Por
mais respeito e admiração que Lula possa suscitar, ele também erra e nisso ele
não é isento do crivo crítico de quem participa do debate público. Lula errou
ao anunciar o perdão aos golpistas no final da nova fase das caravanas, agora
em Minas Gerais. O gesto de Lula não deve ser entendido como uma manifestação
pessoal de bondade cristã. Não se trata disso. O perdão foi um ato
eminentemente político. É no aspecto e no conteúdo político que o seu gesto se
constituiu num erro. Em primeiro lugar, a declaração de perdão foi
absolutamente desnecessária. Até porque os golpistas não pediram perdão nem a
Lula, nem a Dilma e nem ao povo brasileiro. Assim, nem se sabe se estão
arrependidos e não merecem um perdão unilateral e espontâneo de quem quer que
seja.
O
perdão de Lula pode ser discutido a partir de dois ângulos diferentes: 1) sob o
ponto de vista do significado em si da manifestação de perdão, o gesto enquanto
tal, seja ele emanado de um sentimento cristão ou de um sentido laico; 2) sob o
ponto de vista tático, tal como argumentam alguns petistas, visando dar início
a um processo de alianças com partidos ou setores que se posicionaram em favor
da derrubada de Dilma.
Analise-se
o primeiro ponto de vista, o ato de perdoar em si, seja do ponto de vista
cristão, seja do ponto de vista laico, o que, na essência, é a mesma coisa. Foi
a pensadora Hannah Arendt quem discutiu esse problema de forma mais
aprofundada. Ela parte da tese correta de que as ações humanas, incluindo a
política, agregam duas características irredutíveis: a irreversibilidade e a
imprevisibilidade. O que importa aqui é a irreversibilidade: as ações humanas,
depois de levadas a cabo, não podem ser desfeitas. Não é possível desfazer o que
se fez. Por exemplo: não é possível desfazer o golpe contra a Dilma. Aqueles
atos foram feitos e não podem ser desfeitos. O que se pode fazer, é estabelecer
um novo começo: anular o golpe, prender os golpistas, derrotá-los ou
perdoá-los. Anular o golpe, no STF, não desfaz a ação dos golpistas.
Se
o remédio para a imprevisibilidade da política e das ações humanas consiste em
prometer e comprometer-se com as promessas, no caso da irreversibilidade das
ações, o remédio consistiria no perdão. O pressuposto de Arendt, quanto à
faculdade de perdoar, evidentemente é o de que, quando se erra, deve-se pedir
perdão. O perdão seria o contrário da vingança e permitiria estabelecer um novo
começo, buscando superar os erros do passado e estabelecendo uma nova promessa,
uma nova aliança.
Arendt,
contudo, faz uma ressalva nesse exercício da faculdade de perdoar: é uma ação
válida quando não se trata de crime e do mal voluntário. Seria um perdão
relativo àquele conjunto de atividades ordinárias que implicam, geralmente, em
ofensas não intencionais, segundo aquele ditame de Jesus Cristo do perdão aos
homens "porque eles não sabem o que fazem".
Neste
contexto, é difícil supor que entre os que votaram a favor do impeachment
existisse alguém que não soubesse o que estava fazendo. Temer e a camarilha do
PMDB eram figuras conhecidas. O golpismo de Cunha e de Aécio, dentre outros,
era conhecido. O programa do PMDB, antinacional antidireitos, era conhecido. A
ausência de crime de responsabilidade e a motivação puramente política contra
Dilma eram coisas sabidas.
Ademais,
quando se trata de política e de poder, é sempre preciso recorrer aos
ensinamentos de Maquiavel, alguns dos quais reforçados por Max Weber. Maquiavel
nota que os preceitos morais cristãos aplicados à política, notadamente a
piedade, a resignação, o perdão, fizeram com que o próprio cristianismo
contribuísse de forma decisiva para que o mundo fosse dominado pelos malvados.
Não por acaso, Maquiavel foi o descobridor da moral própria da política -
a virtú - que é diferente da moral cristã e da moral do senso comum. Em
política, às vezes, é preciso agir mal do ponto de vista da moral cristã e do
senso comum, para produzir o bem dos governados. Em outras, quando o governante
age segundo as virtudes cristãs e do senso comum para produzir o bem, poderá
acabar produzindo o mal para o povo.
Weber
retoma essa discussão mostrando os paradoxos entre a ética da convicção,
própria das religiões e dos grupos radicais, e a ética da responsabilidade,
inerente ás ações políticas adequadas. Mostra que para a ética da
responsabilidade não faz sentido oferecer a face esquerda quando alguém te bate
na direita, doar todos os teus bens para alcançar o reino dos céus ou, ainda,
jogar fora as armas durante uma guerra em nome da paz.
A
impressão que dá é que, em alguns casos, o comando petista perdeu a dimensão
desses paradoxos da política e da moral. Não é concebível que ministros da
Dilma deixaram ou governo três dias antes da votação do impeachment para voltar
à Câmara votar contra a presidente. De duas uma: ou foi confiança em demasia ou
foi perda de noção de como se trava a luta pelo poder.
Desta
forma, perdoar genericamente não é pedagógico, principalmente para os jovens
lutadores que compreenderam a natureza desse golpe e lutam contra as desgraças
que ele significa. A democracia requer compromissos inquebrantáveis, que não
podem ser escamoteados por movimentos táticos de interesses partidários.
Lula e as alianças
Por
outro lado, é preciso perceber que o comprometimento com o golpe não foi no mesmo
grau entre aqueles que apoiaram o impeachment. Um grupo de políticos praticou a
conspiração, a traição e o golpismo de forma deliberada: quase toda a cúpula do
PMDB, boa parte da cúpula do PSDB, lideranças dos partidos do centrão etc..
Trata-se de inimigos da democracia, de pessoas que sabiam que estavam violando
a Constituição e, portanto, praticando o crime e o mal voluntário. Mesmo que
essa gente peça perdão, não é possível perdoá-los. Afinal de contas, a política
não trata da salvação de almas. Se quiserem remediar o mal que fizeram, que
estabeleçam um novo começo que seja capaz de mostrar a sinceridade de seu
arrependimento de forma prática.
A
outra questão que a concessão do perdão de Lula suscitou é quanto ao seu
sentido tático - a busca de alianças com partidos ou setores que se
posicionaram em favor do golpe. Mesmo que a intenção tenha sido essa, o gesto
do perdão é desnecessário. Lula e o PT precisam jogar às claras. A questão é: é
factível, razoável e legítimo buscar alianças com setores que votaram pró
impeachment?
Parece
ser razoável considerar que alguns setores partidários que votaram em favor do
golpe sejam democráticos e progressistas, mas que comentaram um grave erro de
avaliação e de ação. Também não se trata de perdoá-los, mas de
estabelecer um novo começo, com base em um programa e em compromissos com a
democracia, com a igualdade, com a justiça e com o desenvolvimento nacional.
Tanto
nas guerras quanto nas estratégias políticas, o uso de táticas para enfraquecer
o lado inimigo sempre foi praticado. Mas, evidentemente. é preciso saber que há
um limite nisso, que é preciso estabelecer uma relação adequada entre os fins e
os meios para que os fins não resultem anulados pelos meios.
O
que está em jogo é que, se é legítimo e pertinente que Lula e o PT busquem
atrair setores que ontem votaram no impeachment, a frente que vai se formar em
torno da candidatura petista precisa ter uma fisionomia diferente das frentes
de conciliação ampla que se formaram nas experiências petistas pré-golpe. Trata-se
agora de formar uma aliança democrática e progressista e de propor um programa
que expresse este conteúdo a partir de compromissos claros e abertos em um
processo igualmente claro e aberto.
Reeditar
a velha conciliação, pura e simples, significa reeditar uma experiência que não
deu certo e que custou muito à democracia, ao povo, aos pobres e aos
trabalhadores. Lula e o PT precisam abrir mão de seu hegemonismo, construindo
de forma colaborativa, um novo processo com os progressistas e com as
esquerdas. Se não for assim, Lula e o PT correm o risco de agregar pouco no seu
flanco direito e de perder muito no seu flanco esquerdo.
Aldo
Fornazieri - Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).
GGN