O
Brasil dos tempos do regime militar. Do DW Brasil
Bolsonaro afirmou que deseja o país "que tínhamos há 50
anos". Em 1968, os indicadores de desenvolvimento social eram bem
diferentes dos atuais. Um terço da população era analfabeta, e grande parte
sofria com a fome
Ao final de uma entrevista nesta segunda-feira (15/10),
o presidenciável Jair Bolsonaro (PSL), afirmou desejar um Brasil
"semelhante àquele que tínhamos há 40, 50 anos atrás", em tom de quem
evoca uma era dourada perdida no país. O capitão reformado falava de
costumes, criminalidade e educação como se essas coisas tivessem se degenerado
ao longo das últimas décadas.
A julgar pelas pesquisas eleitorais para o segundo
turno, que apontam o candidato do PSL com 59% das intenções de voto,
Bolsonaro terá a chance de conduzir o Brasil segundo a sua visão a partir de
2019. Mas o período a que ele se refere estava longe de ser uma época
digna de nostalgia sob quase todos os aspectos.
Voltando meio século no tempo, chega-se a 1968, o ano que
abriu a fase mais dura do antigo regime militar. Defensor público da ditadura,
Bolsonaro já deixou claro que não considera episódios como o Ato Institucional
nº 5, a repressão e a tortura como aspectos negativos.
Mas, para além do aspecto político, o Brasil de 50 anos atrás
também era um país atrasado, com alta prevalência de miséria e fome e com
péssimos índices de desenvolvimento social: um terço da população era
analfabeta, doenças infecciosas e parasitárias ainda apareciam entre as
principais causas de morte, e a mortalidade infantil era seis vez maior que a
atual. A criminalidade também havia começado a se tornar epidêmica nos grandes
centros urbanos. E vários desses aspectos pioraram ao longo do regime.
Saúde e expectativa de
vida
Em 1968, não havia nada parecido com o Sistema Único de Saúde
(SUS), criado em 1988. Somente parte da população com carteira assinada tinha
acesso à saúde por meio do antigo Instituto Nacional de Previdência Social
(INPS). Mesmo esse sistema sofria com a ineficiência. E para quem não estava no
mercado de trabalho formal, como as empregadas domésticas, restava pagar pelo
atendimento ou contar com a benevolência de hospitais beneficentes.
À época, a diarreia e doenças parasitárias e infecciosas
apareciam entre as principais causas de morte em várias grandes cidades. Na
região Norte, ainda havia alta incidência de doenças como hanseníase (lepra).
A mortalidade infantil era uma chaga no país. Em 1968, o índice
era de 89,62 para cada mil nascidos, considerando apenas as capitais. Em 2016,
caiu para 14 por mil. Na região Nordeste, os números eram ainda piores,
chegavam a 167,51 por cada mil nascimentos.
Os índices ainda pioraram em relação ao início da década,
explicitando o sucateamento da saúde sob o regime militar. Em 1960, 60,2 por
mil nascidos morreram em São Paulo. Em 1968, foram 76,6. À época, a taxa nos
EUA era de 19,8.
Segundo o antropólogo Luiz Eduardo Soares, entre 1972 e 76,
em todo o Brasil, morreram 1,4 milhão de crianças por causas associadas à
desnutrição e à falta de saneamento, como difteria, coqueluche, sarampo,
poliomielite e doenças diarreicas.
Além disso, 72% dos que morriam no país tinham menos de 50
anos e, destes, 46,5% eram crianças menores de quatro anos. Também ao final dos
anos 1960, a população de 47% dos municípios brasileiros tinha uma expectativa
de vida de até 50 anos. Hoje, ela chega a 75,5 anos no país.
O governo militar ainda mascarava a situação. Em 1974, o
noticiário sobre uma epidemia de meningite em São Paulo foi censurado. Esconder
a má situação para promover uma imagem fictícia do Brasil também era prática
comum em relatórios oficiais.
Em 1974, o governo encomendou um estudo para apontar como se
alimentavam os brasileiros. Foram entrevistadas 55 mil famílias. O pediatra
Yvon Rodrigues, da Academia Nacional de Ciências, afirmou em entrevista nos
anos 80 que os resultados foram tão aterradores que o documento foi engavetado.
"Havia famílias que comiam ratos, crianças que disputavam fezes”, disse
ele. O relatório ainda mostrava que 67% dos brasileiros sofriam de
subnutrição.
Educação
Em 1968, o analfabetismo ainda era uma das maiores causas de
vergonha nacional. No início da década, 39,7% da população com mais de 15 anos
era analfabeta. Em 1970, 33,7% ainda não sabiam ler e escrever – a queda foi
proporcionalmente mais lenta do aquela observada entre 1950 e 1960.
Em 1968, o governo militar criou o Movimento Brasileiro de
Alfabetização, o Mobral. Foi um fracasso: em 15 anos de existência, 40
milhões de pessoas passaram pelo programa, mas apenas 15 milhões foram
diplomadas.
Em sua entrevista, Bolsonaro citou ainda que deseja um país
que "respeite as crianças em sala de aula", como era "há 50
anos". Mas, cinco décadas atrás, poucos jovens tinham a oportunidade de
sequer ver uma sala de aula. Havia algumas ilhas de excelência pelo país,
mas o acesso era para poucos.
No final da década de 1960, 76% dos municípios registravam
uma média inferior a dois anos de estudo para a população adulta. No Nordeste,
a média de anos de estudo era de apenas 15 meses. No Norte, nove. Menos de 10%
das crianças entre quatro a seis anos frequentavam a escola – hoje são mais de
90%.
No final de 2017, 7% da população do país com mais de 15 anos
de idade não sabia ler ou escrever, segundo dados do IBGE.
Criminalidade
O Brasil de 2018 sofre, sem dúvida, muito mais com a
violência do que em 1968. A taxa de homicídios em 2016 foi de 30,3 por cada
grupo de 100 mil habitantes. Só que a atual epidemia começou a ser gestada na
época sobre a qual Bolsonaro demonstra nostalgia. Os números do
período de São Paulo servem de amostra.
Em 1960, quatro antes do golpe militar, a cidade registrou
5,7 homicídios por 100 mil habitantes. Eram, em sua maioria, casos envolvendo
maridos traídos e disputas familiares. Em 1968, no entanto, a taxa saltou para
10,4 por 100 mil habitantes – pela primeira vez, havia atingido um nível
epidêmico.
Segundo estudos, a situação piorou com o aumento da
desigualdade e a mudança de atitude da polícia, que passou a priorizar cada vez
mais o uso de uma lógica de extermínio em vez de formas adequadas de solução de
crimes.
O ano de 1968 marcou a estreia dos infames esquadrões da
morte em São Paulo, formados por grupos de policiais. Naquele ano, eles
assassinaram 200 pessoas. As vítimas eram, em sua maioria, suspeitos de
envolvimento em assaltos e furtos.
Mas a ação violenta de policiais acabou tendo um efeito
reverso, piorando a criminalidade nas periferias. Com a polícia envolvida em
assassinatos, parte da população passou evitar denunciar crimes. Conforme a
Justiça ficou menos acessível, o ato de matar passou a ser visto cada vez mais
como uma ferramenta eficaz.
"Em vez de controlar os roubos, os homicídios provocam
novos homicídios e aumentam a desordem nesses lugares. Em territórios onde as
próprias polícias matam, o homicídio torna-se uma ação cada vez mais escolhida
na mediação de conflitos", aponta o pesquisador Bruno Paes Manso, do
Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP).
Em 1984, último ano da ditadura, o índice de homicídios em
São Paulo havia alcançado 37,9 por 100 mil habitantes – mais alto do que a
atual média nacional.
Milhares de estudantes foram às ruas de São Paulo protestar
contra a ditadura militar em 1º de abril de 1968.
Crescimento e
desigualdade
O ano de 1968 marca o início do "milagre econômico
brasileiro", período de crescimento robusto que durou até 1973, com altas
do Produto Interno Bruto (PIB), de entre 7% e 13% ao ano. Ao mesmo tempo, este
também foi um período de piora nos níveis de desigualdade.
Em 1965, a participação na renda nacional do 1% mais rico da
população, era cerca de 10% do total. Três anos depois, a cifra subiu
para 16%. Os números pioraram ainda mais até o fim do regime. Já entre os
5% mais ricos, a participação na renda passou de 28,3% em 1960 para
34,1% em 1970.
Em contraste, os 50% mais pobres, que recebiam 17,4% do
rendimento total em 1960, passaram a 14,9% do total em 1970. Neste último ano,
havia 3.275 municípios (83% do total) cuja população vivia em grande parte com
menos de meio salário mínimo por mês.
Os indicadores também apontam que no período entre 1964 e
1974 ocorreu uma queda ou estagnação do salário mínimo real, apesar do
crescimento da economia. Em São Paulo houve queda de 42% no poder aquisitivo do
salário mínimo. Com os sindicatos banidos, os trabalhadores também não tinham
canais para registrar a insatisfação.
Situação das mulheres
O panorama para as mulheres também era pior do que o atual.
Elas tinham menos participação na economia, tinham mais filhos e menos renda e
estudo.
O número de mulheres economicamente ativas em 1968 era baixo,
mal alcançava 20%, contra 50% em 2010. A principal atividade delas era ajudar a
formar famílias. Em 1970, a taxa de natalidade era de 5,8 filhos nascidos vivos
por mulher – hoje, é de 1,7. Elas também eram mais dependentes dos maridos, e
ainda não havia a Lei do Divórcio, sancionada apenas em 1977.
Naquela época, a renda média das mulheres era muito
inferior à dos homens em todos os segmentos, como não escolarizadas e
diplomadas. Em alguns casos, a discrepância chegava a quatro vezes o valor
médio da renda. Uma mulher com curso universitário no Brasil em 1970 ganhava em
média 41% do salário médio de um homem com diploma. Hoje, o percentual é de
75%.
Elas também tinham menos anos de estudo. A média no final da
década de 1960 era de apenas 2,2 anos, contra 2,6 dos homens. No Nordeste, era
de apenas 1,1 ano. Hoje é o contrário. Em 2015, elas tinham em média 9,7 anos
de estudos, contra 9 anos dos homens. Em 2016, as mulheres também apareceram
como maioria nos cursos de graduação no Brasil: 57,2% dos alunos. Em 1970,
representavam 25,6% da população com título universitário.
GGN