Finalmente,
no livro "Juros, moeda e ortodoxia: Teorias monetárias e controvérsias
políticas - André Lara Rezende - um dos dois pais do Real - descobriu os
cabeças de planilha, a imensa legião de economistas que, armados de slogans e
planilhas, sem conhecimento de história, de política, até dos princípios
fundamentais de uma economia liberalado.
Ao seu
conhecimento e criatividade na política monetária - que resultou na fórmula
engenhosa do Real -, o companheiro André inclui agora condimentos de história
econômica, preocupações com os impactos políticos das medidas monetárias e
outros elementos essenciais nas formulações econômicas, deixando de lado os
bordões simplistas com os quais eles, os economistas do Real, conquistaram o
jornalismo econômico, abandonado veleidades de análise de realidades complexas.
Não é à toa
as expressões de surpresa de Mirian Leitão, na entrevista feita na Globonews.
André só faltou falar em problemas estruturais da economia (bordão dos
desenvolvimentistas), ao lado dos problemas institucionais (bordão dos
liberais), para um certo pensamento econômico que só sabe seguir o manual de
frases feitas: se a inflação sobe, é porque os juros estão altos; se o dólar
cai, é porque a reforma da Previdência vai ser aprovada; se sobe, é porque não
se sabe se a reforma da Previdência será aprovada.
Quando
juntar as duas pontas, se terá, finalmente, um diagnóstico preciso de país, por
enquanto nublado por uma polarização fundamentalmente emburrecedora. E André
poderá ser alçado ao restrito panteão dos grandes pensadores econômicos,
ocupado hoje exclusivamente por Delfim Neto.
Há uma
lógica no livro.
Inicialmente,
aceita as principais críticas feitas às extravagâncias desse modelo, implantado
no Real e aprofundado com as metas inflacionárias introduzidas em 2002.
Essas
críticas estão sintetizadas no capítulo “Juros”, do meu livro “O Jornalismo dos
Anos 90”, e em “Os Cabeças de Planilha”. Neles, coloco os principais artigos
que escrevi nos pós-Real, incluindo a polêmica que travei com o próprio André em
1995.
As
principais críticas são justamente sobre a incapacidade de olhar a realidade,
de analisar as correlações na economia, as relações básicas de causa e efeito,
ou de custo-benefício.
Depois,
tenta definir uma nova linha retórica de defesa do que ele chama de
“liberalismo ilustrado”, em contraposição ao liberalismo iletrado que dominou o
discurso do mercado e da mídia nas últimas décadas.
No fundo,
André tenta livrar o neoliberalismo matematizado das principais críticas
sofridas e formular uma nova crítica ao desenvolvimentismo, em bases um pouco
mais complexas.
Neste
artigo, vou analisar os dois primeiros capítulos do livro de André: a
Introdução e o capítulo em que analisa a disputa Roberto Simonsen x Eduardo
Gudin, pegando as principais conclusões que ele apresenta e remontar as peças
em um novo quebra-cabeças.
(As
Posições, a que me refiro no artigo, são aquelas que constam na leitura do
livro pelo Kindle, da Amazon).
Peça 1 – o custo excessivo de
políticas anti-inflacionárias monetárias
O ponto
central de sua tese é uma análise custo-benefício banal, mas que foi escondida
essas décadas todas por uma cobertura midiática primária e de curto prazo: a de
que os custos de uma política de estabilização, baseada em juros, foi
imensamente superior aos benefícios de uma inflação controlada.
Mais do que
os custos fiscais, econômicos e sociais de curto prazo, André aponta para o
custo político do longo prazo, a desmoralização das teses neoliberais pelos
estragos cometidos.
A raiz dos
equívocos das políticas monetárias, segundo ele, está no que ele chama de
"apego à materialidade da moeda", a ideia de que a moeda sempre
deverá estar lastreada e conversível a algum que tivesse valor intrínseco, como
o ouro, em outras épocas.
Na
Introdução, na Posição 112, André endossa a maior crítica feita aos
cabeças-de-planilha:
"A
excessiva pretensão de mimetizar as ciências exatas levou-a a um beco sem
saída, a uma excessiva formalização estéril, deixando os policy-makers,
sobretudo os Bancos Centrais que nunca tiveram tanto poder e tanta
responsabilidade, sem mapas conceituais".
Só foi
possível chegar a essas conclusões quando abandonou o padrão fim-da-história do
mercado e mergulhou na histórica econômica brasileira.
Peça 2 - os limites políticos das
políticas econômicas
Mostra como
a política econômica tem que sempre considerar os limites impostos pela
realidade, sob pena de fazer naufragar o próprio governo.
Primeiro,
recorre ao marketing do mercado, informando que, no governo Café Filho, Eugênio
Gudin montou um “dream team” na Economia, composto pelo presidente da Sumoc
(Superintendência de Moeda e Crédito) Octávio Gouvêa de Bulhões e pelo
banqueiro Clemente Mariani na presidência do Banco do Brasil.
Depois,
admite que o “dream team” marcou um belíssimo gol contra, ao implantar uma
política monetária tão restritiva que provocou uma crise bancária e um festival
de inadimplência, praticamente inviabilizando o governo Café Filho e
comprometendo por década e meia o discurso monetarista-liberal.
Aliás, foi
essa falta de jeito de Bulhões com o mundo real que levou à quebra do Banco
Nacional Imobiliário de Roxo Loureiro, que tinha o velho Otávio Frias de
Oliveira como sócio minoritário.
Nesse ponto,
André quase chega ao cerne da questão.
Não se pode
analisar teorias econômicas despregadas da realidade política. Se determinada
política é inviável politicamente, ou seja, provoca tal tipo de reação que
inviabiliza o próprio governo que a implementou, obviamente está errada.
Durante muito tempo, os cabeças de planilha se esconderam no álibi de que a
realidade é que estava errada.
Anote bem
esta peça, que é central para demonstrar o que André ainda não descobriu: o que
define o resultado político não é apenas a maior ou menor gradação dos
sacrifícios impostos ao país, mas o conjunto de forças que sustenta o projeto.
Peça 3 – o modelo de desenvolvimento
de Gudin
Diz que, ao
contrário do que se propaga, Gudin concordava com Simonsen na importância do
desenvolvimento, do combate à miséria, da industrialização. Apenas discordava
da maneira de se proceder a isso.
Seu
receituário era:
A modernização institucional
O modelo de
Gudin contemplava um conjunto reformas.
“Sustentava
que o crescimento econômico advinha do ganho de produtividade, que requereria
investimento em capital, em tecnologia e na educação da força de trabalho, num
processo que só era capaz de se renovar e de se sustentar numa economia aberta,
onde há competição”.
A poupança interna
Na Posição
216, sustenta que Simonsen desconsiderava integralmente a questão das fontes
internas de poupança. Contava apenas com empréstimos oficiais de governo a
governo.
Na Posição 221, garante que
"substituiu-se
a necessidade de criação de poupança interna por um ingênuo e irreal otimismo
quanto à viabilidade de utilização de créditos externos, que viriam a provocar
crises recorrentes de balanço de pagamentos na segunda metade do século XX”.
Na Posição 223 garante que
"a
dependência da poupança externa e os persistentes déficits com o exterior não
eram, entretanto, o que preocupava Simonsen, quando sugeria também barreiras
alfandegárias. Estas, eufemisticamente chamadas de normas de política comercial,
eram necessárias para “assegurar o êxito dos cometimentos previstos”, ou seja,
impedir que a competição externa inviabilizasse o esforço de industrialização
estatal.
Segundo
André:
“(Gudin)
argumenta que não há como crescer sem investir e que para investir é preciso
criar poupança, mas que, por sua vez, a geração de poupança esbarra na pobreza
e no baixíssimo nível de consumo da grande maioria da população, criando assim
um círculo vicioso. Para que esse círculo fosse rompido, seria preciso contar
com a poupança e com o investimento estrangeiros, que requereriam a garantia
legal e institucional de um tratamento não discriminatório”.
O Estado necessário
Segundo
André, Gudin nunca foi a favor do Estado mínimo, mas do Estado necessário. Ou
seja, um Estado institucionalmente forte que regulasse o mercado, criando
condições de competição que jamais seriam alcançadas se se deixasse tudo ao
sabor do livre mercado.
Sem dúvida.
O que o diferencia fundamentalmente dos ortodoxos do período dos cabeças de
planilha atuais.
Diz ele, na Posição 255, que Gudin
“Demonstrava
compreender que o mercado competitivo é uma concepção abstrata e artificial, um
ideal-tipo, que deveria ser utilizado para pautar a legislação e as
instituições. Recomendava que se criassem instituições para evitar todo tipo de
abuso econômico que pudesse afastar a economia do ideal competitivo”.
E sempre apostou no papel exclusivo
da iniciativa privada para o crescimento do país, com o Estado limitando-se ao
seu papel institucional
“Onde,
porém, a divergência deixa de ser em parte terminológica para atingir os
fundamentos de política econômica, é quando o ilustre relator proclama a
impossibilidade de acelerar a expansão da renda nacional com a simples
iniciativa privada”.
A industrialização e a produtividade
André
explica que Gudin era a favor, sim, da industrialização. Não considerava que o
país tivesse riquezas naturais suficientes, como a Argentina, para abrir mão da
indústria.
Na Posição 364, cita trechos de
Gudin, em que admite que
“Na resposta
à réplica de Simonsen, Gudin é ainda mais direto: “Eu não faço nem nunca fiz
guerra à indústria nacional. Num país montanhoso, com terras pobres de húmus e
ricas de erosão, seria um contrassenso não nos industrializarmos”. Não é
possível ser mais claro”.
O ponto
central do pensamento de Gudin era a importância da produtividade. Por isso, a
industrialização e o crescimento exigiam a criação das condições básicas para o
aumento do investimento e da produtividade.
Indústria
que não tivesse, de pronto, índices competitivos de produtividade, não poderia
se instalar.
A crítica ao ponto central
Diz André
Infelizmente,
tanto para ele como para o país, Gudin não sabia que a teoria monetária com que
trabalhava era profundamente inadequada aos processos inflacionários crônicos,
como já era o caso da inflação no Brasil no início dos anos 1950.
Ou seja.
Gudin era a favor da industrialização, do combate à miséria, do crescimento, da
imortalidade da alma, das virtudes da economia, do combate aos vícios. Mas a
pedra angular de sua estratégia estava errada.
Peça 4 – o que faltou nas análises de
André
A questão política
Voltemos ao
receituário de Gudin. Ele propunha políticas de estímulo ao capital nacional,
mudanças institucionais para investimento em inovação, educação e outros
instrumentos de criação de mercados modernos e regulados.
Tudo isso
demandava políticas públicas e, é claro, disputas sobre o orçamento público, o
grande locus de disputa entre mercado e Nação, cujos recursos eram avidamente
disputados pelos grupos hegemônicos – fundamentalmente a cafeicultura paulista
e os grupos cariocas aliados comerciais de grupos estrangeiros.
Como entrar
nessa guerra, sem dispor dos grupos aliados com suficiente musculatura?
Nos Estados
Unidos, durante um bom período do século 19 os industriais da costa do
Atlântico ganharam massa crítica e lograram uma política industrialista que
garantiu o salto da economia norte-americana. Lutavam contra os interesses do
sul rural e dos financistas ingleses aliados dos financistas norte-americanos.
O mesmo ocorreu na Alemanha, França, Japão e o próprio Estados Unidos, na 2a revolução
industrial.
A grande
dificuldade na industrialização alemã foi, durante muito tempo, o fato dos
interesses britânicos serem muito mais influentes, internamente, do que os da
indústria alemã. Cooptavam intelectuais, economistas, advogados.
Cria-se um
círculo vicioso, o velho paradoxo do ovo e da galinha: só se consegue criar um
ambiente interno adequado ao desenvolvimento industrial quando se tem uma
indústria capaz de influenciar na criação do ambiente interno. E sem uma
indústria capaz de influenciar na criação do ambiente interno, a política
econômica sempre será capturada por outros interesses hegemônicos,
fundamentalmente os setores primários e os grandes capitais. E não será o poder
da vontade de um grupo de iluminados que processará a mudança.
Essas
mudanças ocorrem em momentos raros na história de um país, quase sempre
impulsionadas pelo Sr. Crise, emérito estadista, sobre quem falaremos mais
adiante.
A defesa da industrialização
Gudin e
Roberto Campos tinham propostas, sim, de compensar a falta de competitividade
da economia brasileira. Mas, ou André não aprofundou ainda seus estudos da
história econômica do período, ou não quis investir mais ainda sobre os dogmas
consagrados dos liberais iletrados.
A proposta
defendida era substituir o sistema de taxas múltiplas de câmbio (criadas por
Oswaldo Aranha para controlar as importações) por uma unificação do câmbio e
por um sistema de tarifas de importação. Mas, com as mudanças acompanhadas por
uma grande desvalorização cambial.
Campos
percebeu no início dos anos 50 que a Coreia iria se transformar em uma potência
industrial, puxada pela desvalorização da sua moeda. Essa desvalorização
abriria espaço para as exportações e, à medida que se consolidasse o novo
setor, ele seria o agente das mudanças, dos investimentos em educação,
inovação.
E, depois,
no interregno Café Filho e no governo JK. Assessorados por técnicos do calibre
de Bulhões, Casemiro Dias Ribeiro e Roberto Campos, e por especialistas
internacionais, tentaram a unificação cambial acompanhada de uma desvalorização.
Em ambos os
casos não conseguiram justamente porque não havia massa crítica, na indústria
de máquinas e equipamentos, para avalizar a proposta. Café e JK refugaram com
medo que a inflação acelerasse e foram pressionados por industriais que dependiam
da importação de máquinas e equipamentos.
Posteriormente,
no governo Jânio Quadros, Bulhões desconsiderou novamente as limitações
políticas e conseguiu emplacar a Instrução 204 da Sumoc liberalizando o câmbio.
Foi um dos fatores da perda de popularidade de Jânio e de sua posterior
renúncia.
O livre fluxo de capitais
Outro dos
dogmas não abordados por André é a questão do livre fluxo de capitais.
O Brasil já
tinha um amplo histórico dos estragos promovidos pela abertura indiscriminada
ao capital estrangeiro, na semi-estagnação do início do século 20. A cada
movimento de apreciação do cruzeiro, havia uma devastação no parque industrial
incipiente.
Na era
Gudin-Bulhões-Campos o país estava suficientemente escaldado. É só conferir a
posição do Ministro Souza Costa nas discussões que precederam o Tratado de
Bretton Woods, radicalmente a favor de modelos que controlassem os fluxos
internacionais de capital.
A livre
circulação faz com que os capitais busquem os países que ofereçam melhor
rentabilidade. E analisem oportunidades imediatas. No início do século, a
entrada e saída de libras provocava verdadeiros terremotos no tecido econômico,
matando empresas.
Sem
condições iniciais de competitividade com os países centrais, havia a
necessidade de remunerar o capital (mesmo o produtivo) com taxas irrealmente
elevadas, arrebentando com as contas públicas - da mesma maneira que as
políticas monetárias recentes, alvos do livro de André.
André
enfatiza em vários momentos a análise fria da competitividade como balizamento das
políticas econômicas. Como analisaria a diferença rotunda de rentabilidade dos
investimentos ingleses em ferrovias na Europa e no Brasil?
A
remuneração do capital inglês nas ferrovias brasileiras era imensamente
superior ao custo de oportunidade na Inglaterra ou na Europa. E simplesmente
porque, em parceria com capitais paulistas, tinha enorme influência na
definição das políticas públicas do Império.
Por isso, o
país só conseguia avançar em períodos de crise. A industrialização dos anos 30
deu-se pela moratória que Vargas teve que enfrentar no início da década. Sem
alternativas, foi obrigado a impedir o livre fluxo de capitais. E foi isso que
obrigou o capital-gafanhoto a descer à terra, ajudando no financiamento inicial
do parque industrial paulista e criando alguma massa crítica para as bandeiras
de industrialização.
O Estado e as fontes internas de
financiamento
Como se viu,
Gudin, apud André, criticava o modelo brasileiro de buscar financiamento em
instituições multilaterais e países, ao invés de incentivar a poupança interna.
E critica o fato do Estado brasileiro ter entrado de cabeça na economia.
Diz ele, na Posição 385:
“A
participação do Estado afugenta o capital privado, pelo justo receio da forçosa
preponderância que o Estado exercerá na administração da empresa e na escolha
de seus dirigentes, feita, em regra, sob critérios políticos”.
Vamos
conferir o que acontecia no mundo real.
O maior
investimento estatal do período foi a criação da Petrobras.
Já está no
prelo a biografia que escrevi sobre o maior capitalista brasileiro do período,
Walther Moreira Salles, o banqueiro que melhor sabia arregimentar capitais
internos para projetos nacionais.
No período
em que convivi com ele, início dos anos 90, o economista Paulo Guedes soltou a
máxima: o Brasil se estrepou quando criou a Petrobras com capitais públicos e
não privados. Indaguei do embaixador o que achava disso. E ele:
- Bobagem!
Não havia capital privado suficiente na época.
Ora, Vargas
tinha seus capitalistas, os Kablin, os Matarazzo, Moreira Salles, os Jafet.
Havia uma simbiose política ampla, a ponto dos Klabin terem entrado na
indústria de base graças às contrapartidas que Vargas conseguiu dos Estados
Unidos, em um dos acordos firmados com financiamentos governo a governo
(condenado por Gudin).
Se houvesse
capital suficiente para bancar a criação da Petrobras, teriam batalhado por
isso.
No entanto,
a capitalização da Petrobras exigiu um enorme malabarismo fiscal, em uma noite
em Petrópolis, com a participação de vários desses industriais, como Wolf
Klabin. Venceu a proposta de Glycon de Paiva – intimamente ligado ao grupo da
ortodoxia econômica - de instituir uma contribuição a ser paga por todas as
prefeituras do país. Simplesmente porque não havia capital privado suficiente
para bancar a aventura.
Ou seja, a
própria linha de frente da indústria brasileira da época entendeu a necessidade
de o Estado entrar na economia.
Na época, as
tentativas de criar siderurgia privada fracassaram, como foi o caso da
siderúrgica de Ricardo Jafet.
Não se
minimizem os problemas decorrentes da subordinação de estatais a interesses
políticos. Mas não lhes tire a importância central na alavancagem da economia
brasileira.
O financiamento e o investimento
externos
Voltemos ao
primado da política e da economia e às propostas de Gudin de estímulo total aos
investimentos externos.
Uma das
razões da crise do balanço de pagamentos do início dos anos 50 foi justamente o
tratamento escandalosamente brando dado ao capital estrangeiro no período
Dutra, quando o “dream team” se aquecia para entrar em campo.
A agenda
inicial do governo Dutra propunha (https://goo.gl/XBBwMQ)
(1)
restringir os “lucros extraordinários” que, alegava-se, industriais locais
gozavam com a inflação às custas de consumidores e sob proteção estatal; ao
mesmo tempo, (2) forçá-los a modernizar-se para atender o mercado interno, em
condições de menor escassez de divisas e maior concorrência e e (3) o
controle do financiamento externo pelo Estado, canalizado de governo a governo,
afastaria os capitais privados estrangeiros receosos de rígidos controles sobre
suas atividades,
O que aconteceu na prática:
Permitiu-se
às empresas estrangeiras remeter dinheiro para a matriz com base no seu
balanço. Elas tomavam empréstimos no Banco do Brasil, em cruzeiros, aumentavam
artificialmente seu capital e, com base no capital ampliado, aumentavam as
transferências de dólares para as matrizes. E tudo isso porque ficaram
politicamente influentes no governo ultraliberal de Dutra.
Deu para
entender as ligações entre poder econômico, poder político e política
econômica?
O Estado deu
ampla liberdade às multinacionais. Com essa ampla liberdade, elas criaram redes
de relações políticas e econômicas. Com o novo poder que passaram a dispor
geraram distorções de monta que jogaram a economia em crise obrigando o Estado,
por falta de alternativas, a restringir novamente seu poder.
Os
empréstimos governo a governo garantiram a criação de grupos nacionais
relevantes, como os Klabin. A abertura indiscriminada da economia garantiu uma
baita crise cambial. Como André explica esse paradoxo no pensamento de Gudin?
Ora, a
grande razão para a política comercial e cambial restritiva, especialmente após
o governo “liberal” de Dutra dizimar as reservas cambiais brasileiras, era o
estrangulamento das contas externas. A proteção à indústria nacional foi
subproduto.
O
crescimento demandava importações. As importações pressionavam as contas
externas, que eram sangradas pela remessa de lucros e dividendos, exigindo que
o país recorresse a sucessivas renegociações da dívida externa. Era a falta de
indústria que promovia os desequilíbrios externos, não o excesso de proteção.
Os
empréstimos institucionais (FMI, Eximbank dos EUA) eram decorrentes das
necessidades brasileiras de fechar as contas, não de opção estratégica. E foram
muito importantes para suprir as fontes privadas. Até o segundo governo Vargas,
o financiamento externo era fundamentalmente comercial, bancado pelas empresas
exportadores norte-americanas e europeias.
Gudin e o Estado necessário
O ambiente
econômico proposto por Gudin pressupunha competição, tanto interna quanto
externa. Criticava o excessivo protecionismo alfandegário e o subsídio a
empresas ineficientes.
André não
consegue se desvencilhar do paradoxo do ovo e da galinha. Como ter uma economia
aberta, com competição, antes de se ter uma economia competitiva? Como ter uma
economia competitiva abrindo-se a economia antes das empresas nacionais terem
condições de competir com as estrangeiras?
É tudo uma
questão de gradação. Há a necessidade de proteção inteligente às empresas
infantes. Antes de se ter um ambiente economicamente competitivo, a defesa
contra as importações foi relevante para atrair multinacionais a instalar suas
fábricas por aqui.
Evidentemente
há o risco da proteção excessiva.
Mas André,
que pretende exorcizar as simplificações econômicas, a dicotomia simplória
entre esquerda e direita, é incapaz de navegar nesses mares da relatividade.
Quais os limites dessa proteção? Quais as ferramentas institucionais para
impedir a perpetuação dos benefícios?
E, passando
a ser um defensor da subordinação da teoria à realidade, não consegue explicar
como Campos, o mais ardente defensor da iniciativa privada, foi peça central em
duas intervenções essenciais do Estado brasileiro: a criação do BNDES e a
estatização da Light, quando percebeu, nos anos 70, que não a empresa era
estrategicamente relevante, não havia interesse dos controladores estrangeiros
em investir nem capacidade do capital nacional de assumir.
A impossibilidade de crescer com
inflação
Na Posição
297 André destaca a afirmação de Gudin sobre a impossibilidade de crescer com
inflação:
A
estabilidade da moeda é questão integralmente desconsiderada na proposta de
Simonsen, mas condição essencial para o crescimento segundo Gudin, para quem
“não há plano econômico possível no regime de desordenada inflação, em que
vimos, há tanto tempo, incidindo”.
Ignácio
Rangel, um dos mais inovadores economistas brasileiros, com sólido conhecimento
sobre a realidade econômica – desenvolvido como técnico do BNDES – enxergou na
inflação a maneira dos setores mais dinâmicos da economia se capitalizarem, em
detrimento dos setores mais atrasados.
Os
desenvolvimentistas cometeram enormes erros de avaliação. Mas nunca viram a
inflação como vantagem para fortalecer o Estado. No máximo, viam como uma
gambiarra para contornar problemas fiscais.
Rangel, além
disso, via a inflação como instrumento de crescimento dos grupos financeiros,
quando entendeu que o capitalismo entrava na era da financeirização e o Brasil
ainda não possuía bancos com fôlego para se internacionalizarem.
Consagrado,
hoje em dia, como um plano vitorioso, o Plano de Metas, de JK, se deu em
ambiente inflacionário e, mais do que isso, em desconsideração com princípios
comezinhos da responsabilidade fiscal.
Não se vá
defender a inflação como instrumento de política econômica. Ela ocorre quando
impasses políticos não são resolvidos. Mas vale o registro, para ver como
a economia tem razões que muitas vezes a teoria econômica desconhece.
Ironias à
parte, o livro de André é politicamente importante por ajudar a quebrar as
barreiras que um ideologismo rasteiro impôs à discussão econômica. E vindo do
pensador mais respeitado pelos cabeças de planilha do mercado e da mídia.
André não
abre mão do discurso de torcedor, ao caricaturizar posições dos
desenvolvimentistas, usando os métodos das caricaturas aos liberais, que ele
critica em seu livro. Faz parte: ele escreve para um público de torcedores,
intelectualmente limitados como todos os torcedores.
Abre espaço
para um movimento oposto: o da crítica aos erros do desenvolvimentismo para
poder se chegar a uma síntese que, despidas as simplificações ideológicas,
permita se montar um diagnóstico seguro para uma realidade complexa como a
brasileira.
GGN