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sábado, 12 de agosto de 2017

Juiz que não afasta qualquer dúvida sobre sua parcialidade é ilegítimo

Foto: Paulo Whitaker/Reuters

Em artigo publicado no Conjur nesta sábado (12), os advogados Ruiz Ritter e Luíza Richter abordam as polêmicas em torno da figura do juiz parcial. Em alta, o assunto foi puxado por causa do episódio com o desembargador Paulo Espírito Santo, do TRF2, que fez um comentário ardiloso demonstrando subvalorizar a função das defesas.

Mas a Lava Jato também marcou a discussão com os questionamentos feitos pela defesa de Lula ao juiz Sergio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba. O magistrado respondeu a inúmeros pedidos de suspeição e aguarda julgamento no Conselho Nacional de Justiça pela falta de imparcialidade em relação ao ex-presidente, segundo alegam os advogados.

Para Ritter e Richter, juiz imparcial não é a mesma coisa que juiz neutro, sem subjetividade sobre o que irá julgar. O juiz imparcial é aquele que, mesmo diante da subjetividade, sabe que deve dar tratamento isonômico às partes.

Por Ruiz Ritter e Luíza Richter, No Conjur.

Inverno de 2017, século XXI, e ainda é possível observar no Poder Judiciário, por meio de seus representantes, evidentemente, um poder que, ao revés do seu papel constitucional vinculado à um Estado Democrático de Direito, confunde-se (revela-se) com um poder supremo-divino. Há, inclusive, magistrado “perdoando” (sim, a palavra é essa) advogados por exercerem seu ofício: “Eu perdoo o advogado que vem aqui defender clientes. Essa é a função do advogado e a gente tem que perdoar” (frase do desembargador Paulo Espírito Santo, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região)[1]. E há quem acredite (e sustente) que nosso sistema de Justiça criminal não se alimenta da mesma lógica autoritária que vigorava por detrás da Santa Inquisição, em que juízes-inquisidores detinham múltiplos e ilimitados poderes, já que representantes da vontade de Deus. Será mesmo?

Não vamos adentrar na problemática atinente ao ativismo judicial, tão já fundamentadamente criticado por Lenio Streck (há bastante tempo, diga-se), que chegou a escrever recentemente um livro intitulado Juiz não é Deus[2], para dar apenas um oportuno exemplo; na necessidade de se compreender em definitivo o Estado como um Estado laico, o que haveria de estar incontroverso desde o movimento de secularização propagado no século XVIII; nem tampouco na relevância do artigo 133 da CF/88, que chancela a indispensabilidade do advogado à administração da Justiça[3]. Mas há algo preocupante nessa manifestação também por outro viés, que impõe nossa reflexão: é legítima uma jurisdição quando esta não é visivelmente (estética da aparência) imparcial?

Vale recordar que, ao se falar em jurisdição, a título de definição, se está falando de uma garantia constitucional, um direito fundamental de qualquer cidadão de ser julgado por um juiz natural (pré-determinado por lei, e não ocasional, escolhido) e imparcial, qualidade que reflete justamente a essência dessa jurisdição[4], sua verdadeira condição de validade[5].

E elementar que ao se falar em imparcialidade não se está falando da superada ideia de neutralidade (ausência de pré-conceitos inerentes a subjetividade humana). Ao contrário, se está assumindo essa subjetividade, para compreender tal imparcialidade (em síntese) como uma construção jurídica, que visa preservar a cognição do julgador, para que não beneficie uma parte em detrimento da outra, involuntariamente ou não, impondo, para tanto, limites à sua atuação no processo, no sentido de conduzi-lo como terceiro desinteressado (alheio[6]) em relação às partes, comprometendo-se, contudo, em apreciar na totalidade ambas as versões apresentadas sobre o fato e proporcionar sempre igualdade de tratamento e oportunidades aos envolvidos. É de pressuposto de legitimidade e limite que se trata, portanto.

Tolerar que um magistrado manifeste seu “perdão” a um advogado é tolerar uma jurisdição vazia e ilegítima, porque parcial. E não há a necessidade de se analisar o processo para constatar essa parcialidade: ela é inerente à admissão de que o patrocínio da defesa constitui-se em pecado (que deva ser perdoado). Não é admissível que um magistrado faça um juízo de valor depreciativo dessa forma a uma das partes. Trata-se, aqui, de violação da imparcialidade subjetiva, como definida pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos (desde 1982, a partir do caso Piersack vs. Bélgica[7]), posto que está explícita a preferência do magistrado pela parte acusadora, a qual não necessita de perdão para atuar no processo.

Nada mais sintomático do processo penal contemporâneo, tragicamente moldado pela operação "lava jato". Não surpreende, aliás, que o MPF proponha, no âmbito de suas 10 medidas contra à corrupção, a restrição de recursos criminais quando “meramente protelatórios” e não apresente qualquer definição a respeito de quais são estes, atribuindo ao Judiciário o poder dessa decisão[8]. Ou, ainda, que responsabilize as defesas e o sistema recursal como um todo pela morosidade do Judiciário e pelo “não cumprimento da lei”[9]. O órgão acusador, afinal, sabe para qual lado pende a balança, e a defesa está cada vez mais vista como um entrave à (ainda vigente) busca da “verdade” no processo, exatamente como era considerada no âmbito da Inquisição[10].

Enfim, respondendo à questão inicial: ilegítima uma jurisdição que não afaste qualquer dúvida sobre sua parcialidade (dimensão objetiva da imparcialidade, nos termos do TEDH). Que dirá, então, quando há uma manifestação expressa de preferência por uma das partes pelo julgador (dimensão subjetiva), que “aceita” e “perdoa” a outra pelo simples exercício do seu mister. De fato, vivemos tempos sombrios.


[2] STRECK, Lenio Luiz. Juiz não é Deus – Juge n'est pas Dieu. Curitiba: Juruá, 2016.


[3] CF/88, art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.

[4] Princípio basilar da função jurisdicional, nas palavras de Montero Aroca (MONTERO AROCA, Juan. et al. Derecho jurisdiccional III: proceso penal. 10ª ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2001. p. 29).

[5] De fato, “La imparcialidad judicial es una garantia tan esencial de la función jurisdiccional que condiciona su existencia misma: [...]” (CORDÓN MORENO, Faustino. Las garantias constitucionales del proceso penal. 2ª ed. Navarra: Arazandi, SA, 2002, p. 109).

[6] “Terzietá” como intitula a doutrina italiana, a exemplo de Ferrajoli (FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoria del garantismo penal. 10ª ed. 1ª reimpressão. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez; Alfonso Ruiz Miguel; Juan Carlos Bayón Mohino; Juan Terradillos Basoco; Rocío Cantarero Bandrés. Madrid: Trotta, 2014. p. 580).

[7] European Court of Human Rights. Case of Piersack vs. Belgium: Application 8.692. 1 october 1982. Disponível em:


[8] Medida de nº 4 referente a recursos considerados meramente protelatórios, determinando que, quando a autoridade judicial verificar que se trata de ato protelatório ou direito abusivo de recorrer, irá determinar o trânsito em julgado imediato da decisão recorrida e o retorno dos autos à origem (art. 580-A. Verificando o tribunal, de ofício ou a requerimento da parte, que o recurso é manifestamente protelatório ou abusivo o direito de recorrer, determinará que seja certificado o trânsito em julgado da decisão recorrida e o imediato retorno dos autos à origem. Parágrafo único. Não terá efeito suspensivo o recurso apresentado contra o julgamento previsto no caput).

[9] O que pode ser extraído dos seguintes trechos dessa mesma Medida nº 4: "Tal como reconhecido pelo então Presidente do STF, Ministro Cezar Peluso, em entrevista concedida ao jornal O Estado de S. Paulo no dia 22 de dezembro de 2010, 'o Brasil é o único país do mundo que tem na verdade quatro instâncias recursais. É certo que esta ampla e quase inesgotável via recursal tem sido utilizada, na maioria das vezes, para protelar a marcha processual e evitar o cumprimento da lei. Daí a importância de que as condutas tendentes a prejudicar a celeridade e a efetividade da prestação jurisdicional sejam neutralizadas, sobretudo nos tribunais, onde o exame da prova já se encontra exaurido.' [...] “O principal gargalo para a eficiência da justiça criminal e o enfrentamento à corrupção é o anacrônico sistema recursal brasileiro".

[10] Como revela o inquisidor Nicolau Eymerich no seu manual para inquisidores, no capítulo intitulado “Obstáculos à rapidez de um processo”: “O fato de dar o direito de defesa ao réu também é motivo de lentidão no processo e de atraso na proclamação da sentença. Essa concessão algumas vezes é necessária, outras não” (EYMERICH, Nicolau. Manual dos Inquisidores. Trad. Maria José Lopes da Silva. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; Brasília: Fundação Universidade de Brasília, 1993. p. 137).

GGN

quarta-feira, 7 de junho de 2017

A Imparcialidade do juiz e as suas convicções

A humanidade do juiz e os pontos fora da curva, por Charles Leonel Bakalarczyk

O juiz quando julga não é “neutro”. Ele tem uma bagagem cultural/ideológica que vai ter uma influência maior ou menor em cada caso.

Por isso, quando o magistrado diz o direito, pratica um ato que é o resultado de uma tensão, da contradição dialética entre o seu dever de imparcialidade e a clivagem ideológica do seu saber.

Aliás, nada mais humano. Exigir conduta diversa do juiz, como fazem os positivistas (uma técnica jurídica completamente neutra, afastada de valores e das relações sociais) é puro engodo. Não há como retirar do juiz a sua humanidade.

No entanto, virar o fio é um equívoco. Ou seja, o componente ideológico não pode ser hegemônico ao ponto de abalar a imparcialidade ou afastar a técnica jurídica definida em leis, códigos e na Carta Política (e ainda na doutrina e na própria jurisprudência – enfim, nas “fontes” do Direito).

Com efeito, “dizer o direito” não se confunde com o “fazer a política” (política aqui em sentido amplo). Uma decisão judicial certamente é ato político na exata medida que espelha uma manifestação do Estado-Juiz. Mas é um ato político em sentido estrito, um rio que corre pelas margens da técnica jurídica (ainda que a aplicação dessa técnica não seja balizada por uma neutralidade absoluta).

Ao juiz não é permitido praticar ato político em sentido amplo porque ele não tem mandato popular (falo do juiz em sua função de dizer o direito). Ele não é eleito pelo povo, não exerce representação política. E que bom que seja assim, porque confere relativo equilíbrio ao sistema de “três poderes” de Montesquieu.

Por isso, fico preocupado com declarações como a do ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o Sr. Sydney Sanches, afirmando que determinados julgamentos da corte não são somente de natureza jurídica e que levam em conta aspectos relacionados ao contexto político do país.

Disse Sanches: - (O TSE) não é um tribunal só de julgamento jurídico. Afinal de contas, um caso como esse está decidindo o destino do país. Então, não é muito fácil ficar apegado estritamente ao texto legal. (fonte: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-40173395).

Tenho para mim que julgamentos de exceção, pontos fora da curva, movidos pelas paixões políticas, não auxiliam em nada na consolidação da frágil democracia brasileira. Ao contrário!

GGN