
Raquel
Dodge
Não
surpreenderam as alegações finais apresentadas ontem pela Procuradora-geral da
República, Doutora Raquel Dodge contra a Senadora Gleisi Hoffmann e o
ex-Ministro Paulo Bernardo. Como na parábola do escorpião e da tartaruga, Sua
Excelência não podia negar sua natureza. Afinal, para chegar lá, não contou com
a indicação de um chefe de governo eleito e com contas a prestar à sociedade.
Contou
tão e só com eleição corporativa na qual, para constar de ilegítima e ilegal
lista tríplice, teve que prometer rios e fundos a seus colegas, muitos dos
quais não primam por sentimentos democráticos e fidelidade à constituição. A
grande maioria do colégio eleitoral de Raquel Dodge aplaude o punitivismo tosco
e redentor que fez a instituição descarrilhar e se alimenta da bronca
antipetista disseminada pela mídia tupiniquim.
Não
foi por outra razão que a Senhora Procuradora-geral da República escolheu para
compor sua equipe criminal os procuradores da República José Alfredo, Raquel
Branquinho e Alexandre Espinosa, todos eles do time de Antônio Fernando e
Roberto Gurgel, que despontaram na elaboração da canhestra denúncia do Mensalão
e em suas pornográficas alegações finais, ambas obras primas da ficção jurídica
que talvez só encontrem par nas peças do processo Dreyfus, na França do final
do século XIX.
A
Doutora Raquel Dodge tem virtudes ausentes em seu antecessor. Não fica a
tagarelar para a mídia. É comedida e assentada. Tem maior e melhor conhecimento
técnico. Elabora mais. Não parece conspirar. Internamente, ninguém jamais teve
dúvida sobre seu lado.
Mas,
por não saber se desvencilhar da marca genética de sua corporação, acaba por
torná-la tão perniciosa quanto o ex-PGR para a democracia brasileira.
O
Ministério Público Federal (MPF) se livrou do aventureirismo de Janot, mas está
longe de se livrar da praga do punitivismo que foi plantado contra o PT e
acabou por se alastrar por toda a política, para ceifar, por igual, guerreiros
democráticos como Gleisi Hoffmann e atores reacionários e antipopulares, que
têm no patrimonialismo e no clientelismo corruptos sua prática cotidiana.
Nisso
o MPF não é diferente dos generais que reprimiram a sociedade brasileira por
vinte e um anos. Também eles jogaram no mesmo saco pessoas que qualificavam de subversivas
– os democratas – e os que rotulavam de degenerados ou corruptos.
Decapitavam-nos
por igual com uso de seus atos institucionais. E deixaram um triste legado para
o processo de redemocratização, quando todos, anistiados também por igual,
retornaram à vida pública podendo, sem distinção, se gabar de terem resistido à
ditadura. Misturaram os heróis e mártires com os aproveitadores e canalhas que,
por algum acaso mal calculado, tropeçaram na rede da repressão que haviam
sustentado.
Nossa
democracia pagou um preço alto por isso. Formou-se, ainda antes da Constituinte
de 1987-1988, o centrão político infestado dos falsos resistentes da ditadura,
que passou a chantagear todos os governos eleitos desde então. Plantaram, com
essa anistia para os reacionários descomprometidos com a causa nacional, a
semente o golpe de 2016.
Não
tardará de a sociedade se conscientizar do estrago promovido pelos arroubos
autoritários do MPF, que provocaram não só o maior terremoto político da jovem
democracia pós-constituinte, mas destruíram um promissor projeto de inclusão
social e, de lambuja, todo parque industrial da construção civil pesada, da
engenharia naval, da produção petrolífera e da engenharia nuclear, sem falar da
instalação do governo mais alheio à probidade da história do país.
O
problema, ao acordar desse pesadelo, será mais uma vez, como na anistia de
1979, distinguir entre os que lutaram contra o atraso e o golpismo dos
que, aliados do golpe, foram igualmente apeados pelo MPF em sua fúria redentorista.
Todos foram vítimas do arbítrio e do excesso de poder persecutório. Mas nem
todos são bons para a reconstrução democrática.
Já
passou da hora de acordarmos dessa letargia e de enfrentarmos esse processo de
deformação de nosso esboço de Estado democrático de Direito. É urgente
reavaliar o modo de o MPF trabalhar, com uso de ficções processuais e delações
programadas, tendentes, apenas, a tornar hegemônica sua ideologia fascista de
depuração moral e, com isso, realizar seu projeto de poder corporativo.
A
revisão constitucional do papel e dos poderes do ministério público é, do mesmo
modo que a superação da ditadura militar, pressuposto para a recuperação das
instituições democráticas e, quanto antes acontecer, menos dificuldade teremos
para separar, na política, o joio do trigo, entre os vitimados pelo abuso de
autoridade.
DCM