Movimento
1 – as hipóteses de trabalho
Para tornar mais objetiva a análise vamos definir um
conjunto de evidências prévias:
Evidência
1 – Jair Bolsonaro é um defensor do estado de exceção. Ponto.
Havendo condições, implantará o Estado de Exceção em um país em que já se
quebrou a mística da democracia estável que existia desde a Constituição de
1988.
Evidência
2 –
Bolsonaro já apontou os movimentos populares como alvo de repressão. As mudanças
em andamento na legislação, tentam enquadrar toda manifestação social na
categoria de terrorismo.
Evidência
3 –
antes mesmo de assumirem, os governadores eleitos de São Paulo e Rio de Janeiro
já acenaram com um liberou geral para a violência policial em alta escala – com
autorização para matar. Há perspectiva de massacres continuados e legalizados
nas duas maiores cidades brasileiras.
Evidência
4 –
o estado de exceção já está disseminado pela sociedade brasileira, na atuação
concatenada de juízes e procuradores, na explosão de violência nas ruas e nas
redes sociais, no avanço das milícias nas periferias das grandes cidades e
favelas, nos abusos da Lava Jato. Ou seja, está fincada em uma base ampla da
opinião pública.
Movimento
2 – a defesa inicial da democracia
Nos primeiros dias após as eleições, eclodiram
abusos, mas, por outro lado, manifestações amplas em defesa da democracia.
Advogados criminalistas organizaram comitês em defesa das futuras vítimas, a
Procuradoria Geral da República tomou medidas contra as invasões de
universidades, procuradores atuaram em vários estados contra tentativas de
intimidação de professores, houve protestos generalizados contra as ameaças de
Bolsonaro à Folha de São Paulo. E até o Ministro Luís Roberto Barroso anunciou
que o STF estará coeso em defesa das minorias.
Democracia salva? Nem tanto.
Movimento
3 – como agem os ditadores
Sobre as estratégias de destruição das democracias,
há um levantamento precioso no livro “Como as democracias morrem”, de Steven
Levitsky e Daniel Ziblat.
Dizem eles:
A erosão da democracia acontece de maneira
gradativa, muitas vezes em pequeníssimos passos. Tomado individualmente, cada
passo parece insignificante – nenhum deles aparenta de fato ameaçar a
democracia. Com efeito, as iniciativas governamentais para subverter a
democracia costumam ter um verniz de legalidade. Elas são aprovadas pelo
Parlamento ou julgadas constitucionais por supremas cortes. Muitas são adotadas
sob o pretexto de diligenciar algum objetivo público legítimo – e mesmo elogiável
–, como combater a corrupção, “limpar” as eleições, aperfeiçoar a qualidade da
democracia.
O livro lista uma série de medidas possíveis de
serem tomadas, de acordo com as regras democráticas.
A
democracia tutelada
Segundo os autores, na maioria das autocracias
contemporâneas, não se eliminam todos os traços de dissensão. A estratégia
consiste em marginalizar jogadores importantes, como políticos de oposição,
lideres empresariais simpáticos à oposição, meios de comunicação, figuras
culturais que desfrutem de status moral público. Ou se impede sua participação
ou se recorre a subornos, oferecendo cargos públicos favores e outras
prerrogativas.
A
compra dos “árbitros”
Para tanto, é relevante o que os autores chamam de
“a compra dos árbitros”, no caso instituições jurídicas e policiais.
Autoridades fazendárias podem ser acionadas para atacar políticos, empresas e
meios de comunicações críticos. A polícia poderá reprimir violentamente
manifestações de oposição ao governo, ao mesmo tempo em que tolerará violências
perpetradas por assassinos pró-governo, dizem os autores.
(...) Enquanto ditadores da velha guarda costumavam
prender, exilar ou até matar seus rivais, os autocratas contemporâneos tendem a
esconder sua repressão debaixo de um verniz de legalidade. É por isso que
capturar os árbitros é tão importante.
O
suborno e da chantagem
Um dos casos relatados foi o do Peru, no período
Alberto Fujimori, o presidente eleito em 1990 que, depois, se converteu em
ditador.
Seu braço direito, Vladimiro Montesinos, do Serviço
Nacional de Inteligência, se valeu de todos os expedientes para enquadrar
recalcitrantes. Gravou vídeos de políticos, juízes, congressistas, empresários,
jornalistas, pagando ou recebendo subornos. Antes da implantação da ditadura,
filmou autoridades em bordéis e outras atividades ilegais. Em sua folha de
pagamento mantinha três magistrados da Suprema Corte, dois membros do tribunal
Constitucional e um número “inacreditável” de juízes e promotores públicos. No
final dos anos 90, toda rede de televisão relevante, jornais diários e
tabloides populares estavam na folha de pagamento do governo. Na superfície, o
Peru parecia viver uma democracia.
No Brasil pré-impeachment, já havia suspeitas de
tentativas de chantagem contra três Ministros do STF.
A
perseguição aos adversários
Um resultado direto da “compra de árbitros” é o
poder de condenar oposicionistas. A condenação e prisão de Lula não é um
episódio isolado. No final dos anos 90, na Malásia, o primeiro-ministro Mahatir
Moahamad usou força policial para prender e condenar o oposicionista mais
relevante, Anawar Ibrahim, sob acusação de sodomia.
Na Venezuela, Leopoldo López, líder da oposição, foi
preso e acusado de “incitação à violência” durante a onda de protestos contra o
governo em 2014. Sem comprovação maior, alegou-se que a incitação havia sido
“subliminar”.
As
mudanças constitucionais
Outra maneira de implantar o estado de exceção é
através de mudanças constitucionais, no sistema eleitoral ou nas cortes
superiores.
Em 2002, na Malásia, para impedir a vitória da
oposição, as autoridades redesenharam os distritos eleitorais, contrariando as
tendências demográficas, reduzindo o número de cadeiras em regiões dominadas
pela oposição.
Em 1999, o governo Hugo Chávez convocou eleições
para uma Constituinte, concedendo a ela mesmo o direito de dissolver todas as
demais instituições do Estado, incluindo a Suprema Corte. Ministros temerosos
decretaram tentaram contemporizar a decretaram a iniciativa como
constitucional. Dois meses depois, a Suprema Corte foi dissolvida e substituída
por um novo Tribunal Supremo de Justiça.
A
ação contra os carteis midiáticos
A parte mais vulnerável dos cartéis midiáticos são
as ações fiscais. Gozando de plenos poderes no período que antecede as
ditaduras, acabam se enrolando em manobras fiscais que, mais tarde, voltam-se
contra eles próprios. É o caso das vulnerabilidades fiscais e penais (caso
FIFA) das Organizações Globo.
Na Turquia, o conglomerado Doğan Yayin controlava
50% do mercado de mídia, o jornal mais lido do país, o Hurriyat, e vários
canais de televisão. Em 2009, o governo o multou em quase 2,5 bilhões de
dólares – mais do que o patrimônio líquido da empresa – por evasão fiscal. O
grupo foi obrigado a vender grande parte de seus veículos, comprados por
empresários favoráveis ao governo.
Na Rússia, Putin mandou prender Vladimir Gusinsky,
dono de uma rede de TV independente, por “apropriação financeira indébita”. Foi-lhe
oferecido a liberdade, em troca de abrir mão de sua rede, a NTV.
O mesmo ocorreu com o bilionário Boris Berezovsky,
acionista controlador da emissora de televisão ORT. Quando passou a incomodar
Putin, foi desenterrado um caso antigo de fraude e Berezovski foi preso,
exilado, deixando o grupo nas mãos de um sócio minoritário, que “gentilmente os
pôs à disposição de Putin”.
Na Venezuela, Chávez investigou as irregularidades
financeiras cometidas por Guilhermo Zuloaga, dono da Globovisión. Precisou
fugir do país para não ser preso e acabou vendendo a emissora a um empresário
simpático ao governo.
Na Turquia de Erdoğan, as autoridades financeiras
confiscaram o império industrial de Cem Uzan, o maior do país, por suas
pretensões de lançar o Partido Jovem (PJ) e concorrer às eleições. Uzan fugiu
para a França e seus grupo entrou em colpaso.
A
segurança nacional
Há vários gatilhos que podem ser acionados para
legitimar momentos de exceção. Em 1969, depois de reeleito presidente das
Filipinas, Ferdinand Marcos passou a estudar situações que seriam propícias
para prorrogar seu mandato. Em julho de 1972, Manila foi sacudida por uma série
de atentados a bomba sem autoria definida.
Em seguida, houve uma aparente tentativa de
assassinar o Secretário de Defesa, sendo responsabilizados “terroristas
comunistas”. Implantou a lei marcial com palavras vãs: “Meus compatriotas …
[isto] não é uma tomada militar do poder.” Garantiu 14 anos de ditadura.
Depois do 11 de setembro, dos atentados às torres
Gêmeas, 93,55% dos norte-americanos aceitavam abrir mão de algumas liberdades
civis para conter o terrorismo. Da mesma maneira que, na Segunda Guerra, o
ataque contra Pearl Harbor levou a opinião pública a apoiar o confinamento de
nipo-americanos em campos de concentração internos.
Depois que seu partido, o AKP, perdeu maioria
parlamentar em junho de 2015, uma série de ataques terroristas do Estado
islâmico permitiu a Erdoğan antecipar as eleições e retomar o controle do
Parlamento, expurgando 100 mil juízes e funcionários públicos, fechando vários
jornais e ordenando mais de 50 mil prisões.
Movimento
4 – as ameaças imediatas
Como se viu, um Presidente antidemocrático tem
inúmeras possibilidades de atacar a democracia. E a estratégia usual é o
desgaste diário, a soma de pequenas medidas, aparentemente irrelevantes, que
acabam levando a desfechos autoritários.
Há alguns movimentos nítidos em direção ao arbítrio.
O Decreto nº 9.527, de 15 de outubro de 2018,
assinado por Michel Temer, foi o passo mais ousado em direção à criminalização
dos oposicionistas. Ele passa a tratar o crime organizado como uma questão de
segurança nacional. E constitui uma força presidida pelo general Sérgio
Etchegoyen, do Gabinete de Segurança Institucional, constituída pelos serviços
de inteligência da Marinha, do Exército, da Aeronáutica, com o apoio da COAF
(Conselho de Controle de Atividades Financeiras do Ministério da Fazenda),
Receita, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Departamento
Penitenciário Nacional do Ministério da Segurança Pública; Secretaria Nacional
de Segurança Pública do Ministério da Segurança Pública.
Interferência externa, que é a atuação deliberada de
governos, grupos de interesse, pessoas físicas ou jurídicas que possam
influenciar os rumos políticos do País com o objetivo de favorecer interesses
estrangeiros em detrimento dos nacionais;
Ações contrárias à soberania nacional, que atentam
contra a autodeterminação, a não-ingerência nos assuntos internos e o respeito
incondicional à Constituição e às leis.
Utilizar essas definições para enfrentar ameaças
externas reais ou criminalizar movimentos populares, ou manifestações de
críticos, dependerá apenas dos limites que forem impostos pelo STF.
Esta semana, o senador Magno Malta (não reeleito)
apresentou proposta para ampliar a Lei Antiterrorismo, incluindo na definição
de crimes “coagir governo” a “fazer ou deixar de fazer alguma coisa, por
motivação política, ideológica ou social”.
O
superministério de Moro
O juiz Sérgio Moro é um ativista político que já
demonstrou várias vezes pretender ultrapassar os limites da legalidade – como
ocorreu com o vazamento das conversas de Dilma Rousseff e Lula, a detenção de
jornalista crítico e liberando depoimentos de Antônio Palocci nas vésperas das
eleições. E, agora, aceitando o convite para ser Ministro do candidato
beneficiado por suas ações.
Indicado Ministro, terá sob sua supervisão a
Segurança Pública (e a Polícia Federal), a Secretaria de Transparência e
Combate à Corrupção, a Controladoria-Geral da União (CGU) e Coaf (Conselho de
Controle de Atividades Financeiras).
Se, de fato, acredita poder mudar o mundo com o
direito penal, em pouco tempo terá embates grandiosos com Bolsonaro.
Se, ao contrário, embarcou no projeto de poder de
Bolsonaro, se verá investido de um formidável poder intimidatório, valendo-se
do poder do Executivo para disseminar denúncias contra críticos, ações contra
Universidades (escudados nos pareces da CGU), investidas contra movimentos
sociais.
Movimento
5 – a tolerância zero contra o arbítrio
Nas últimas semanas, três instituições acordaram
para os riscos da escalada do arbítrio: a Procuradoria Geral da República e o
Ministério Público Federal, o Supremo Tribunal Federal e a
mídia mainstream. Há sinais de que o Alto Comando das Forças Armadas tem
preocupação em relação aos riscos para a disciplina militar desse liberou geral
de Bolsonaro, que tem muita ressonância nos escalões de baixo.
STF e PGR poderão agir apenas nos temas coletivos.
Na base, haverá uma escalada de violência, em denúncias judiciais ou, pior, em
violência explícita contra movimentos populares e contra pobres e negros de
periferia.
Mais que nunca, a informação passa a ter uma função
civilizatória, alertando não apenas a opinião pública informada, mas os
organismos internacionais, a imprensa internacional, os tribunais superiores.
É hora de ver se o jornalismo e os tribunais se
mostram, finalmente, à altura de suas responsabilidades.
GGN