Os
historiadores do período Moderno (entre os quais eu me incluo), fase
tradicionalmente intercalada entre os séculos XVI e XVIII, tendem a
caracterizar esse período histórico como o formador do pensamento
contemporâneo. Homens como Voltaire, Maquiavel, Rousseau, Montesquieu,
Montaigne, Hume, Hobbes e Cesare Beccaria, nos ajudaram cada um à sua maneira,
entender as dinâmicas das sociedades e os passos dados pela humanidade na
construção de um mundo melhor para se conviver. Esses homens nos ofereceram o Estado
e algumas de suas principais instituições e formas de organização, mas também
nos alertaram sobre as possíveis consequências decorrentes do mau uso destes
instrumentos de poder.
Fiz essa
introdução básica, apenas para criar um ambiente em torno do que pretendo
escrever nos parágrafos que se seguem. A temática é o tão decantado processo
contra o ex-presidente Lula e, mais recentemente, as alegações finais
produzidas pelo ministério público. Diante da peça acusatória, emerge um tema
que se impõe de maneira natural, a presunção de inocência. Na produção dos
argumentos que se seguem irei recorrer, em determinados momentos, à companhia
de um grande mestre do período moderno, o italiano Cesare Beccaria.
Para quem
não conhece Cesare Bonesana, depois marquês de Beccaria, tratou-se de um grande
pensador do Direito do século XVIII. Sua obra Dos Delitos e das Penas é uma
interpretação filosófica da prática do Direito. O texto de Beccaria é um libelo
pela liberdade, contra a acusação injusta, contra as penas infamantes e,
principalmente, pelo uso da razão e da consciência na interpretação das leis.
De volta ao
tema, o processo do Ministério Público contra Lula é por demais conhecido e
dispensa maiores detalhes. Desde que foi feito a denúncia contra Lula, em 2016,
o processo vem se arrastando e ganhando contornos kafkianos. No decorrer do
processo os polos foram sendo definidos, de um lado, o ex-presidente e sua
banca de advogados, e do outro, o doutor Deltan Dallagnol, os outros membros da
força tarefa da Lava Jato e o juiz Sergio Moro. À primeira vista, se alguém
estiver chegando recentemente de Marte, deve estar confuso diante da informação
de que o Juiz está ao lado de um dos litigantes, afinal, pressupõe-se que cabe
ao juiz o lugar de arbitro, ou seja, de quem esteja acima do conflito e sem
envolvimento com um dos lados.
Se esse
mesmo turista, que chegou recentemente de uma longa viagem por Marte, estiver
achando que estamos sendo leviano com o magistrado vip de Curitiba, vamos a
alguns fatos que falam por eles mesmos. Em um levantamento básico na imprensa
via site de busca, encontramos os seguintes exemplos da “magistratura morana”
vamos a eles acompanhados de pequenos adendos analíticos: “prisão provisória de
3 anos”, acho que nesse caso existe um erro de semântica com a palavra
provisório. “Condução coercitiva de investigado sob a alegação de que estava
protegendo o investigado”, justificativa mais esdruxula, contraditória e
inverossímil, impossível.
“Televisionamento ao vivo de audiência sob sigilo legal”, enquadramento perfeito no demagogo discurso de prestação de conta à opinião pública. “Vazamentos de conversas sigilosas para redes de televisão”, repete-se a explicação anterior, com a ressalva da seletividade de vazamentos ou, indo no popular: para os amigos tudo, para os inimigos a lei. “Manifestação via redes sociais solicitando apoio da população à sua cruzada moralista”, eu sou do tempo em que discrição era o outro nome que se dava a um Juiz. E, finalmente, o mais absurdo de todos eles: “O próprio juiz se posiciona como chefe de força tarefa e de operação policial, ocupando o mesmo lado do acusador”, já não seria isso um clássico caso de antecipação de sentença?
“Televisionamento ao vivo de audiência sob sigilo legal”, enquadramento perfeito no demagogo discurso de prestação de conta à opinião pública. “Vazamentos de conversas sigilosas para redes de televisão”, repete-se a explicação anterior, com a ressalva da seletividade de vazamentos ou, indo no popular: para os amigos tudo, para os inimigos a lei. “Manifestação via redes sociais solicitando apoio da população à sua cruzada moralista”, eu sou do tempo em que discrição era o outro nome que se dava a um Juiz. E, finalmente, o mais absurdo de todos eles: “O próprio juiz se posiciona como chefe de força tarefa e de operação policial, ocupando o mesmo lado do acusador”, já não seria isso um clássico caso de antecipação de sentença?
Retornando
ao processo kafkiano, digo, de Lula, vamos refletir um pouco sobre a grande
peça teatral que ele se tornou. Já identificamos os atores envolvidos e a
temática central da trama, falta, portanto, o desenrolar do roteiro. Desde a
denúncia, um personagem tem se sobressaído ao buscar para si, insistentemente,
os holofotes, refiro-me ao procurador Deltan Dallagnol. O que se espera do
Ministério Público em um processo penal? Recorro a quem mais conhece, o
promotor Marcio Berclaz apontou os caminhos. Dele se espera a abertura de uma
acusação a partir de “critérios de tradição, coerência e integridade, e, ainda
assim, paradoxal e contraditoriamente sempre aberto a revisar ou desconstruir a
própria pretensão acusatória”¹. Mais à frente, diz o doutor Berclaz que cabe ao
órgão e seus representantes, promover “justiça e não condenações estatísticas
ou matemáticas”. Por mais que possamos entender que o Ministério Público, de
certa forma, será sempre uma das partes de um processo, dele se espera o
cumprimento do dever de maneira equilibrada, visando se aproximar ao máximo do
que podemos entender como uma atuação neutra e baseado pelas evidências, de
preferência irrefutáveis, que saiam sempre, em última instância,
exclusivamente das provas.
Como,
entretanto, se comportou e se comporta o Ministério Público no processo contra
o ex-presidente Lula? Vamos aos fatos. Acelerando os ponteiros do processo,
pulando fase inicial de investigação, acusação e defesa, vamos ao famoso Power
Point do doutor Dallagnol e sua pirotecnia escatológica. Sobre a apresentação,
muito já se falou, e sobrou apenas a conclusão, já transformada em “clássico do
Direito”, de que se não temos prova, temos convicção.
O Power
Point do doutor Dallagnol é daqueles espetáculos que entram para a história
como exemplos de como a democracia e o Estado de Direito podem ser manipulados
a depender da motivação de quem o manipula. Em tempos de clichês,
inevitavelmente temos que recorrer a um deles, o citado procurador empreendeu
uma vigorosa “construção de narrativa”. Costumo dizer aos meus alunos que com
um pouco de esforço consigo vincular em uma trajetória linear o romano Júlio
Cesar ao inefável Donald Trump. Com um bom encadeamento de fatos é possível
construir uma narrativa que até consiga a condenação do Papa Francisco.
Ao fazer uso
do Power Point como instrumento argumentativo, o doutor Dallagnol adaptou-se
perfeitamente ao que tem sido chamado criticamente de “cultura do Power Point”.
Uma profusão de slides e de montagens de palavras chaves encobre a incapacidade
do apresentador de ser detalhista nos argumentos, e cria a sensação, no
espectador, de estar diante de algo cientificamente rigoroso e irrefutável. No
fundo, são só jogos de palavras e imagens, que podem fazer sucesso nas
orquestradas e previsíveis apresentações de auto ajuda, mas que é uma grande
irresponsabilidade ética, quando utilizada em uma peça acusatória do campo
jurídico.
Não
satisfeito com o frágil e débil Power Point o doutor Dallagnol nos apresentou,
em suas alegações finais, uma narrativa que seria cômica, não fosse tão
trágica. Suas alegações finais contra o ex-presidente Lula, trataram-se,
simplesmente, da tradução em texto, da frágil estrutura argumentativa do Power
Point. Contudo, diferente da linguagem do Power Point, o texto escrito exige um
pouco mais em termos de detalhamento argumentativo, o procurador manteve a
essência da “temos convicção, ainda que as provas sejam frágeis”, mas teve que
fazer um esforço hercúleo para justificar suas mais de trezentas páginas.
Vejamos o que nos diz o citado documento produzido pelo Ministério Público.
No capítulo
identificado como “Pressupostos Teóricos”, o doutor Dallagnol pretendeu embasar
teoricamente sua tese. Pareceu querer demonstrar que ele é muito mais do que um
simples calouro que disfarça seu nervosismo e pouco domínio do assunto, se
escondendo atrás de um Power Point. Mas o digníssimo procurador, não vai além
dos argumentos de um quase formando que precisa impressionar a banca. Principia
com um profundo desconhecimento de como funciona o presidencialismo de coalizão
no Brasil, vejamos: “Nesse contexto, a distribuição, por LULA, de cargos para
políticos e agremiações estava, em várias situações, associada a um esquema de
desvio de dinheiro público e pagamento de vantagens indevidas. Trata-se de um complexo
esquema criminoso praticado em variadas etapas e que envolveu diversas
estruturas de poder, público e privado.”
Com esse
argumento, o procurador condena não só Lula, mas todos os que estão exercendo
cargo de executivo no país. A distribuição de cargos para aliados é prática
comum em um sistema político que funciona sem construção de maiorias prévias e
sem fidelidade programática. Não concordo com essa prática, acho que devemos
mudar o sistema, mas vai uma grande distancia transformá-lo em argumento jurídico
sem a devida prova do fato. Entretanto, Dallagnol não tem dúvida a atribuir
essa prática no governo Lula como um “complexo esquema criminoso”. Nos governos
municipais e estaduais, cuja prática também é realizada, imagino que o
procurador acredite que todas aconteçam dentro do mais perfeito republicanismo.
Não
satisfeito, diz o autor através do documento: “A análise dos fatos engloba a
existência de um cartel que se relacionava de forma espúria com diretorias da
maior estatal do país por mecanismo de corrupção que era praticado com elevado
grau de sofisticação” Não adianta o procurador saber que os diversos delatores
da Lava-Jato afirmaram que a corrupção da Petrobras antecede em muito o governo
Lula. Não adianta o procurador saber que uma auditoria, feita pela KPMG, não
identificou participação do ex-presidente Lula na corrupção da Petrobras. Isso
pode até ser uma prova, mas não suficiente para abalar a convicção de
Dallagnol.
Em outra
página, o trecho mais perturbador, por ser o mais perigoso: “Se é extremamente
importante a repressão aos chamados delitos de poder e se, simultaneamente,
constituem crimes de difícil prova, o que se deve fazer? A solução mais
razoável é reconhecer a dificuldade probatória e, tendo ela como pano de fundo,
medir adequadamente o ônus da acusação, mantendo simultaneamente todas as
garantias da defesa”. Veja a parte grifada, percebeu o perigo, Dallagnol admite
a dificuldade das provas, não me restando alternativa que não seja recorrer ao
maior jurista da história deste país, meu conterrâneo Rui Barbosa: “A acusação
é sempre um infortúnio enquanto não verificada pela prova.” Portanto, na
métrica do doutor Dallagnol, o ônus da prova não é de quem acusa, pelo
contrário, quem acusa, pode se dar ao luxo de acusar justamente pela dificuldade
de se adquirir as provas. Acho que agora, aquele turista que esteve em Marte,
está começando a entender as coisas.
Ainda sobre
provas - é estranho, mas nesta peça acusatória do Ministério Público, provas é
o que menos interessa – vamos ao século XVIII dar voz ao mestre Cesare
Beccaria: “quando a força de várias provas depende da verdade de uma só, o
número dessas provas nada acrescenta nem subtrai à probabilidade do fato:
merecem pouca consideração, porque, destruindo a única prova que parece certa,
derrubais todas as outras. Mas, quando as provas são independentes, isto é
quando cada indício se prova à parte, quanto mais numerosos forem esses
indícios, tanto mais provável será o delito, porque a falsidade de uma prova em
nada influi sobre a certeza das restantes”². Traduzindo Beccaria, diríamos que
o Ministério Público, não só não tem várias provas independentes contra Lula,
como sua única “prova” - que se destruída derruba todas as outras – é
simplesmente a admissão de ausência de provas.
Nas páginas
que se seguem do documento, o procurador, para demonstrar conhecimento teórico
e embasar suas teses, passa a citar uma série de autores e de exemplos em que
todos tendem a reconhecer que não há diferença de natureza entre prova
direta e indireta. Esquece ele de que prova, é prova aqui e em qualquer lugar
do mundo. É a vida de um ser humano que está em jogo, e, como acontece em um
jogo de futebol, quando um pênalti precisa ser visto várias vezes para termos
certeza de que foi pênalti, o olhar de condenação tem que ser condescendente
com o árbitro.
No capítulo
intitulado: “Modernas técnicas de análise de evidências”, o documento do
Ministério Público recorre ao probabilismo, na vertente do bayesianismo, e o
explanacionismo. Não tenho as credenciais intelectuais para analisar tais
técnicas, mas indico o excelente e didático artigo do professor Lênio Streck,
sobre o tema³. Antecipo uma precisa e lapidar assertiva de Lênio Streck
sobre o tema em questão: “O agente do MPF nos deve accountability. Deve
ser imparcial. Não pode dizer o que quer. Há uma estrutura externa que deve
constranger a sua subjetividade. Essa estrutura é formada pela Constituição, as
leis, as teorias da prova, as teorias sobre a verdade, enfim, há uma tradição
acerca do que são garantias processuais.” O doutor Dallagnol e sua trupe
desconhecem o que significa “constranger a sua subjetividade”, em outras
palavras, falta-lhe a grandeza de perceber e submeter-se à outra frase mestra
do Direito: o juiz é apenas aquele que erra por último.
Diante desse
impasse metodológico e da completa falta de capacidade de se constranger, por
parte do procurador, não podemos nos esquecer de que existe o outro polo do
processo sofrendo, diretamente, o fundamentalismo moralista e cruzadista de
alguns membros do Ministério Público. Ao outro polo, no caso o ex-presidente
Lula, resta-lhe apegar-se à essência básica do Direito de que todos são
inocentes até que se prove em contrário e apostar na objetividade da presunção
de inocência.
Filha da
Revolução Francesa, a presunção da inocência foi um avanço fundamental em
termos de direitos humanos. De acordo com o artigo 9º da Declaração dos
Direitos do Homem e dos Cidadãos, de 1789, “Todo o acusado se presume
inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo,
todo o rigor não necessário à guarda da sua pessoa, deverá ser severamente
reprimido pela Lei”. Essa passou a ser a premissa básica que forjou as relações
humanas nas sociedades contemporâneas. O cidadão é o centro do poder e para seu
bem estar deve convergir as leis e os governos. Vejamos o que escreveu Beccaria
sobre questão semelhante: “Sejam públicos os julgamentos; sejam-no também as
provas do crime: e a opinião, que é talvez o único laço das sociedades, porá
freio à violência e às paixões. O povo dirá: Não somos escravos, mas protegidos
pelas leis.” Esse é o sentimento que deve permear um processo conduzido por um
órgão como o Ministério Público, o réu deve sentir-se protegido pela lei, mas o
que vemos é a lei sendo usada pelo agente público para constranger o réu.
A forma como
vem sendo conduzido o processo do ex-presidente Lula fica evidente o permanente
flerte com a politização da justiça. Em tempos de redes sociais com seus
“juízes” de plantão sempre prontos a julgar e condenar a partir do mais
simplório argumento, o doutor Dallagnol, com seu Power Point, virou a estrela
do espetáculo. O ex-ministro da Justiça, Eugênio Aragão, foi de uma felicidade
sutil e precisa ao afirmar que “lugar de procurador não é em púlpito de Igreja,
palco de show ou em congressos para se vangloriar de seus feitos”.
Utilizar
probabilidades e algoritmos para decidir sobre a liberdade de um cidadão é
deixar a sociedade a mercê de interpretações jurídicas demasiado abertas. O
Direito deve ser exercido no limite entre a liberdade e a pena. Ao agente,
operador do Direito, cabe o bom senso de não se sentir acima do próprio
Direito. Vejamos o que podemos aprender com Beccaria sobre as interpretações da
lei: “O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A maior deve ser a lei geral; a
menor, a ação conforme ou não à lei; a consequência, a liberdade ou a pena. Se
o juiz for constrangido a fazer um raciocínio a mais, ou se o fizer por conta
própria, tudo se torna incerto e obscuro.”
A forma
instrumental e tendenciosa como vem sendo conduzido, pelo Ministério Público, o
processo do ex-presidente Lula tem sido eivado de raciocínios incertos e
obscuros. Defender maior lisura e neutralidade no julgamento do ex-presidente,
não significa fechar os olhos para possíveis erros cometidos por um agente
público eleito para governar de maneira correta e honesta. Defender maior
lisura e neutralidade no julgamento do ex-presidente Lula, é defender o
respeito ao Estado de Direito e a própria democracia. É defender o avanço
civilizatório da sociedade, fruto das lutas populares e das cabeças brilhantes
dos grandes pensadores iluministas a exemplo do mestre Cesare Beccaria.
Eduardo José
Santos Borges - Doutor em História Social – Professor de História Moderna da
UNEB.
¹ http://justificando.cartacapital.com.br/2016/03/28/qual-e-o-lugar-do-ministerio-publico-no-processo-penal/
²
http://livros01.livrosgratis.com.br/eb000015.pdf.
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