Todo
organismo político, seja ele um líder, um partido, um movimento ou um Estado
tem (ou deveria ter) um fundamento moral, definido pelos seus princípios, e um
fundamento ético, definido pelos seus objetivos e finalidades. A corrupção, no
sentido amplo do termo, tem se revelado, ao longo dos temos, o mal mortal dos
organismos políticos, incluindo os líderes. Ela costuma decompor a substância
do organismo nas suas dimensões morais, éticas, políticas e programáticas,
transmutando-o daquilo que ele é a aquilo que ele não é.
A História e
a Filosofia Política mostram que a corrupção leva os corpos políticos e os
líderes a um declínio inexorável, por mais generalizadamente corrupto que seja
um sistema e por mais que ele tenha uma vida prolongada no tempo. De modo
geral, nos momentos de erosão e de ocaso, o que se manifesta são agudas crises
de legitimidade do Estado, do partido ou do líder. Claro que existem
possibilidades e mecanismos de regeneração de corpos degenerados, mas esta
tarefa sempre é difícil e demanda esforços hercúleos e pouco suscetíveis de
serem assumidos pelos entes corrompidos.
Quando se
critica um partido, ressalve-se, não se está criticando o conjunto de
militantes e das pessoas que o integram, mas aquilo que o partido representa
enquanto instituição. Existem pessoas honestas e respeitáveis em todos os partidos,
mas nem todos os partidos são expressões institucionais desses valores.
O PSDB e sua autonegação
O PSDB,
claro que não algo exclusivo, é um partido que se decompôs, tanto nos seus
princípios morais fundantes, quanto em suas finalidades éticas. Na epígrafe do
Manifesto de Fundação, que completará 29 anos no próximo dia 25 de junho, está
escrito que o partido nascia "longe das benesses oficiais, mas perto do
pulsar das ruas". O partido tornou-se o inverso desse princípio. Já no
governo Collor, parte do partido tinha assumido a perspectiva das benesses do
poder em detrimento do pulsar das ruas. A adesão não se consumou por conta da
contundência de Mário Covas. Com o governo Itamar e, depois, com os governos de
FHC a perspectiva das ruas foi completamente abandonada. Este é um mal dos
partidos de centro-esquerda e de esquerda que chegam ao poder pela via das
urnas.
Não se trata
de uma recusa da busca de governos pela via eleitoral. Mas a crítica que
precisa ser feita é o abandono dos princípios e das finalidades que os partidos
sustentavam no seu ideário fundante. Trata-se de uma corrupção de princípios
que transforma os partidos em partidos do status quo, da conservação de
uma ordem que, no caso do Brasil, é uma ordem que nasceu degradada e se
desenvolveu como uma ordem degradada e corrompida pela natureza injusta e
iníqua que ela carrega. Esses partidos, na verdade, se tornam partidos das
contra-reformas - uma espécie de cereja do bolo do capitalismo predador.
O Manifesto
de fundação do PSDB chamava a atenção justamente para o fato de que o povo se
encontrava frustrado porque "não foi cumprida a promessa de mudança social
e econômica". O partido se tornou a contraparte dessa mudança,
transformando-se em principal instrumento a serviço das elites econômicas que
nunca foram democráticas, nunca foram modernizantes e nunca quiseram que o país
se desenvolvesse, pois a manutenção do atraso é condição do seu domínio, dos
seus privilégios e de seu modo de extorquir os recursos orçamentários e os
fundos públicos por diversas maneiras.
Ao se tornar
o partido das elites e, consequentemente, do atraso, o PSDB denegou várias de
sua finalidades que poderiam conferir-lhe algum conteúdo social-democrata:
defender as justas reivindicações dos trabalhadores, efetivar a reforma agrária
pela via da tributação progressiva e desapropriações, proteger os menores e
redistribuir renda e "propugnar pela implantação de uma seguridade social
no seu sentido mais amplo e inovador, assegurando a habitação, a saúde, a
previdência social básica e complementar, com ênfase para as aposentadorias e
pensões, o seguro-desemprego, a proteção à infância e aos idosos".
Na prática,
o PSDB tornou-se uma negação escandalosa e desavergonhada de seu programa
original, instrumento que é, por um lado, e agente que é, por outro, da
perpetuação do mal-estar social no Brasil. O apoio que o partido vem dando a
todo tipo de reformas supressoras de direitos e a políticas de violação da
dignidade de menores e outros grupos sociais vitimizados e em situação de risco
constitui uma veemente confirmação de que o PSDB é um partido anti-social e
anti-socialdemocrata.
A democracia e a corrupção
Outro grande
contraste entre o que o PSDB se propunha ser e o que é diz respeito à
democracia. O Manifesto assevera que o partido surgia para combater o
autoritarismo "concentrador de renda e riqueza" e para "defender
a democracia contra qualquer tentativa de retrocesso a situações
autoritárias". Ora, o partido não teve apenas um papel de coadjuvante no
golpe ilegítimo do impeachment. Foi sócio equivalente de Temer, Eduardo
Cunha, Romero Jucá e toda organização criminosa que se agrupou no governo.
Aécio Neves,
com a desfaçatez que não é sustentada nem pelos mais renomados hipócritas, foi
o primeiro incendiário que levou o país às chamas dessa crise política
prolongada. Jogou fogo na gasolina em nome de uma aventura: "para encher o
saco do PT". O PSDB ajudou a financiar as manifestações de combate à
corrupção e pelo impeachment com a face irresponsável de quem queria chegar ao
poder sem a legitimidade das urnas. Efetivamente chegou, junto com Temer. Sem
capacidade de convocação das ruas, escondeu-se por detrás dos biombos dos MBLs
da vida e deu voz e vez a Bolsonaro e a todos aqueles que incitaram a
intervenção armada contra a democracia.
O castigo
merecido que os tucanos têm é que Bolsonaro ocupa, ao menos por ora, o segundo
lugar nas intenções de voto na corrida presidencial. João Dória é um rebento
bastardo desse aventureirismo irresponsável, cuja única ideologia é o assalto
ao botim das benesses públicas para fins privados. Conceder a designação de
"conservador" ao PSDB seria uma honraria, pois os conservadores se
guiam por princípios, conservadores, claro, mas por princípios, coisa que o
partido deixou de ter.
Note-se que
o partido não deu apenas voz a conspiradores antidemocráticos. No Congresso,
conduzindo-se pela irresponsabilidade típica dos aventureiros, apoiando as
pautas-bomba, guiado que foi por Eduardo Cunha. E à medida em que o golpe se
consolidou e a Lava Jato foi avançando e se deslocando de Curitiba para
Brasília, o partido, através de seu presidente, começou a participar de novas
conspirações para obstruir a Justiça, controlar o Ministério Público e a
Polícia Federal e bloquear as investigações para que o governo e seus aliados
continuassem cometendo crimes, como vem sendo revelado.
O Manifesto
dizia, ainda, que o povo estava "chocado com o espetáculo do fisiologismo
político e da corrupção impune". O PSDB merece a justa ira e o desprezo
das pessoas. O que dizer quando se revê as imagens de Aécio Neves, de Dória, de
Aloysio Nunes, de Fernando Capez e tantos outros tucanos protestando nas ruas,
com suas camisas amarelas e com sua verborragia inflamada, contra a corrupção?
O eleitorado brasileiro, com sua baixa cultura cívica, mergulhado na ausência
de uma moral social e política, aceita votar em políticos sabidamente corruptos
na crença de que eles são espertos e que podem ser eficazes. O que o eleitorado
não parece aceitar é a desfaçatez da enganação. Foi isto que o PSDB tentou
fazer: passar-se por honesto sendo corrupto. Agora é o principal sustentáculo
de um governo cujo presidente chefia uma perigosa organização criminosa,
segundo as denúncias que se avolumam na imprensa. Se amanhã o PSDB sair desse
lodo, não o fará movido pelos altos princípios e pelos nobres fins, mas pelo
oportunismo de que se constitui a sua alma.
Do GGN, Aldo
Fornazieri - Professor da Escola de Sociologia e Política.