Mostrando postagens com marcador estado judicial. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador estado judicial. Mostrar todas as postagens

sábado, 13 de maio de 2017

A morte do Estado de direito e o fortalecimento do Estado penal

Dez de maio de 2017: o dia da vergonha. O dia em que o processo penal do espetáculo (nos dizeres de Rubens Casara) atingiu seu ponto máximo. Foi a demonstração de que o uso e a destruição da imagem de um ser humano (presumidamente inocente), para o deleite de uma plateia enfurecida pela desinformação generalizada espalhada diariamente pela grande mídia – movida unicamente por seus interesses empresariais –, em manifesta contrariedade ao que dispõe o art. 221, I, da Constituição Federal ¹, não encontram limites.

Nos últimos dias, os veículos de comunicação têm dispensado quase que 24 horas diárias de sua programação para divulgar o conteúdo de delações (que nem provas são) que supostamente incriminariam o principal réu da famosa ação penal. As informações e opiniões recorrentes dos grandes conglomerados midiáticos são todas no sentido da culpa inequívoca do acusado. Para eles, a condenação é questão de tempo. Não importam as provas, não importam os direitos ao contraditório e à ampla defesa; nada disso importa.

É nítida a intensão da mídia em manter a atenção da dita “opinião pública” (como se menos de dez famílias donas das maiores empresas de comunicação pudessem representá-la) nesse caso, pois, assim, tira-se o foco da destruição – a todo vapor – dos direitos sociais e trabalhistas levada a efeito pelo governo ilegítimo que se apossou do poder. Manter a população anestesiada, acreditando que a questão mais importante para o país é a acusação contra Lula é conveniente, para que os retrocessos intentados pelos atuais poderes da república (com iniciais minúsculas mesmo) não sejam percebidos pelos mais prejudicados.

Voltemos à operação.
Costumeiramente, operação é um nome dado a atividades policiais. Segundo nosso ordenamento jurídico, Polícia, Ministério Público e Judiciário cumprem papéis diversos na persecução penal. Se essas três estâncias agem conjuntamente, o Estado de Direito é enfraquecido. Se todos estão engajados em comprovar teses acusatórias, não há fiscalização mútua, própria de toda atividade estatal. Bem por isso, o Sub-Procurador Geral da República Eugênio Aragão defende a tese de que forças-tarefas como essa são inconstitucionais. E parece que tem razão.

O caso Lula, para uma análise séria e imparcial das práticas ilegais que passaram a ser adotadas no país, é emblemático. Outras hipóteses de arbítrio também poderiam ser citadas, como o da condução coercitiva de um jornalista para que divulgasse suas fontes (cujo sigilo é garantido constitucionalmente) ou o do empresário que ficou preso mais de seis meses preventivamente – perdendo emprego, casamento e convivência com a filha recém-nascida – para depois ser absolvido pelo Tribunal Regional Federal (apesar de isso acontecer cotidianamente com os clientes preferidos do sistema de justiça criminal) e tantos outros.

Mas para Lula, negou-se a existência do Estado de Direito. Negou-se a ele – e a sua família – a condição de cidadão, o que é gravíssimo.

A divulgação para a imprensa de conversas telefônicas – que nenhuma importância tinham para o processo –, entre o réu e a Presidente da República, entre ele e seu advogado e até mesmo entre sua esposa e um filho, foi uma das primeiras amostras do que estava por vir. Se dúvidas ainda há sobre a ilegalidade de tais providências, uma rápida leitura dos artigos 8º, 9º e 10 da Lei n. 9.296/96 espanca qualquer dúvida. O artigo 8º diz que deve ser preservado o sigilo das diligências, gravações e transcrições da interceptação, o artigo 9º estabelece que a gravação que não interessar à prova será inutilizada, e o artigo 10 prevê como crime quebrar segredo de Justiça de interceptações telefônicas, cominando pena de 2 a 4 anos de reclusão. Desnecessário recordar a opinião do falecido ministro Teori Zavascki sobre isso.

O espetáculo da condução coercitiva do acusado, sem que tivesse sido intimado anteriormente para depor, é outra demonstração do afastamento das regras processuais no feito criminal em comento. A condução coercitiva é permitida somente para o “ofendido” (art. 201, § 1º, do CPP) ou se, “regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado” (art. 218 do CPP). Não há margem para interpretação. Nada, rigorosamente nada, existe no ordenamento jurídico pátrio que permita uma condução coercitiva como as que vêm sendo realizadas. Se agentes públicos podem violar as leis, por que os investigados e acusados não podem?

Tantas arbitrariedades fizeram com que o réu perdesse sua esposa de forma triste. Graças à fúria persecutória que não enxerga seres humanos a sua frente, os últimos dias dela foram dos mais infelizes. É uma pequena amostra do que o Estado Penal (na expressão de Loic Wacquant) pode causar aos selecionados como inimigos.

Com relação aos abusos cometidos pela autointitulada “operação”, é importante lembrar da opinião de juristas do quilate de Celso Antonio Bandeira de Mello (Professor titular de direito administrativo da PUC-SP), para quem ela “está sendo conduzida com violação aos princípios fundamentais do Estado de Direito”²; de Fábio Konder Comparato (Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP), que a conceitua como um “acúmulo de ilegalidades”³; e até mesmo para o grande jurista italiano Luigi Ferrajoli, que disse, no Parlamento italiano, que a operação lava-jato não busca a verdade, mas sim “o consenso da opinião pública” (além de dizer que o processo de impeachment contra Dilma Rousseff foi “insensato e infundado”4).

Os direitos e garantias fundamentais devem estar à disposição de todos, inclusive de nossos adversários e inimigos (Lênio Streck5). Enquanto não enxergarmos o outro como uma extensão de nós mesmos, a tendência é afundarmos cada vez mais no voluntarismo daqueles que se julgam ungidos por uma força superior para salvar o país, mas, não obstante, nos estão levando para o fundo do poço.

Calar ante essa tragédia, e consequentemente compactuar com ela, é intolerável.

Gustavo Roberto Costa - Promotor de Justiça em São Paulo. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador e membro do Movimento LEAP-Brasil – Agentes da Lei contra a Proibição.

¹ Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:
I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;

 Do DCM