O cidadão contra a Lei
Desde o Império Romano se tem claro que o Estado
dispõe de tantos meios e recursos que é preciso dar-lhe um limite. Lá, no Velho
Continente, depois da Revolta do Monte Sagrado (494 a.C.) os plebeus ganharam o
direito de terem um representante seu no Senado. A figura recebeu o nome de
“Tribuno da Plebe”, também para que ficasse claro que ele não era (nem nunca
poderia ser) senador. As fontes falam em algo entre 4 e 10 representantes da
plebe. O número jamais faria frente ao número de senadores, mas o Tribuno tinha
dois importantes poderes: tinha poder de veto e sua casa era inviolável. O
poder de veto dava ao Tribuno uma oportunidade de barganhar em favor da plebe e
a inviolabilidade de sua casa o protegia das artimanhas do Estado e de
opositores.
Esta percepção, da possibilidade do abuso do poder,
vai e voltar durante a Idade e Média e Modernidade, tornando-se sólida
apenas após a Revolução Francesa. Era preciso proteger o cidadão do Estado. Os
direitos individuais, tornados, ao longo do século XIX e XX, pétreos e, em
seguida, aumentados para os “direitos humanos”, têm por função também tal
proteção. Para dizer pouco, esta é a pedra-de-toque da construção de todo o
arcabouço político e social norte-americano.
Thomas Hobbes, por exemplo, defendia o direito do
cidadão se rebelar contra o Estado no caso deste estar-lhe ameaçando a vida.
John Adams, um dos “pais fundadores” dos EUA, em discussões sobre o arcabouço
jurídico de lá, lembrava que se a constituição não provesse meios
institucionais para proteger o cidadão das arbitrariedades do Estado ou não
fosse seguida, “sempre existiria a solução armada”.
Ainda hoje, apenas o viés político diferencia uma
“guerra de resistência” de populações “submetidas à violência do Estado” de uma
sedição ilegal. Muitas discussões na ONU são travadas neste sentido. Populações
que se levantavam contra a “opressão” do presidente X são tratadas como
oposição legítima e precisam ser “defendidos”. Outros grupos, que pediam
independência na Espanha, na Escócia ou mesmo no Canadá e nos EUA, são tratados
como criminosos que buscam a divisão do país. Semana passada mesmo, o
plebiscito na Catalunha, tão ilegal aos olhos constitucionais do país, foi
tratado como “um absurdo”, ao passo que a mesma ilegalidade na Venezuela – na
mesma página de jornal – era incentivada como uma manifestação lícita de
resistência. Pelo Estado, as leis são torcidas, consideradas ou desconsideradas
segundo a política.
Desde as questões legais, econômicas até o
monopólio legítimo da força, o Estado tem uma pluralidade de ferramentas à sua
disposição, que fazem o cidadão simplesmente incapaz de resistir. As
constituições deveriam ser uma regra dura a ser seguida como limite ao poder,
exatamente por conta desta disparidade. Mas, no Brasil, a constituição é letra
morta e o poder judiciário avança sobre o cidadão com uma voracidade nunca
vista na história do país. Se, durante a ditadura civil-militar de 64-85,
tivemos um judiciário que se rebelava constantemente, hoje parece que foi
formado um coro e conservador punitivista, observado de longe por aqueles que
discordam. Quase sempre em silêncio. Poucas e valorosas vozes têm se levantado
contra o abuso. E têm sofrido por isto.
A verdade é que depois de mais de três anos de
investigações, quebra de sigilos fiscais, financeiros, vazamentos, escutas
legais e clandestinas sobre Lula, sua família, seus advogados e sabe-se lá quem
mais, tudo o que o Estado conseguiu foi uma delação premiada feita por
retificação. Num primeiro momento, Léo Pinheiro tinha dado depoimentos semelhantes
a tantas outras testemunhas, no sentido de afirmar a não participação de Lula
em nada. Então, jogando a constituição no lixo junto com mais de 200 anos de
tradição do liberalismo, Moro condena Pinheiro a mais de dez anos de cadeia e o
tribunal vai elevando a soma das penas para mais de 26 anos. Concomitantemente,
este mesmo e pernicioso Estado, libera, por exemplo, o doleiro Yousseff para
“prisão domiciliar”, assim como tantos outros “colaboradores”.
Jogando com uma teia de mentiras impossível de ser
verificada (pois não existem provas), delatores, testemunhas, delegados,
promotores e tantos outros trabalhando por seus próprios interesses, participam
de um teatro mal encenado em que prevalecem interesses privados sobre qualquer
noção de justiça. Moro escolhe discricionariamente ao que dar crédito e o que
desconsiderar, conforme seu conservadorismo atávico. E se esconde atrás do
Estado, jogando com a cumplicidade de vários setores que, por anos, também
usaram o Estado como seus escritórios de gerenciamento.
Para mim, uma prefeitura jogar água em cidadãos em
situação de rua, ameaça-os de morte. Para mim, não pagar salários e deixar os
servidores sem condições de sobreviver, ameaça-os de morte. Para mim, ordenar
violência policial em manifestações públicas, com armas proibidas até em
convenções sobre guerra, ameaça o povo de morte. Perseguições jurídicas, como a
levada a cabo por Moro, ameaça a todos nós cidadãos. Enquanto perseguem uns,
matam tantos outros de fome, frio ou com tiros mesmo. Estamos sitiados e Hobbes,
no século XVII, já admitia o direito à rebelião contra um Estado sem limites.
Do GGN