No dia 11 passado (11/12/2012),
publiquei o post "Para entender o xadrez da política".
Vamos ao próximo
levantamento, à luz dos últimos episódios.
Como é o jogo de poder nas
democracias
Há três mundos
distintos na opinião pública. Um, o mundo da chamada voz das ruas, que
elege políticos, de vereadores a presidentes. O segundo, o mundo da
opinião pública midiática, controlado por grandes grupos de comunicação. O
terceiro, o mundo das instituições, onde se inserem os Poderes Executivo,
Legislativo, Judiciário e as demais instituições constitutivas do Estado:
Forças Armadas, Ministério Público, órgãos de controle, diplomacia etc.
Importante: esse mundo, seja no plano das funções ou familiar, é influenciado
majoritariamente pelo mundo da mídia.
O mundo das
instituições é fundamentalmente legalista e formalista, no sentido de seguir
normas, regulamentos e leis. Há maneiras de dar by-pass na legalidade
que seguem sempre o mesmo padrão: denúncias de corrupção, quebra da ordem
econômica e social e, no caso de republiquetas latino-americanas, o fantasma da
subversão. O clima de caos aumenta a sensação de vácuo de poder e alguém acaba
ocupando. Meses atrás publiquei aqui um extraordinário artigo de Afonso Arinos
de Mello Franco, de 1963. Ele próprio integrante da UDN, mostrava como a
oposição manipulava conceitos que, em 1963, ele já via defasados: como o
fantasma da Guerra Fria. E diagnosticava: se não houver pulso da parte do governo,
termina em golpe militar. Não houve pulso, a conspiração prosperou e, depois,
foi alimentada por manifestações de rua e comícios que passaram aos militares a
ideia de quebra da hierarquia. 1964 foi fruto do vácuo de poder.
A mídia sempre tem
papel central nesses movimentos. Durante meses criam-se fatos verdadeiros ou
não, escandalizam-se meros problemas administrativos (já que não se consegue
produzir escândalos verdadeiros todo dia), martela-se, martela-se até obnubilar
a opinião pública e consolidar a ideia do caos. As movimentações de rua são
consequência e o melhor álibi para golpes. Se a favor, legitima-os para atender
aos pleitos da opinião pública. Se contra, legitima-os para impedir a baderna.
Em muitos episódios
latino-americanos – quedas de Fernando Collor, no Brasil, e Carlos Andres
Perez, na Venezuela - o golpe ocorreu via aliança Legislativo-Mídia. Em outros
casos – tentativa de derrubada de Chávez – na aliança entre Mídia e setores das
Forças Armadas. Em casos recentes, na parceria Mídia-Supremo. Em todos os
casos, há o clamor da opinião pública legitimando os golpes.
O atual embate STF x
Congresso visa definir quem é a lei. Não se trata de episódio trivial, briga de
egos e quetais. É briga de poder MESMO. Na eventualidade de um episódio crítico
qualquer no futuro, quem conseguir ser a LEI manobrará todo o universo das
corporações públicas. Se não houver esse momento crítico, cada personagem se
recolherá novamente a seu papel tradicional e a disputa não terá passado de uma
briga de egos. Melhor: de imensos egos.
As
peças do jogo no quadro atual
Os pontos levantados
não significam que há uma organização conspiratória juntando todas essas
peças. Deflagra-se um processo e são as circunstâncias específicas que
determinam a dinâmica e conferem um papel a cada agente.
Entendidos esses
aspectos genéricos do jogo de poder, vamos ao quadro atual:
O PT é bom de rua, bom
de voto e ruim de instituições. Quando Lula assumiu, tentou avançar através de
dois operadores: José Dirceu e Antônio Palocci. A estratégia de Dirceu
consistia em assumir todo o know-how de poder desenvolvido por FHC, o controle
daquele grande rio subterrâneo do poder de fato, onde transitam os poderes
constituídos, poderes econômicos, lobistas, parlamentares donos de bancada,
técnicos e sistemas de influência em geral. No início do governo, ainda verde,
essa estratégia levou o partido a “adotar” o esquema Marcos Valério, legítima
criação do PSDB mineiro e que chegou ao Planalto através das mãos de Pimenta da
Veiga, Ministro das Comunicações de FHC. Depois, aprendeu, mas o pecado
original não pode ser exorcizado.
O “mensalão” amarrou a
ação de ambos os operadores, derrubou-os e, para afastar o fantasma
do impeachment, Lula, inspirado por Márcio Thomas Bastos, apostou em um
republicanismo ingênuo, no qual FHC jamais embarcou: não indicou o Procurador
Geral da República, usou as indicações do STF (Supremo Tribunal Federal) para
gestos simbólicos, descentralizou as ações da Polícia Federal. E deu todo o
espaço político de que essas estruturas necessitavam para ambicionar mais
espaço político. É movimento típico das burocracias . Quando não há nenhuma
forma de resistência à sua expansão, a tendência é ocupar espaço. O quadro de
quase confronto atual é resultado direto do vácuo de poder no sistema
judiciário, muito mais do que de manobras conspiratórias.
Com o vácuo, cada ator
político – PGR, STF, setores internos da PF – pôde crescer livremente, sem
resistências e sem risco. O PGR Roberto Gurgel acumulou seu poder empalmando em
suas mãos (e no da sua esposa) todos os processos envolvendo personagens com
foro privilegiado. A maneira como ministros do STF atuaram no “mensalão” – um
comparando o partido do governo ao PCC, outro incluindo falas fora do contexto
da própria presidência da República – é típica de quem, à falta de qualquer
tipo de limites, deixa de supor e passa a acreditar piamente que é Deus
Finalmente, a cobertura
exaustiva do julgamento do “mensalão” calou fundo na classe média – e não
apenas na midiática. Graças ao Jornal Nacional, entrou no imaginário das
famílias, das crianças e dos velhos. Acredita-se em um mar de corrupção
incontrolável embora nem se identifiquem bem quem são os atores.
A lógica que vigorou
até agora para Lula e o PT – a cada campanha midiática a resposta das urnas –
vale para eleições, não para o jogo institucional que se arma.
Cenário
da desestabilização
O que seria um cenário
de desestabilização? Esses cenários não são planejados de antemão, mas frutos
de circunstâncias que vão se somando até virar o rascunho do mapa do inferno.
Mostra-se, aqui, uma situação limite hipotética.
1. Intensificação da
campanha midiática em duas frentes: a denuncista e a econômica.
O “efeito-mensalão”
será absorvido com as festas de fim de ano e um janeiro tradicionalmente morno.
Haverá a necessidade de substituí-lo por outros temas candentes.
A “denuncista” em tese
depende da disposição do PGR e de setores da PF de abrir inquéritos e vazá-los
para a mídia amiga. Há um processo nítido de auto-alimentação entre mídia e o
PGR. Vaza-se o inquérito, monta-se um estardalhaço; com base no estardalhaço
tomam-se outras medidas que resultam em mais estardalhaço. Tem que se atuar
sobre esse cordão umbilical.
A econômica dependerá
fundamentalmente do desempenho da economia e, principalmente, dos dados do PIB
no primeiro semestre. Como já alertei aqui, a crítica se concentrará na atuação
da Petrobrás no pré-sal, nos financiamentos do BNDES e no PAC.
2. Reação intempestiva
do PT e Lula levando a movimentos de rua, com possibilidade de conflitos.
Leve-se em conta que a
cobertura do “mensalão” tirou do PT o monopólio da mobilização popular. Agora
há espaço para marchas contra a corrupção e coisas do gênero.
3. Reações do governo
que possam ser interpretadas como ameaça às instituições.
4. Supremo sob controle
do grupo dos cinco dizendo que, agora, “eu sou a lei” e se impondo para conter
o caos.
As
estratégias de lado a lado
Entendidos os pontos
centrais da disputa, vamos tentar avançar no que poderiam ser as táticas de
lado a lado.
Da oposição, obviamente,
é elevar a fervura da água. Para tanto, necessita manter acesa a parceria com o
PGR e com setores serristas da Polícia Federal para garantir a alimentação de
escândalos; e declarações bombásticas de Ministros do STF para dar solenidade
às suposições. E investir tudo em escândalos permanentes, desses que permitem
um vazamento por dia e duas declarações retóricas de Ministros do STF por
semana.
Enquanto isto, tratar
de alimentar o negativismo do noticiário econômico superdimensionando notícias
negativas e minimizando as positivas.
Da parte do governo, o
jogo é o oposto, é baixar a fervura. Significa o seguinte:
Considerar finalizado o
episódio “mensalão”. Para tanto, o PT terá que dar baixa no balanço das
lideranças atingidas. Do mesmo modo, a Presidência se afastará cada vez mais do
episódio e reforçará o legalismo. No início, a inação do Ministro da Justiça
José Eduardo Cardozo, era coisa dele. Agora, não: é coisa dela.
O MPF é permanente;
Roberto Gurgel, passageiro. Como organização burocrática, disciplinada e
legalista, bastará que seja tratado com respeito e que o governo emita sinais
discretos sobre a sucessão de Gurgel, sem nada que afronte a autonomia relativa
do órgão e sem nada que alimente as fantasias continuístas do grupo de Gurgel.
Automaticamente se formarão novos centros de poder e influência internos.
Em relação ao STF, o
problema não é o órgão, evidentemente, mas a coalizão circunstancial que
permitiu aos “cinco do Supremo” votar em bloco, em um STF desfalcado, e, com a
hegemonia provisória, tornarem-se celebridades. Havendo normalidade na política
e na economia - e acerto na substituição de Ministros - termina a maioria
circunstancial, já que as Ministras, severas nas suas sentenças, mostraram-se
discretas e legalistas. Celso de Mello voltará a se comportar como lente,
Gilmar como político, Marco Aurélio como outsider, Luiz Fux buscará outras
lâmpadas em torno das quais esvoaçar – bom radar porque especialista em rodear
as lâmpadas que irradiam maior calor. E Joaquim Barbosa… continuará sendo
Joaquim Barbosa.
No plano econômico,
torcer para que venha logo a colheita das medidas plantadas nos dois últimos
anos. E melhorar substancialmente as ferramentas de divulgação dos atos
positivos de política econômica. O reajuste dos combustíveis foi passo
importante para devolver à Petrobras o fôlego financeiro, tirando-a da linha de
fogo.
Fatores
de atrito
Há dúvidas no ar,
obviamente. A manutenção de um clima de tranquilidade, com a economia sob
controle, será relevante para que a nova formação do Supremo retorne à
discrição e à responsabilidade institucional que se exige do órgão.
Gurgel e Joaquim
Barbosa continuarão ativos. Manterão a parceria? São incógnitas.
A grande tacada da
mídia serão as investidas contra Lula. Essas, sim, poderão provocar as manifestações
de rua que se pretende para ampliar a percepção de caos político. No MPF, há
uma gana para pegar Lula que transcende a própria figura do PGR.
É por aí que o bicho
pode pegar. E é por aí que deverá se concentrar a atuação política dos que não
pretendem assistir o país pegar fogo.
Nem se ouse apostas
sobre quem pode botar mais gente na rua. Entrar nesse jogo é tiro no pé na
certa.
GGN (artigo publicado
originalmente em 20/12