O golpe promoveu a mais profunda desorganização institucional
que o país já experimentou nos breves períodos de sua frágil vida democrática.
A corrosão da legitimidade institucional levou o Executivo e o Legislativo à
irrelevância, à infuncionalidade e ao desgoverno. Esses poderes, simplesmente
faliram, não funcionam, a não ser num único aspecto: o de fazer o mal ao povo e
ao Brasil. Com a falência do governo e do Congresso, sobrou o poder Judiciário,
que se tornou o centro das decisões políticas do país, usurpando competências e
violando a Constituição. Se, por algum tempo após o golpe, o Judiciário,
comandado pelo STF, dava a aparência de ser um poder unitário com as naturais
divergências, aos poucos foi revelando ser um poder anárquico e promotor da
anarquia judicial, da ilegalidade e da recorrente violação da Constituição.
O Judiciário como um
todo, na verdade,
sempre foi um poder tirânico contra os pobres, perseguindo-os, adotando uma
justiça enviesada para proteger a propriedade contra os direitos civis e
sociais das pessoas simples do povo, enchendo as cadeias por pessoas que
cometeram pequenos delitos de baixo poder ofensivo. O Estado de Direito nunca
existiu para 60% a 70% da população. No Brasil só existe democracia para cerca
de 30% das pessoas. A violência jurídica é uma das formas mais cruéis da
violência do Estado a serviço de uma elite perversa contra os pobres. Com o
golpe, o Estado de Exceção, a violência judicial, o seu arbítrio e a sua
parcialidade atingiram também setores da classe política, principalmente
políticos petistas, notadamente o presidente Lula.
A anarquia judicial se acentuou após a criminosa omissão
do STF em não barrar o impeachment sem crime de responsabilidade, permitindo
que a Constituição fosse violada. Ali ficou claro que amplos setores do
Judiciário integravam o golpe parlamentar-judicial. Igualmente criminosa foi a
conivência do STF com os arbítrios de violação da Constituição cometidos pelo
juiz Moro, a exemplo das conduções coercitivas, da transformação das prisões
como instrumentos coativos para arrancar delações premiadas mentirosas e
orientadas e da gravação ilegal da presidente Dilma e a divulgação do conteúdo.
Em qualquer Estado democrático sério, Moro estaria preso por ter conspirado
contra a segurança do Estado.
Outro atentado grave ao
ordenamento jurídico do país consistiu no fato de o juiz Moro ter julgado o
caso do triplex,
pois, não tendo este caso nenhuma relação com a Petrobras, Moro não era o juiz
natural para julgá-lo. Assim, ficou evidente que a 13ª Vara Federal de Curitiba
foi sendo transformada em tribunal de exceção e Moro em juiz de exceção. Agora
Edson Fachin viola o mesmo princípio do juiz natural ao remeter recursos da
defesa de Lula para o plenário do STF, quando o procedimento correto seria que
eles fossem julgados pela segunda turma.
A anarquia judicial se
define exatamente por isto: para cada caso e para casos semelhantes são aplicadas regras jurídicas
diferentes, ao sabor do arbítrio do juiz e segundo seu interesse político ou
segundo quem é a pessoa do réu. Lula tem seus direitos e garantias fundamentais
violados de forma despudorada, criminosa e explícita. A anarquia judicial
quebra a uniformidade procedimental, desorganiza a jurisprudência, agride a
Constituição e as leis e gera uma imensa insegurança jurídica e um vácuo
constitucional. Ao agir de forma anárquica, o Judiciário e o STF agridem a
cultura jurídica e constitucional que, às duras penas, tenta se firmar.
O caso da prisão em
após condenação em segunda instância, sem que a sentença tenha transitado em julgado, como
determina a Constituição, é a mais violenta transgressão das garantias e
direitos individuais fundamentais. A concessão de poderes judiciais ao Senado
para salvar Aécio Neves foi o ápice escandaloso dos exemplos de parcialidade
política e partidária de uma Corte Constitucional, só comparável ao arbítrio de
tribunais que servem ditaduras. Como juízes de primeiro grau e de tribunais
superiores vêm recorrentemente cometendo crimes contra a Constituição e a ordem
jurídica do país é preciso lutar para que sejam julgados e punidos. Chega a ser
estranho que nem a OAB e nem os grandes juristas tenham proposto isto.
Após as eleições será
preciso organizar um movimento Constituinte do povo, que faça emergir uma nova
Constituição a partir do poder popular. Uma Constituição fundante da soberania do povo quanto a sua
origem popular e quando ao seu resultado. Isto significa que a Constituição
terá que ser submetida a um referendum popular, sem o qual não há soberania do
povo. No Brasil, o povo nunca foi soberano, pois nenhuma Constituição foi
referendada por ele. Uma Constituinte soberana e exclusiva deveria destituir o
atual STF e os colegiados de outros tribunais superiores, julgar os magistrados
que cometeram crimes contra a Constituição e reorganizar de forma democrática
um novo Judiciário, limitando os mandatos dos ministros dos tribunais
superiores e encontrando outras formas de suas escolhas. Este é um aspecto
fundamental para que o Brasil tenha uma democracia efetiva.
O impedimento de Lula e a noite trevosa
Ao manter Lula preso
sem crime e sem prova, sem prova porque sem crime, e ao tentar impedi-lo de concorrer às
eleições, juízes, desembargadores e ministros dos tribunais superiores estão
cometendo um grave crime político, não só contra Lula, mas contra o povo e
contra a nação. O povo quer Lula presidente, pois, em sua maioria, o povo o
reconhece como o único líder capaz de tirar o país da grave crise, do caos e da
desesperança.
O Judiciário será
responsável por mergulhar o Brasil numa noite trevosa, de tormentas e de
tormentos, mais grave da que já se encontra. O dilaceramento social, econômico, político e moral
do país requer um presidente que seja um líder forte, capaz de unificar o povo
sob a sua liderança e seu governo. Por mais qualidades e virtudes que tenham
alguns dos atuais candidatos, nenhum deles tem a alargada liderança que Lula
exerce junto ao povo. Um governo democraticamente forte só se constitui
se tiver ampla legitimidade popular, conferida pelas urnas. Lula é o único
capaz de alcançar esta condição. Se o Brasil for impedido de se reencontrar
politicamente pela via da legitimidade democrática poderá mergulhar num caos
ainda mais profundo ou poderá se tornar prisioneiro de poder da força e do
arbítrio.
O povo chegou no limite da suportabilidade das injúrias, dos
agravos e da humilhação que sofre por parte das elites e de um Estado que é seu
inimigo. Isto precisa servir também de advertência às lideranças progressistas
e de esquerda e a muitos deputados que nada representam a não ser esquemas
ossificados de poder. Será preciso trabalhar para que surjam novas lideranças,
autênticas, dos setores explorados e oprimidos. Será preciso varrer esses
deputados acomodados, os burocratas e esses líderes fracos e sem virtudes para
os cantos da vida política, pois fracassaram.
A representação branca,
de classe média, universitária, faliu. Pouco ou nada tem a dizer aos pobres, aos negros, às
mulheres, aos jovens e ao povo das periferias. Pouco fez para esses abandonados
e sem destino. Esses setores precisam se auto-representarem. Estão surgindo
novas lideranças e novos candidatos no seio do povo sofrido. Mais dia menos dia
forçarão as portas dos esquemas constituídos de poder e arrebentarão as
fechaduras trancadas pelos esquemas burocráticos e acomodados do status quo.
Se, neste momento, Lula é a única Estrela Polar a indicar o caminho de chegada,
essas novas lideranças, devem ser o novo Sal da Terra das novas lutas e de uma
nova forma de fazer política. Devem ser a luz a espargir esperanças alicerçadas
em movimentos sociais e políticos organizados e fortes, capazes de conter e
derrotar as investidas das elites cruéis que querem perpetuar a tragédia do
povo brasileiro.
Aldo Fornazieri - Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).
Do GGN