centrais da cidade.
Seu Oscar participou de todos os momentos, integrou todos os
clubes de apoio à cidade, da Caldense, do qual foi diretor de futebol por 20
anos, ao Lyons, Rotary, Maçonaria – que deixou como pré-condição para casar na
Igreja -, Associação Comercial e o que mais viesse em benefício da cidade. Acho
que só não foi vicentino.
Não se metia em política partidária. Recentemente encontrei
um artigo na Gazeta de Farmácia relatando seu estilo nas reuniões do Conselho
Federal e do Conselho Regional. Ouvia a todos e, depois, tentava a síntese,
harmonizando as posições em torno de princípios muito claros e sem jamais
recorrer à retórica vazia, segundo o autor do artigo.
De certo modo repetia a saga do avô, espécie de prefeito da
pequena Ain Aar, a vila que fica a poucos quilômetros de Beirute. E do próprio
pai que, segundo minhas tias, era um mediador das disputas da colônia libanesa
em Rosário.
Em casa, contrabalançava o radicalismo feroz do sogro, meu
avô Issa Sarraf, udenista, lacerdista, com pitadas de moderação. Como quando me
recomendou a leitura de uma revista liberal, Política & Negócios, se não me
engano, em contraposição a um panfleto de nome Ação Democrática, que meu avô me
mandava.
Dia desses, um psiquiatra escreveu um artigo instigante,
identificando a família como centro de conservadorismo – da ideia de conservar
valores. Em momentos de ruptura, dizia ele, famílias perdem influência nos mais
jovens. Deve ser por isso que, na adolescência, envolvido em mil atividades em
Poços e São João da Boa Vista, deixei de me aprofundar nas relações familiares
e aproveitar as informações de minhas tias Marta e Rosita.
Descobri que não estava sozinho nessa busca quando visitei o
primo Armando Bogus no Sírio Libanês e marcamos uma conversa sobre a família
quando ele saísse de lá. Morreu pouco depois e a viúva me ligou dizendo que
seus últimos momentos foram de expectativa para a conversa que nunca tivemos.
Os Schkair – nome de família – vieram de Aina Aar, vila
próxima a Beirute e se espalharam por São Paulo, São João da Boa Vista, Vargem
Grande do Sul, em uma infinidade de sobrenomes, Nassif, Constantino, Zogbi, Gebara,
Salomão, Marun, Gióia, Aschkar (juro que um dia ainda conseguirei recuperar a
árvore genealógica da família para desfazer a trapalhada dessa prática árabe do
neto ter o nome do avô como sobrenome). No Facebook foi montado um grupo com
todos esses sobrenomes, mas poucas informações sobre os ascendentes.
Mas, graças à Internet, descobri a certidão de casamento de
meu avô, Luiz (Slaib) Nassif, com minha avó Carmen Abdalla Melaj, em 1907 em
Mendoza, Argentina. Na certidão, o nome de meu bisavô, Nassif Schkair, o
inverso do Schkair Nassif, de meu pai. E, no que restou dos arquivos do bisavô,
indícios de que os conterrâneos se espalharam não apenas pelo Brasil, mas por
Rosário e Mendoza, trazendo do Líbano relações comerciais que se mantiveram no
Ocidente, especialmente para a importação de tecidos.
Dia desses estive em Buenos Aires em um primeiro contato com
parentes, que descobri através desses serviços de árvore genealógica. Três
simpáticos casais, mas refletindo a radicalização latino-americana. Havia um
feroz defensor dos militares, outro defensor de Cristina Kirchner e um terceiro
que, sempre que a conversa ameaçava chegar na política, ajudava a mudar de
assunto. Mas pouca informação sobre os ascendentes mais longínquos.
Quando minhas tias falavam das terras no Líbano, na vila em
que a família morava, sempre imaginava tendas árabes e beduínos. Depois de
conseguir recuperar as fotos de família é que me dei conta de que, em fins do
século 19, eram mais ocidentalizados que os fazendeiros brasileiros da época.
E fico me indagando a razão de jamais ter me aprofundado
nessas investigações familiares. Pela simples razão, que me foi contada por
Lindolfo Carvalho Dias, amigo de papai: “Com dez anos de idade seu pai era
argentino. Com dez anos e um dia, tornou-se mineiro”.
A família que saiu de Ain Aar, passou pelo Brasil, foi para a
Argentina, voltou para o Brasil, nada tinha de nômade. Havia uma necessidade
tão grande de fincar raízes que Poços de Caldas jamais saiu da memória do seu
Oscar. E o dia em que o vi mais exultante, feliz, foi quando reuniu dezenas de
amigos em casa para celebrar o sonho alcançado: a naturalização como
brasileiro.
Ser brasileiro foi o valor maior ensinado em casa, que se
sobrepôs às raízes libanesas, à nostalgia porteña de minhas tias. O velho
lutava em todos os momentos pelo Brasil civilizado.
Anos atrás recebi um e-mail de uma conterrânea, que morava no
início da subida da rua Rio de Janeiro para o Largo de São Benedito, nossa rua.
Quando a rua foi asfaltada, os carros passavam em velocidade imprudente.
Seu Oscar juntou os meninos do início da subida, explicou que
a rua era deles e, por isso, deveriam zelar por ela e por sua segurança. E
orientou-os a criar faixas alertando os motoristas a correrem menos.
GGN