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Paulo Whitaker/Reuters
Em
artigo publicado no Conjur nesta sábado (12), os advogados Ruiz Ritter e Luíza
Richter abordam as polêmicas em torno da figura do juiz parcial. Em alta, o
assunto foi puxado por causa do episódio com o desembargador Paulo Espírito
Santo, do TRF2, que fez um comentário ardiloso demonstrando subvalorizar a
função das defesas.
Mas
a Lava Jato também marcou a discussão com os questionamentos feitos pela defesa
de Lula ao juiz Sergio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba. O magistrado
respondeu a inúmeros pedidos de suspeição e aguarda julgamento no Conselho
Nacional de Justiça pela falta de imparcialidade em relação ao ex-presidente,
segundo alegam os advogados.
Para
Ritter e Richter, juiz imparcial não é a mesma coisa que juiz neutro, sem
subjetividade sobre o que irá julgar. O juiz imparcial é aquele que, mesmo
diante da subjetividade, sabe que deve dar tratamento isonômico às partes.
Por
Ruiz Ritter e Luíza Richter, No
Conjur.
Inverno
de 2017, século XXI, e ainda é possível observar no Poder Judiciário, por meio
de seus representantes, evidentemente, um poder que, ao revés do seu papel
constitucional vinculado à um Estado Democrático de Direito, confunde-se
(revela-se) com um poder supremo-divino. Há, inclusive, magistrado “perdoando”
(sim, a palavra é essa) advogados por exercerem seu ofício: “Eu perdoo o
advogado que vem aqui defender clientes. Essa é a função do advogado e a gente
tem que perdoar” (frase do desembargador Paulo Espírito Santo, do Tribunal
Regional Federal da 2ª Região)[1]. E há quem acredite (e sustente) que nosso
sistema de Justiça criminal não se alimenta da mesma lógica autoritária que
vigorava por detrás da Santa Inquisição, em que juízes-inquisidores detinham
múltiplos e ilimitados poderes, já que representantes da vontade de Deus. Será
mesmo?
Não
vamos adentrar na problemática atinente ao ativismo judicial, tão já
fundamentadamente criticado por Lenio Streck (há bastante tempo, diga-se), que
chegou a escrever recentemente um livro intitulado Juiz não é Deus[2], para dar
apenas um oportuno exemplo; na necessidade de se compreender em definitivo o
Estado como um Estado laico, o que haveria de estar incontroverso desde o
movimento de secularização propagado no século XVIII; nem tampouco na
relevância do artigo 133 da CF/88, que chancela a indispensabilidade do
advogado à administração da Justiça[3]. Mas há algo preocupante nessa
manifestação também por outro viés, que impõe nossa reflexão: é legítima uma
jurisdição quando esta não é visivelmente (estética da aparência) imparcial?
Vale
recordar que, ao se falar em jurisdição, a título de definição, se está falando
de uma garantia constitucional, um direito fundamental de qualquer cidadão de
ser julgado por um juiz natural (pré-determinado por lei, e não ocasional,
escolhido) e imparcial, qualidade que reflete justamente a essência dessa
jurisdição[4], sua verdadeira condição de validade[5].
E
elementar que ao se falar em imparcialidade não se está falando da superada
ideia de neutralidade (ausência de pré-conceitos inerentes a subjetividade
humana). Ao contrário, se está assumindo essa subjetividade, para compreender
tal imparcialidade (em síntese) como uma construção jurídica, que visa
preservar a cognição do julgador, para que não beneficie uma parte em
detrimento da outra, involuntariamente ou não, impondo, para tanto, limites à
sua atuação no processo, no sentido de conduzi-lo como terceiro desinteressado
(alheio[6]) em relação às partes, comprometendo-se, contudo, em apreciar na
totalidade ambas as versões apresentadas sobre o fato e proporcionar sempre
igualdade de tratamento e oportunidades aos envolvidos. É de pressuposto de
legitimidade e limite que se trata, portanto.
Tolerar
que um magistrado manifeste seu “perdão” a um advogado é tolerar uma jurisdição
vazia e ilegítima, porque parcial. E não há a necessidade de se analisar o
processo para constatar essa parcialidade: ela é inerente à admissão de que o
patrocínio da defesa constitui-se em pecado (que deva ser perdoado). Não é
admissível que um magistrado faça um juízo de valor depreciativo dessa forma a
uma das partes. Trata-se, aqui, de violação da imparcialidade subjetiva, como
definida pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos (desde 1982, a partir do
caso Piersack vs. Bélgica[7]), posto que está explícita a preferência do
magistrado pela parte acusadora, a qual não necessita de perdão para atuar no
processo.
Nada
mais sintomático do processo penal contemporâneo, tragicamente moldado pela
operação "lava jato". Não surpreende, aliás, que o MPF proponha, no
âmbito de suas 10 medidas contra à corrupção, a restrição de recursos criminais
quando “meramente protelatórios” e não apresente qualquer definição a respeito
de quais são estes, atribuindo ao Judiciário o poder dessa decisão[8]. Ou,
ainda, que responsabilize as defesas e o sistema recursal como um todo pela
morosidade do Judiciário e pelo “não cumprimento da lei”[9]. O órgão acusador,
afinal, sabe para qual lado pende a balança, e a defesa está cada vez mais
vista como um entrave à (ainda vigente) busca da “verdade” no processo,
exatamente como era considerada no âmbito da Inquisição[10].
Enfim,
respondendo à questão inicial: ilegítima uma jurisdição que não afaste qualquer
dúvida sobre sua parcialidade (dimensão objetiva da imparcialidade, nos termos
do TEDH). Que dirá, então, quando há uma manifestação expressa de preferência
por uma das partes pelo julgador (dimensão subjetiva), que “aceita” e “perdoa”
a outra pelo simples exercício do seu mister. De fato, vivemos tempos sombrios.
[1]
Noticiada pela ConJur: www.conjur.com.br/2016-jul-31/perdoo-advogado-vem-aqui-defender-clientes....
[2] STRECK, Lenio Luiz. Juiz não é Deus – Juge n'est pas Dieu. Curitiba: Juruá, 2016.
[3] CF/88, art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.
[4] Princípio basilar da função jurisdicional, nas palavras de Montero Aroca (MONTERO AROCA, Juan. et al. Derecho jurisdiccional III: proceso penal. 10ª ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2001. p. 29).
[5] De fato, “La imparcialidad judicial es una garantia tan esencial de la función jurisdiccional que condiciona su existencia misma:
[6] “Terzietá” como intitula a doutrina italiana, a exemplo de Ferrajoli (FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoria del garantismo penal. 10ª ed. 1ª reimpressão. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez; Alfonso Ruiz Miguel; Juan Carlos Bayón Mohino; Juan Terradillos Basoco; Rocío Cantarero Bandrés. Madrid: Trotta, 2014. p. 580).
[7] European Court of Human Rights. Case of Piersack vs. Belgium: Application 8.692. 1 october 1982. Disponível em:
[8] Medida de nº 4 referente a recursos considerados meramente protelatórios, determinando que, quando a autoridade judicial verificar que se trata de ato protelatório ou direito abusivo de recorrer, irá determinar o trânsito em julgado imediato da decisão recorrida e o retorno dos autos à origem (art. 580-A. Verificando o tribunal, de ofício ou a requerimento da parte, que o recurso é manifestamente protelatório ou abusivo o direito de recorrer, determinará que seja certificado o trânsito em julgado da decisão recorrida e o imediato retorno dos autos à origem. Parágrafo único. Não terá efeito suspensivo o recurso apresentado contra o julgamento previsto no caput).
[9] O que pode ser extraído dos seguintes trechos dessa mesma Medida nº 4: "Tal como reconhecido pelo então Presidente do STF, Ministro Cezar Peluso, em entrevista concedida ao jornal O Estado de S. Paulo no dia 22 de dezembro de 2010, 'o Brasil é o único país do mundo que tem na verdade quatro instâncias recursais. É certo que esta ampla e quase inesgotável via recursal tem sido utilizada, na maioria das vezes, para protelar a marcha processual e evitar o cumprimento da lei. Daí a importância de que as condutas tendentes a prejudicar a celeridade e a efetividade da prestação jurisdicional sejam neutralizadas, sobretudo nos tribunais, onde o exame da prova já se encontra exaurido.' [...] “O principal gargalo para a eficiência da justiça criminal e o enfrentamento à corrupção é o anacrônico sistema recursal brasileiro".
[10] Como revela o inquisidor Nicolau Eymerich no seu manual para inquisidores, no capítulo intitulado “Obstáculos à rapidez de um processo”: “O fato de dar o direito de defesa ao réu também é motivo de lentidão no processo e de atraso na proclamação da sentença. Essa concessão algumas vezes é necessária, outras não” (EYMERICH, Nicolau. Manual dos Inquisidores. Trad. Maria José Lopes da Silva. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; Brasília: Fundação Universidade de Brasília, 1993. p. 137).
GGN