A
Justiça de Transição que o país necessita não é a a execração pública de
pessoas, não é ajoelhar no milho nem se vergastar em público. É uma desafio
institucional, um pacto entre poderes, especialmente aqueles que mais
responsáveis pelo macarthismo do período anterior, assumindo as culpas
institucionais.
PEÇA 1 – A JUSTIÇA DE
TRANSIÇÃO
Justiça
de Transição é o sistema de julgamentos que sucede a cada período ditatorial.
Consiste, de um lado, no levantamento da memória do período, de expor as chagas
dos crimes cometidos, dentro do lema “para que não se esqueça, não se repita”.
Depois, na reparação dos crimes cometidos. No caso das famílias de
desaparecidos, em indenização financeira e pedidos oficiais de desculpas em
nome do Estado que acobertou ou comandou os crimes. Depois, no financiamento de
iniciativas que ajudem a lembrar os crimes – como, por exemplo, restauração de
locais onde se praticava a tortura, construção de museus de memórias etc.
A
lógica da Justiça de Transição é deixar claro para o país – e, especialmente,
para quem praticou ou foi omisso em relação aos crimes – que tais crimes não
podem passar impunes e não podem se repetir. No mínimo, há que se ter uma
condenação moral e pública para constranger os que tentarem, no futuro,
repeti-los.
No
caso da ditadura brasileira, não houve a justiça de transição. Na Constituinte,
alguns juristas negociaram o esquecimento com as Forças
Armadas, com o entendimento de que a Lei da Anistia absolvia todos os crimes,
mesmo aqueles considerados crimes contra a humanidade.
Foi
um acordo tão hipócrita que foram englobados nesse pacto até crimes cometidos
após a promulgação da lei – como o atentado do Rio Centro e o assassinato da
secretária da Ordem dos Advogados no Rio de Janeiro, assim como os atentados a
bancas de revistas e tentativas de jogar bombas no centro do Rio.
Os
responsáveis por esse pacto foram basicamente Sepulveda Pertence e Nelson Jobim
que, mais tarde, tornaram-se Ministros do Supremo Tribunal Federal.
Nas
Forças Amadas, o pacto resultou em um processo de afastamento dos homens dos
porões – os militares que estiveram na linha de frente da guerra suja, matando,
torturando. Houve recompensas, para que pudessem iniciar a vida civil. Alguns
ganharam garimpos, como foi o caso do Major Curió. Outros tornaram-se
seguranças de bicheiros. Muitos criaram esquadrões da morte em vários estados.
Grande parte ajudou a criar as milícias, que passaram a ocupar territórios
inteiros em alguns estados.
A
falta da Justiça de Transição permitiu, finalmente, que as milícias e os
subterrâneos ganhassem o poder, através da eleição de Jair Bolsonaro.
A
revisão da Lei da Anistia repousa há anos na gaveta do Ministro Luiz Fux, do
STF, dentro da obscuridade que marca os pedidos de vista da casa.
PEÇA 2 – A DITADURA CIVIL
INSTALADA
Há
enormes semelhanças entre a ditadura atual e o período pós 64, e entre os porões
da ditadura e a Lava Jato.
Digo
ditadura atual porque, desde que começou a campanha pelo impeachment, os
direitos foram suprimidos no país – bem antes da chegada de Bolsonaro e
preparando o terreno para ele. No período pós 2013, o discurso de ódio foi mais
radicalizado ainda na mídia. Os Tribunais, especialmente de primeira instância,
se envolveram no jogo político e toda forma de arbitrariedades foi cometida.
O
Ministério Público Federal, em função da irresponsabilidade e exibicionismo dos
procuradores da Lava Jato Curitiba e do Distrito Federal, tornou-se o bode
expiatório responsável pelo estado de exceção. Mas o clima de exceção perpassou
todos os poderes.
Algumas exemplos desse
estado de exceção:
1.
A humilhação dos funcionários do BNDES, submetidos em bloco a conduções
coercitivas com acompanhamento de toda a mídia, por denúncia do Ministério
Público Federal do Distrito Federal.
2.
Julgamentos midiáticos em cima de denúncias falsas, como as acusações contra o
ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad e operações contra o ex-governador de
Minas Gerais Fernando Pimentel, posteriormente arquivadas, mas que alimentaram
as manchetes durante meses.
3.
Procurador entrando em presídios e humilhando políticos presos, no episódio
envolvendo o ex-governador Sérgio Cabral Filho. Condução de Cabral algemado nas
mãos e nos pés pelo delegado federal Igor de Paula.
4.
Juíza intimando o cientista Elisando Carlini, por ter participado de um evento
para discutir as propriedades medicinais da maconha.
5.
Invasão da Escola Florestan Fernandes, com policiais civis paulistas arrombando
janelas e intimidando idosos e alunos da escola.
6.
O caso Rafael Braga, o catador de recicláveis preso em 2013 durante ato público
do qual sequer participava, com suspeita de flagrante forjado. Contraiu
tuberculose na prisão.
7.
Jovens presos em uma operação em que houve espionagem por parte de um militar.
Indiciados em um caso claro de flagrante forjado. Procuradores da República
correram ao local, para impedir abusos contra a moçada. Foram denunciados ao
Conselho Nacional do Ministério Público por colegas do MP de São Paulo, por se
intrometer no trabalho dos colegas paulistas – que não compareceram ao local.
8.
Juiz de Brasilia que quase matou José Genoino, ao proibir que recebesse
atendimento fora da prisão, mesmo depois de ter sido submetido a uma cirurgia
cardíaca de alta complexidade.
9.
Prisão de lideranças da Frente de Luta pela Moradia em São Paulo, com falso
flagrante imputando a elas práticas cometidas pelo tráfico.
10.
Manipulação da sentença contra Lula pelo TRF4, com os três desembargadores
majorando a sentença na mesma proporção, para impedir qualquer recurso, depois
de constatado que a sentença inicial de Sérgio Moro, por engano, permitiria
colocar Lula em liberdade.
11.
Busca e apreensão na casa de um dos filhos do Lula pela Policia Civil paulista,
tendo como justificativa um telefonema anônimo.
12.
Grampo no Palácio do Planalto, a pretexto de controlar os celulares da Papuda.
13.
Operação Carne Fraca, que comprometeu a carne brasileira nos mercados mundiais,
transformando um problema de corrupção de fiscais sanitários em uma crise do
setor.
14.
Proibição para que diversas universidades ministrassem cursos sobre o golpe
militar de 1964.
15.
Ação concatenada de Tribunais Regionais Eleitorais, autorizando invasão de
diversos campus universitários pela Polícia na véspera das eleições de 2014.
16.
Ação coordenada da Polícia Federal e da Controladoria Geral da União permitindo
invasão de campus universitários e humilhação de professores, levando ao
suicídio o reitor Cancellier, da Universidade Federal de Santa Catarina.
17.
O jornalista mineiro premiado, jogado na cadeia pela polícia civil de Minas
Gerais, por críticas a Aécio Neves.
Nenhum
desses abusos foi denunciado como tal pela mídia na época. Sequer provocou um
respiro de indignação democrática. Nenhum dos responsáveis respondeu a qualquer
processo por crime de abuso de autoridade e sequer a uma condenação pela mídia.
Convalidou-se o Estado de Exceção com a mídia praticando o jornalismo de guerra
e os tribunais aplicando o direito penal do inimigo.
Agora,
depois que o furacão Bolsonaro mostrou um perigo concreto, há um aggiornamento
rápido e oportunista dos principais agentes do período de trevas, na mídia e
nos tribunais superiores, assumindo a função de arautos da democracia e dos
direitos. Pode-se criticar a Lava Jato sem risco.
Os
crimes contra a democracia foram esquecidos e, como tal, estão sujeitos a serem
repetidos.
PEÇA 3 – O PAPEL DO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Assim
como a mídia, desde o mensalão o STF avalizou as arbitrariedades e ilegalidades
da Lava Jato e convalidou aquelas politicamente mais relevantes, todas – repito
TODAS – as que tinham implicações diretas em favor do impeachment e da prisão
de Lula.
1.
A votação da prisão após 2a instância, que poderia abrir espaço para a
libertação de Lula antes das eleições. A Ministra Rosa Weber, originalmente
contra a prisão em 2a instância, mudou seu voto em nome da “colegialidade” –
isto é, para não ficar contra a maioria. Seu voto, por ser de desempate,
definiria a maioria. Ou seja, antes de ser proferido, não havia maioria e,
portanto, nenhuma razão para a tal colegialidade. Seu voto foi recheado de
citações de juristas internacionais. Um repórter da Folha, na época, consultou
a jurisprudência do STF e constatou que a maioria dos juristas citados
constavam de votos do Ministro Luiz Edson Fachin, jamais de Rosa Weber.
2.
Os algoritmos do Supremo e do Tribunal Superior Eleitoral, com os sorteios dos
casos mais sensíveis sempre caindo com Ministros dos quais já se sabia de
antemão a posição – os de Lula e Dilma com Ministros anti-PT; os de
Aécio Neves e José Serra com Ministros pró-PSDB, em ambos os casos os mesmos.
3.
A autorização para a prisão de um senador da República, com base em uma grampo
induzindo a uma informação falsa – a de que Lula e André Esteves, do BTG
Pactual, teriam proposto uma fuga a um dos delatores da Petrobras. Notícia
falsa, mas que permitiu novas prisões preventivas.
4.
Impedimento de Lula assumir a Casa Civil de Dilma com base em um grampo
triplamente falso: fora do prazo permitido; envolvendo conversa com a
presidente da República, portanto fora da alçada da 1a instância; por não dizer
respeito aos fatos investigados, não poderia ter sido divulgado. Mesmo assim,
foi acatado pelo STF.
É
canhestra a tentativa de atribuir os recuos do STF a um mero Twitter do general
Villas Boas. Ou mencionar algumas discordâncias do STF em relação à Lava Jato,
em episódios de menor relevância, como álibi para apagar a história do período.
A opinião militar ganhou peso porque, antes disso, o jornalismo de guerra
convalidou o vale-tudo contra os adversários políticos, transformados em
inimigos.
Desde
o mensalão, o fuzilamento moral pela mídia impôs o discurso de ódio, o primado
de que os fins justificam os meios, promovendo escrachos em
aeroportos contra qualquer Ministro que ousasse conceder o reconhecimento dos
direitos dos réus, por mais inexpressivos que fossem seus gestos – meramente
acatando um embargo de declaração, por exemplo.
PEÇA 4 – O NOVO PACTO DA
ANISTIA
Assim
como no fim da ditadura, esboça-se atualmente um novo pacto de anistia. É
relevante por duas coisas: por explicitar a ansiedade dos pactuadores em
superar rapidamente o clima irrespirável do momento; mas por se saber
claramente, hoje em dia, os resultados de sair dos períodos de exceção sem uma
justiça de transição, sem punição – ainda que meramente moral -, uma
autocrítica, um pedido público de desculpas pelo mal que causaram, abrindo
espaço para a ascensão das bestas do Apocalipse na condução do país.
A
falta de punição permite a instrumentalização dos princípios e a reiteração dos
abusos. O sujeito, jornalista, político, homem público, Ministro, pula de um
barco para outro e pode voltar para o barco inicial sem risco de ser exposto e
podendo retornar daqui a pouco ao barco do golpismo.
A
força desses homens-bambus (que acompanham o movimento dos ventos) reside em
sua exposição pública. A imagem pública de alguém deveria ser a síntese dos
atos que pratica. E um dos atributos é a coerência em torno de princípios
claros. Bolsonaro é coerente, no alinhamento com a barbárie. Mas os novos
campeões da democracia, não são. Nós sabemos o que eles fizeram nos últimos
verões.
Não
se trata de revanchismo, de criminalizar pessoas, mesmo porque o grande pacto
nacional tem que se dar em torno de um amplo processo de pacificação. Mas se
trata de expor e condenar as práticas nas quais incorreram.
Juristas
progressistas, que avalizaram o impeachment, precisam admitir que transformar
um problema contábil em crime de responsabilidade é uma violência contra a
democracia. Ministros do STF que aceitaram o estupro da Constituição, sob o
argumento de que a presidente tinha perdido condições de governabilidade, tem
que assumir que seu papel é defender a Constituição. Imprensa que praticou, e
ainda pratica, o jornalismo de guerra, tem que buzinar aos quatro cantos que os
princípios legitimadores do jornalismo são a defesa dos direitos e a
diversidade de opiniões. O PT tem que admitir que o excesso de pragmatismo
político comprometeu todo um projeto popular e expôs aos inimigos a Petrobras.
Sem
essa purgação dos pecados, tudo será como antes. Ou seja, se os fins procurados
exigem garantismo, tornam-se garantistas; se os fins exigem punitivismo, punitivistas
se tornam, sem a menor preocupação com a coerência. Voam da intolerância mais
abjeta para o legalismo mais defensável sem serem cobrados. Qual a garantia de
que, passado o fantasma Bolsonaro, não retomem o discurso de ódio do período
anterior, sabendo que a memória publicada e televisada tem prazo de validade,
não quer saber os pecados que foram cometidos.
É
esse país de hipócritas que se deseja legar para as próximas gerações?
Há um pacto em andamento,
similar ao pacto da anistia, que consiste dos seguintes passos:
*
Atribuam-se todos os abusos do período à Lava Jato Curitiba, ao brilho
inexcedível de Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, que conseguiram ludibriar mídia,
Supremo, tribunais superiores.
*
Considerem-se todos os escorregões do STF como fruto da ação incomparavelmente
maliciosa de Moro explorando a boa fé de Ministros ingênuos (levante alguns
casos irrelevantes, em que decisões de Moro foram reformadas, para defender a
ação isenta do Supremo no período).
*
Atribua a adesão incondicional da mídia à Lava Jato como reflexo legítimo da
indignação com a corrupção, mesmo que tenha feito a divisão entre os corruptos
do lado de lá e os do lado de cá, e poupado os amigos.
*
Esqueça que todos os abusos da Lava Jato foram testemunhados por repórteres
setoristas, alocados em tempo integral da operação e que esconderam as torturas
inflingidas a presos, as retaliações contra delegados que reagiram contra as
ilegalidades. Diga que foi a astúcia incomparável de Moro que permitiu levar a
mídia no bico e todos se beneficiaram profissionalmente da parceria por
idealismo desprendido.
PEÇA 5 – MORO E A LAVA
JATO
A
figura pública de Sérgio Moro foi exposta pela primeira vez como Ministro da
Justiça. Na Lava Jato era apenas o juiz monossilábico que se manifestava
através de sentenças mas que, nas audiências, mostrava uma timidez
surpreendente para o personagem criado pela mídia.
Conhecendo,
agora, ele, Deltan Dallagnol e seus colegas, dá para apostar na narrativa dos
seres cerebrais, que manipularam STF, mídia, tribunais superiores? É evidente
que não. Foram apenas instrumentos de um jogo muito maior. Aliás, ambos, juiz e
procuradores, foram a parte mais viciada da aliança nacional pelo impeachment,
pelo excesso de pequenas ambições, pelo discurso salvacionista e pelo
deslumbramento tipicamente provinciano.
Na
Vazajato, juiz e procuradores, que se tornaram a principal peça para derrubar
uma presidente da República, se encantavam com o mercado de palestras, com os
convites para salões grã-finos, com os cachês recebidos, em fazer bonito para a
sua Igreja e para seu banco de investimento de predileção, ou em exibir
fotografias de viagens internacionais em seus perfis, em uma demonstração
típica de agentes políticos microscópicos, que agiam apenas como bactérias
oportunistas sobre o tecido social e político do país.
Transformá-los
em bodes expiatórios não melhorará em nada a democracia brasileira. Apenas
mudará a guarda para as próximas aventuras antidemocráticas, para as quais
serão convocados novos personagens dos porões.
PEÇA 6 – O NOVO ARREGLO
DA ANISTIA
A
Justiça de Transição que o país necessita não é a a execração pública de
pessoas, não é ajoelhar no milho nem se vergastar em público. É uma desafio
institucional, um pacto entre poderes, especialmente aqueles mais responsáveis
pelo macarthismo do período anterior, assumindo as culpas institucionais.
Um
primeiro ensaio de autocrítica seria a defesa intransigente de um
aprofundamento da democracia e não apenas da perna penal da Lava Jato. Por
exemplo, cobrar do Procurador Geral da República Augusto Aras a recomposição da
área de direitos humanos que tem em cargo chave, hoje em dia, um procurador
terraplanista de ultra-direita. As áreas de direitos humanos têm sido
desmontadas no âmbito da Procuradoria Geral da República, sem um centésimo da
repercussão dos temas da Lava Jato. Apoiar o PGR sem exigir a contrapartida da
recuperação da defesa dos direitos difusos e das minorias, é hipocrisia.
Um
segundo ensaio seriam manifestações de Ministros do Supremo – especialmente os
que mais se lambuzaram com o clima da Lava Jato – de afirmação dos princípios
constitucionais e o fim da manipulação das eleições com suas decisões. E uma
defesa firme dos direitos daqueles que eram e continuam sendo tratados como
“inimigos’.
Um
terceiro ensaio seria a mídia ir além das meras manifestações de fé na
democracia e assumir a defesa intransigente das vítimas do outro lado –
lideranças rurais e indígenas assassinadas, jornalistas independentes
massacrados por ondas de processos, o genocídio na periferia etc.
Principalmente,
o reconhecimento que foi essa guerra política irresponsável, essa exploração do
ódio, do direito penal do inimigo que levou o Brasil ao ponto mais baixo da
degradação moral, com a eleição e, mais do que isso, a contemporização com a
presidência de Jair Bolsonaro.
Do
GGN