João Dória e o
manual do perfeito gestor idiota latino-americano
Peça 1 – manual do perfeito idiota
latino-americano
Anos
atrás ficou famoso o livro "Manual do Perfeito Idiota
Latino-Americano", de Plinio Apuleyo Mendoza, acerca dos vícios do
continente. Valeria uma versão sobre uma das variáveis, o "Perfeito Gestor
Idiota Latino-Americano".
Dos
anos 90 para cá houve enormes avanços nos modelos de gestão no Brasil, graças
ao trabalho dos consultores de qualidade, de gestão, de planejamento
estratégico.
Mas
persistem vícios do velho modelo fechado, como ectoplasmas pairando no atraso
do continente.
Os
princípios do "Manual do Perfeito Gestor Idiota Latino-Americano"
seriam os seguintes:
1. O idiota bala de prata.
Um
caso clássico dos anos 80 foi a Sharp. Assumiu um novo presidente. Seu único
foco era colocar a empresa no azul. Em três meses alcançou seus objetivos. E
matou a empresa. Para equilibrar as contas desmontou o departamento de desenvolvimento
de novos produtos, o comercial, o de marketing.
2. O idiota monofásico.
Uma
organização é um organismo vivo, com áreas que se interligam, ações que
precisam ser integradas. Mas o gestor monofásico só consegue enxergar uma
dimensão da estrutura.
3. O idiota fim da história.
Tudo
o que veio antes estava errado. Logo, não precisa entender a lógica da política
anterior, as razões de sua implementação, nem analisar os casos de fracasso,
para não repetir experiências. É o especialista em repetir os mesmos erros
passados.
4. O idiota do eu-sozinho.
Todos
os grandes gestores – dos grandes conquistadores do passado aos CEOs do
presente – se destacam por ideias claras sobre onde chegar e capacidade de
informar e convencer sua tropa sobre a estratégia adotada. O gestor eu-sozinho
é o que coloca uma ideia na cabeça e a tropa que trate de adivinhar qual é ela.
5. O idiota que não erra.
É
o sujeito que acredita que a persistência no erro é o melhor caminho para se
atingir o acerto. Para sustentar a ignorância, a contrapartida é uma enorme
dose de arrogância.
No
caso Cracolândia, João Dória Jr conseguiu se enquadrar nos cinco pontos do
Manual do Perfeito Gestor Idiota Latino-Americano.
Movimento 1 - o foco estético
A
intenção única do prefeito foi o efeito estético nas ruas, esvaziar o local,
derrubar pequenos prédios que serviam de abrigo para dependentes químicos para
abrir espaço para a indústria imobiliária entrar e tornar a Cracolândia seu
cartão de visitas. Vídeo AQUI.
Mesmo
assim, o esvaziamento da área seria o desfecho de uma operação. Antes disso,
seria necessário planejar de que maneira remanejar as pessoas, providenciar
tratamento, abrigo.
Movimento 2 – o planejamento
ignorado
O
tema vinha sendo tratado pelas Secretarias de Direitos Humanos, Saúde e
Assistência Social do município (clique AQUI). Era chamado
internamente de projeto Singularidades.
A
ideia era casar projeto terapêutico personalizado com abrigo. O passo inicial
seria deixar equipes 24 horas de plantão para autocuidados na Cracolândia e
recuperar a tenda da Helvétia – um espaço de aproximação abandonado pela gestão
Dória, que serviria para tomar banho, lavar a própria roupa, descansar. Depois
dos primeiros cuidados assistenciais, a Saúde entraria para definir um
tratamento para cada doente.
Decidiu-se,
também, que ninguém sairia de onde estava, se não tivesse outro lugar para ir.
Como
explicou a Secretaria de de Assistência
Social, Soninha Francine:
“São pessoas que já estavam convivendo bem e
crescendo juntas, vamos dizer. Pessoas que davam força umas às outras, que já
estavam harmonizadas. A gente tinha o propósito de encontrar imóveis que
pudessem servir como repúblicas mistas. A gente teria que fazer uns ajustes
porque de acordo com a norma nacional as repúblicas não podem ser mistas. A
gente estava negociando tudo isso, até para mexer na norma para que as
repúblicas recebessem pessoas do mesmo sexo e mantivessem os diversos arranjos
familiares. Então, você poderia acolher um casal com filho pequeno em um
quarto, três ou quatro pessoas amigas em outro.
Enfim,
era um projeto bem elaborado no sentido de contemplar a imensa diversidade de
perfis que encontramos na Cracolândia. As pessoas têm muito em comum, mas cada
uma delas tem a sua singularidade e precisamos respeitar essas singularidades.
Por
isso que eu falei que tinha uma fase pré-Redenção, que era a presença constante
no território enquanto se providenciava as outras estruturas de acolhimento”.
No
entanto, o Perfeito Gestor Idiota Latino-Americano tinha pressa. A Secretaria
de Assistência Social foi demitida e humilhada publicamente, sob a alegação de
que não conseguia acompanhar o ritmo da prefeitura, uma demonstração inédita de
arrogância.
Movimento 3 – os erros repetidos
Em
2013, Geraldo Alckmin invadiu a Cracolândia. Levou Polícia Militar, Gaeco e o
escambau, expulsando os doentes da Cracolândia. Imediatamente eles se
espalharam por toda a região, criando várias mini-Cracolândias.
Até
o ratinho de Pavlov aprende com experiências erradas. O desastre da operação
Cracolândia de 2013 foi tema de todos os jornais. Qualquer gestor minimamente
competente se debruçaria sobre os erros anteriores para não os repetir. No
máximo, cometeria novos erros. E grande gestor Dória não sabia disso, e decidiu
novamente colocar o focinho na tomada.
No
dia 21 de maio foi deflagrada nova operação na Cracolândia
(clique AQUI). Mais de 900 agentes da Policia Civil, Militar, Guarda
Municipal iniciaram a ação. 38 pessoas foram presas e Doria declarou com a
convicção dos desinformados que “ a Cracolândia acabou”. Sem que os usuários
tivessem sido cadastrados, anunciou a destruição dos hotéis da região que
abrigavam usuários de droga. Foram cumpridos 70 mandados de busca e apreensão.
Tratores destruíram barracos e policiais expulsavam usuários que tentavam se
esconder em sacos de lixo.
A
ação foi tão amadora, que nem o próprio Secretário de Governo, Júlio Semeghini,
sabia da operação (clique AQUI). O Secretário de Saúde também não. O
único Secretário informado foi o da Segurança Urbana, José Roberto.
Imediatamente,
defensores e promotores públicos correram à prefeitura, reclamando que havia
sido desrespeitado o acordo, para que não houvesse dia D nem ação policial na
região.
A
reação do prefeito foi informar que considerava a ação policial importante,
porque abriu o caminho para que a prefeitura pudesse, finalmente, implantar o
Projeto Redenção.
O
argumento era tão despropositado que no dia seguinte a Secretária de Direitos
Humanos, Patrícia Bezerra, pediu demissão, indignada com a truculência.
Só
no dia 25 de maio Doria se preocupou em informar a equipe sobre o que estava
ocorrendo (clique AQUI).
Movimento 4 – a internação
compulsória
Com
os usuários de crack espalhando-se pelos arredores da Cracolândia, e as
manifestações de indignação espocando pela mídia, Dória resolveu dobrar a
aposta e solicitar autorização judicial para a retirada à força dos dependentes
químicos.
No
dia 23 de maio Dória pediu autorização da Justiça para internação compulsória
de drogados (clique AQUI). Houve reação instantânea de autoridades
ligadas a direitos difusos.
"É
o pedido mais esdrúxulo que eu já vi em toda a minha carreira. Promove uma
caçada humana", disse o promotor Arthur Pinto Filho. Se a solicitação
fosse aceita, a equipe médica da prefeitura teria carta branca para decidir as
internações, sem necessidade de autorização judicial para cada caso. O Cremesp
(Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) ameaçou processar médico
que realizasse a internação compulsória.
No
dia 24 de maio, a 3a Vara da Fazenda Pública proibiu a prefeitura de promover
novas remoções sem prévio cadastramento das pessoas para atendimento de saúde e
habitação. E ainda reconheceu o direito dos moradores poderem retirar pertences
e animais de estimação dos imóveis (clique AQUI).
Nem
isso demoveu Dória. Para convencer o juiz a autorizar a remoção compulsória, o
pedido mencionou três especialistas supostamente favoráveis à internação.
Nenhum deles foi consultado. O Perfeito Gestor Idiota retirou frases de
entrevistas antigas. Dois deles imediatamente reagiram à manipulação:
"Eu
não defendo internação compulsória como política pública, isso é um absurdo
completo. Eu nunca disse que acho que se resolve a Cracolândia com internação
compulsória", disse Dráuzio Varella à reportagem da Folha
(clique AQUI).
A
mesma reação foi do médico Arthur Guerra, coordenador do Programa do Grupo
Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria do
Hospital da Clínica. Retiraram uma frase sua de reportagem de 2013. Guerra não
se lembrava da entrevista e estranhou o fato de não ter sido procurado
pessoalmente. “Isto não é padrão de prefeito”, desabafou. “Eu não entendo por
que prefeitura ou governo tem que pedir autorização se esse é um procedimento
médico”.
No
dia 26 de maio, o juiz Emílio Migliano Neto, autorizou a apreensão do
dependente químicos, mas apenas para avaliação médica (clique AQUI).
A internação continuaria dependendo de ordem judicial para cada caso.
Para
convencer o juiz, a prefeitura colocou fotos de hospitais, números de leitos,
fotos de camas, das unidades do Caps, para mostrar que tudo estava sob
controle.
O
pedido era esdrúxulo, de “busca e apreensão” de dependente químico.
"Não
existe previsão legal para busca e apreensão de dependentes químicos",
afirmou o defensor público estadual Rafael Lessa. "Foi inventado nessa
petição. A lei prevê o tratamento ambulatorial e a possibilidade de internação
em caso de surtos, em momentos de crise. É uma internação rápida, sempre depois
da avaliação do médico."
Como
lembrou Sérgio Salomão Shecaira, professor de direito penal da USP, “apreensão
é de coisas, não de pessoas”.
Dois
dias depois, no dia 28 de maio o desembargador Reinaldo Miluzzi, do Tribunal de
Justiça de São Paulo, derrubou a decisão de primeira instância
(clique AQUI).
Imediatamente,
Doria anunciou que apelaria para o Supremo Tribunal Federal. Só o despreparo
para explicar essa insistência. Qualquer bom advogado ensinaria a Doria da
quase impossibilidade de um pleito dessa ordem ser acatado pelo STF. Apenas
realçaria mais ainda os absurdos que ocorriam na sua administração.
Para
amenizar a asneira, Doria recorreu a outro fogo de artifício de seu repertório:
criar uma “comissão de notáveis”, para analisar o caso. Mais cabeçada.
No
dia 30 de maio o Secretário de Saúde do estado, David Uip, conversou com
Drauzio, trocando ideias sobre o problema das drogas. Imediatamente, Doria
anunciou seu nome como integrante do tal Conselho de Notáveis. Teve que recuar
novamente. E o diagnóstico de Dráuzio sobre a operação foi pesado:
“Estou
vendo ações atabalhoadas. O que aconteceu ali na Cracolândia foram medidas que
pareciam não obedecer a nenhum planejamento detalhado, sem organização
necessária, feita às pressas” (clique AQUI).
Movimento 5 – a ignorância
científica
Há
toda uma discussão técnica sobre as formas de tratar os viciados -
especialmente os viciados em crack. Doria se valeu do senso comum mais
primário. Colocou na cabeça que viciado não tem vontade própria e precisa ser
conduzido coercitivamente.
Décadas
de estudos da psicologia, sobre as formas de tratamento do vício, foram
ignorados para que prevalecesse a opinião leiga do prefeito.
Em
apenas uma operação, Doria conseguiu reeditar todos os princípios que marcaram
o Perfeito Gestor Idiota Latino-Americano: improviso, acientificismo,
arrogância, teimosia, falta de planejamento. E vergando um blusão preto de
jovem motociclista sexagenário.
Do
GGN, Nassif