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Ubes
O
presidente da República foi flagrado cometendo uma série de crimes e as provas
foram transmitidas para todo o país. Com exceção de um protesto aqui, outro
ali, a vida seguiu em sua trágica normalidade. Em muitos outros países o
presidente teria que renunciar imediatamente e, quiçá, estaria preso. Se
resistisse, os palácios estariam cercados por milhares de pessoas e milhões se
colocariam nas ruas até a saída de tal criminoso, pois as instituições
políticas são sagradas, por expressarem a dignidade e a moralidade nacional.
Aqui
não. No Brasil tudo é possível. Grupos criminosos podem usar das instituições
do poder ao seu bel prazer. Afinal de contas, no Brasil nunca tivemos
república. Até mesmo a oposição, que ontem foi apeada do governo, dá de ombros
e muitos chegam a suspeitar que a denúncia contra Temer é um golpe dentro do
golpe. Que existem vários interesses em jogo na denúncia, qualquer pessoa
razoavelmente informada sabe. Mas daí adotar posturas passivas em face da
existência de uma quadrilha no comando do país significa pouco se importar com
os destinos do Brasil e de seu povo, priorizando mais o cálculo político de
partidos e grupos particulares.
O
Brasil tem uma unidade política e territorial, mas não tem alma, não tem
caráter, não tem dignidade e não tem um povo. Somos uma soma de partes
desconexas. A unidade política e territorial foi alcançada às custas da
violência dos poderosos, dos colonizadores, dos bandeirantes, dos escravocratas
do Império, dos coronéis da Primeira República, dos industriais que amalgamaram
as paredes de suas empresas com o suor e o sangue dos trabalhadores, com a
miséria e a degradação servil dos lavradores pobres.
Índios
foram massacrados; escravos foram mortos e açoitados; a dissidência foi dizimada; as lutas sociais
foram tratadas com baionetas, cassetetes e balas. A nossa alma, a alma
brasileira, foi ganhando duas testuras: submissão e indiferença. Não temos
valores, não temos vínculos societários, não temos costumes que amalgamam o
nosso caráter e somos o povo, dentre todas as Américas, que tem o menor índice
de confiabilidade interpessoal, como mostram várias pesquisas.
Na
trágica normalidade da nossa história não nos revoltamos contra o nosso
dominador colonial. Ele nos concedeu a Independência como obra de sua graça.
Não fizemos uma guerra civil contra os escravocratas e não fizemos uma
revolução republicana. A dor e os cadáveres foram se amontoando ao longo dos
tempos e o verde de nossas florestas foi se tingindo com sangue dos mais
fracos, dos deserdados. Hoje mesmo, não nos indignamos com as 60 mil mortes
violentas anuais ou com as 50 mil vítimas fatais no trânsito e os mais de 200
mil feridos graves. Não nos importamos com as mortes dos jovens pobres e negros
das periferias e com a assustadora violência contra as mulheres. Tudo é normal,
tragicamente normal.
Quando
nós, os debaixo, chegamos ao poder, sentamos à mesa dos nossos inimigos,
brindamos, comemoramos e libamos com eles e, no nosso deslumbramento,
acreditamos que estamos definitivamente aceitos na Casa Grande dos palácios. Só
nos damos conta do nosso vergonhoso engano no dia em que os nossos inimigos nos
apunhalam pelas constas e nos jogam dos palácios.
Nunca
fomos uma democracia racial e, no fundo, nunca fomos democracia nenhuma, pois
sempre nos faltou o critério irredutível da igualdade e da sociedade justa para
que pudéssemos ostentar o título de democracia. Nos contentamos com os surtos
de crescimento econômico e com as migalhas das parcas reduções das
desigualdades e estufamos o peito para dizer que alcançamos a redenção ou que
estamos no caminho dela. No governo, entregamos bilhões de reais aos campões
nacionais sem perceber que são velhacos, que embolsam o dinheiro e que são os
primeiros a dar as costas ao Brasil e ao seu povo.
No
Brasil, a mobilidade social é exígua, as estratificações sociais são abissais e
não somos capazes de transformar essas diferenças em lutas radicais, em
insurreições, em revoltas. Preferimos sentar à mesa dos nossos inimigos e
negociar com eles, de forma subalterna. Aceitamos os pactos dos privilégios dos
de cima e, em nome da tese imoral de que os fins justificam os meios, nos
corrompemos como todos e aceitamos o assalto sistemático do capital aos
recursos públicos, aos orçamentos, aos fundos públicos, aos recursos subsidiados
e, ainda, aliviamos os ricos e penalizamos os pobres em termos tributários.
Quando
percebemos os nossos enganos, nos indignamos mais com palavras jogadas ao vento
do que com atitudes e lutas. Boa parte das nossas lutas não passam de
piqueniques cívicos nas avenidas das grandes cidades. E, em nome de tudo isto,
das auto-justificativas para os nossos enganos, sentimos um alívio na
consciência, rejeitamos os sentimentos de culpa, mas não somos capazes de
perceber que não temos alma, não temos caráter, não temos moral e não temos
coragem.
Da
mesma forma que aceitamos as chacinas, os massacres nos presídios, a violência
policial nos morros e nas favelas, aceitamos passivamente a destruição da
educação, da saúde, da ciência e da pesquisa. Aceitamos que o povo seja uma
massa ignara e sem cultura, sem civilidade e sem civilização. Continuamos sendo
um povo abastardado, somos filhos de negras e índias engravidadas pela
violência dos invasores, das elites, do capital, das classes políticas que
fracassaram em conduzir este país a um patamar de dignidade para seu povo.
Aceitamos
a destruição das nossas florestas e da nosso biodiversidade, o envenenamento
das nossas águas e das nossas terras porque temos a mesma alma dominada pela
cobiça de nos sentirmos bem quando estamos sentados à mesa dos senhores e
porque queremos alcançar o fruto sem plantar a árvore. Se algum lampejo de
consciência, de alma ou de caráter nacional existe, isto é coisa restrita à
vida intelectual, não do povo. O povo não tem nenhuma referência significativa
em nossa história, em algum herói brasileiro, em algum pai-fundador, em alguma
proclamação de independência ou república, em algum texto constitucional em
algum líder exemplar.
Somos
governados pela submissão e pela indiferença. Não somos capazes de olhar à
nossa volta e de perceber as nossas tragédias. Nos condoemos com as tragédias
do além-mar, mas não com as nossas. Não temos a dignidade dos sentimentos
humanos da solidariedade, da piedade, da compaixão. Não somos capazes de nos
indignar e não seremos capazes de gerar revoltas, insurreições, mesmo que
pacíficas. Mesmo que pacíficas, mas com força suficiente para mudar os rumos do
nosso país. Se não nos indignarmos e não gerarmos atitudes fortes, não teremos
uma comunidade de destino, não teremos uma alma com um povo, não geraremos um
futuro digno e a história nos verá como gerações de incapazes, de indiferentes
e de pessoas que não se preocuparam em imprimir um conteúdo significativo na
sua passagem pela vida na Terra.
Do
GGN, por Aldo Fornazieri - Professor da Escola de Sociologia e Política.