Nascida
na Paraíba, "Gilvânia do MST" é filiada ao PT e atua há 30 anos na
luta pela reforma agrária no Maranhão.
Escolhida
pelo MST Maranhão como pré-candidata a deputada federal, Gilvânia Ferreira já
soma 30 anos de movimento sem terra - Hannah Letícia,
A
imagem da infância é a cerca do latifúndio que esmaga o quintal da casa. Nesse
cenário, complementa-lhe o olhar diário a cana-de-açúcar, a usina, os
trabalhadores e as trabalhadoras esbagaçados no engenho, além de famílias sem
terra buscando pequenos pedaços que lhes caibam na franja das gigantes fazendas
de um único dono, para plantar e sobreviver à fome.
Na
comunidade de Canafístula, no interior da Paraíba, nos idos dos anos de 1970,
uma menina de uma família de camponeses sem terra pobres percebe que as
condições de vida dessa gente não andam muito bem. Embora lhe faltasse
discernimento à época, não lhe faltava a astúcia do querer saber.
A
menina foi crescendo inquieta, enérgica, estudiosa. Devorava livros de
literatura emprestados pelas professoras da escola. Começa a imaginar o
mundo, que não queria igual ao de sua convivência, por vezes tão brutal.
Aos
nove anos, lê cordel para homens e mulheres analfabetos, que só tinham o fardo
do trabalho na roça e na cana, sem arte, sem direito, sem pão, sem chão. Aos
13, escreve cartas carregadas de saudades e novidades a pedido dos camponeses e
das camponesas para enviar aos seus parentes distantes, migrantes que foram
obrigados a vender sua força de trabalho em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Na
juventude, embalada pelos discursos proferidos por Margarida Alves,
sindicalista rural na Paraíba, a vida começa a traçar seu destino. Participa da
igreja organizando grupo de jovens, até que um dia lhe chega um livro sobre as
mulheres combatentes da Nicarágua. A cabeça fervilha. Agora, ela tem a certeza
de que as mulheres têm importante papel nesse mundo e passa a conceber que
a luta pode ser organizada pelo povo.
Aos
17 anos, em 1987, conhece o Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
ainda em seu estado natal, Paraíba, num momento de intensos conflitos por
terra, caracterizados por violência e assassinatos contra famílias camponesas.
Mesmo assim, sem temer, lhe dá vontade de engrossar as fileiras junto a tantos
e tantas lutadoras contra a concentração de terra e as desigualdades sociais
nesse país. Então decide: “A partir de agora, vou rodar este país, este
Nordeste, ocupando terra e fazendo luta pela reforma agrária”.
Nascia,
então, a histórica e sagaz militante, conhecida como Gilvânia do MST.
Depois de colaborar com a fundação do movimento em vários estados da região,
foi enviada ao Maranhão. Hoje, 30 anos depois de sua chegada ao estado,
Gilvânia tem a memória e a participação nos principais embates da luta pela
reforma agrária na terra do arroz, da juçara, do babaçu e do reggae.
Lançada
recentemente pelo MST como pré-candidata a deputada federal pelo PT
do Maranhão, Gilvânia explica, em entrevista ao Brasil de Fato, porque
agora aceitou entrar para outra frente de batalha, onde mulheres negras, mães,
educadoras e camponesas como ela não têm espaço.
Confira
abaixo a entrevista concedida ao Brasil de Fato:
BdF
- São 30 anos de MST-Maranhão. Você ajudou na constituição de muitos
assentamentos que beneficiam milhares de famílias hoje. É isso que te chama
para uma nova luta concorrendo como pré-canditada à Câmera Federal?
Gilvânia
do MST - O que me chama a concorrer como pré-candidata a deputada federal
é minha história, minha classe e a decisão do meu movimento, a vontade de
mudar este país em benefício dos mais prejudicados, trabalhadores e
trabalhadoras do campo e da cidade, os indígenas, os quilombolas, os
ribeirinhos, as populações extrativistas, as várias juventudes que existem
neste país, as mulheres.
O
que me chama é a luta por um conjunto de direitos que nos foram negados e
tirados, para reverter isso e promover políticas públicas que ajudem a fomentar
saúde, educação, cultura, lazer, trabalho, renda, acesso à terra, habitação,
tudo que leve a população maranhense a uma vida digna. [Para] participar de um
lugar de luta importante na política brasileira, que sempre negou ou não deixou
pessoas com minha trajetória de vida chegar lá – filha de camponeses
pobres, sem terra, mãe, negra, camponesa e educadora.
Como
você conheceu o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra?
Quando
eu tinha 17 anos, foi nesse período que eu escutei falar do MST. A sindicalista
Maria da Penha, que estava ajudando nas articulações para a chegada do MST na
Paraíba, me convidou para participar de uma oficina sobre o Jornal Sem Terra,
editado e produzido pelo Movimento.
Dessa
oficina, já saí como zeladora, que cuida da chegada e distribuição do
jornal nas regiões e nos territórios. E fui correspondente também do
periódico, ficando responsável por mandar informações sobre as confusões
agrárias na Paraíba: a área em conflito, a história do lugar, nome do
fazendeiro, quantas famílias estavam mobilizadas, quais as organizações que
estavam ajudando no processo de resistência.
Lembro
que foi a primeira vez que me chamaram de "comunista", quando eu
distribuía o jornal na escola, nas comunidades rurais. "Ah, você é
comunista, esse jornal é de comunista". Falar de reforma agrária era ser
comunista, isso estava muito vinculado, na Paraíba, às ligas camponesas, que
foram muito fortes.
Depois
eu fui pra são Paulo, também numa atividade do Jornal Sem Terra. Sendo minha
primeira viagem para fora da Paraíba. E depois fui para o 5º Congresso Nacional
do MST em São Paulo, também em 1989.
E
assim virou militante da organização?
É
importante contar um fato que aconteceu um ano antes, em 1988. Além da tarefa
do Jornal Sem Terra, eu também estava com a tarefa de articulação da
organização do Movimento no estado da Paraíba. E foi nesse ano a
realização de um encontro estadual com várias organizações e pessoas para
decidirem se a gente ia fundar o MST na Paraíba ou não.
A
pergunta na assembleia, na verdade, era: vamos ou não ocupar terra? Se sim,
fundamos o MST no estado. Era um momento de muita violência do latifúndio
contra os posseiros, camponeses que queriam terra para trabalhar na Paraíba.
Então, as pessoas tinham muito medo desse enfrentamento.
A
votação estava empatada. O Jaime
Amorim estava nessa assembleia e disse que meu voto foi decisivo.
Lembro que Neuri
Rosseto estava presente também, dois militantes históricos do MST.
Pois bem, votei pelo "sim" das ocupações e ali fundamos o MST na
Paraíba.
Esse
"sim" foi para muitas coisas: para a fundação do MST, mas
também foi o momento em que tomei uma decisão definitiva na minha vida: "A
partir de agora, vou rodar este país, este Nordeste, ocupando terra e
fazendo luta pela reforma agrária".
Eu
tinha terminado o ensino médio e já poderia entrar nas fileiras da luta. Esse
era o compromisso: não podia largar os estudos, senão a Maria da Penha me
"puxava as orelhas".
E
você foi rodar o Nordeste nas lutas do MST?
Sim,
mas, quando voltamos do quinto congresso, já tínhamos a tarefa de em um mês
começar a ocupar terra na Paraíba, ou seja, voltamos pro trabalho de base. É o
período em que entro na Frente de Massa, mas sempre me articulando com todos os
temas e setores do MST.
Quando,
no ato da ocupação, você precisa organizar a terra-mulheres, terra-escola,
terra-saúde, terra-juventude, terra-cultura, porque a terra tem todos esses
componentes, e o militante da Frente de Massa tem que ter a totalidade do
Movimento.
Tem
que saber trabalhar a questão de gênero – às vezes, íamos para as
negociações, e um monte de companheiro presente, e as mulheres fazendo a
refeição no acampamento. Não, isso não pode acontecer. E eu sempre dizia:
"Vamos colocar outras mulheres nessa comissão de negociação, as
companheiras da escola, as rezadeiras, as que fazem os remédios medicinais nos
acampamentos e por aí vai...".
Por
isso que hoje temos uma paridade de gênero no MST. Ou seja, a Frente de Massa
foi uma universidade pra mim, porque ali é necessário ser pedagogo, psicólogo,
compreender a subjetividade do povo que está no acampamento, entender
afetividade e os sonhos das crianças.
A
ocupação é a hora da partilha, de vencer o medo e de discutir problemas
estruturais da nossa sociedade. Por exemplo, a nossa base social do MST no
Maranhão, é majoritariamente negra, então temos que trabalhar a questão racial,
sobretudo, da sua participação na construção da riqueza deste país, onde os
negros e negras foram violentados, nos seus corpos, na sua subjetividade, na
sua sexualidade, foi um processo de violência brutal para produzir riqueza pra
colônia. Neste sentido, não podemos nunca esquecer que nossa base é indígena,
quilombola, ribeirinha, extrativista.
Assim,
eu fui com todos esses elementos despertos para trabalhar com o povo, andar por
este país. Participamos das primeiras ocupações de terra do MST no Ceará, em
Pernambuco e no Rio Grande do Norte. Já existia MST na Bahia, Alagoas, Sergipe
e Piauí. E no Maranhão já existia uma articulação do Movimento, com várias
organizações; entre elas, o Centro de Educação e Cultura do Trabalhador
Rural (Centru), coordenado pelo histórico Manoel da Conceição, que nos deixou o ano passado,
infelizmente.
E
como foi sua chegada ao Maranhão?
Minha
chegada ao Maranhão se deu através de um convite da Frente de Massa do
Movimento para que eu contribuísse com o processo de luta pela terra no
estado. Desembarquei em 2 de junho de 1992 na rodoviária de Imperatriz, vim pra
passar um ano e já estou há 30 anos [risos].
Ao
longo desses anos no Maranhão, muita coisa me marcou. Logo nos primeiros dias,
fui para um despejo na cidade de Zé Doca, numa terra grilada pelos fazendeiros
da região. Fomos despejados e retomamos a terra depois. Ou seja, "cheguei
chegando".
Depois
fui para Vitória do Mearim, na baixada maranhense, ajudar a organizar a escola
do acampamento Vila Diamante, que não tinha nada, nem cadeira, nem carteira,
nem lousa. Bom, nossa ideia era ocupar a prefeitura e exigir do prefeito da
cidade que fizesse as melhorias na escola e cedesse os materiais.
Mas não
tinha dinheiro para pagar os ônibus pra ir até a prefeitura com os acampados.
Aí a gente teve a ideia de parar os ônibus na rodovia, enchia de gente e,
assim, chegamos e ocupamos a prefeitura. Em muito pouco tempo, chegou muita
polícia, com muita repressão, deu tiro de bala de borracha, espancou e prendeu
19 companheiros.
Diante
disso, eu corri até a rádio da cidade para denunciar o que estava acontecendo,
e a polícia atrás de mim na rádio para me prender. Consegui escapar pelos
fundos e me esconder na casa de familiares de um promotor de Justiça na
época.
No
mesmo dia, começou a aparecer deputado, vereador, organizações de direitos
humanos vindos de São Luís para libertar os companheiros.
Como
eu estava dizendo na rádio que precisávamos de ajuda e qual era nossa causa,
começou também a chegar no meio do tumulto, muitas camionetes com as traseiras
cheias de trabalhadores rurais das comunidades. Os moradores da própria cidade
saíram às ruas, nos alojaram nas casas deles, foi um momento muito
bonito.
Qual
outro momento que você rememora na sua chegada ao Maranhão?
As
marchas convocadas pelo MST, que são inesquecíveis. Em 1993, fizemos uma grande
caminhada chamada de Marcha da Esperança, que foi de Vitória do Mearim até a
capital, São Luís, cerca de 240 km.
Essa
marcha foi em conjunto com a Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras da
Agricultura do Maranhão (Fetaema), com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o
movimento das viúvas dos posseiros assassinados na disputa pela terra, as
quebradeiras de coco, comunidades tradicionais – que ainda não chamavam de
quilombolas, se denominavam comunidade dos pretos, comunidade dos santos, terra
de preto, era assim os nomes. Na caminhada, as pessoas iam se juntando à marcha
e diziam: "Sou da comunidade das Lagoas"; "[Sou] da comunidade
dos Baianos", que tinham perdido suas terras griladas pelo agronegócio, e
iam entrando na marcha porque também estavam em conflito.
Fazíamos
debate sobre reforma agrária nos municípios e nas comunidades onde parávamos, e
tinha um sentido de formação muito importante. Essa estrada que liga as cidades
até São Luís é toda de conflito por terras. Foram mais de 10 dias de
marcha.
E
um dos momentos mais bonitos foi quando chegamos à ponte do Estreito dos
Mosquitos, na entrada de São Luís. Ali fizemos o Encontro das Luzes, que
era o encontro entre campo e cidade. Os trabalhadores da cidade nos
recepcionaram com tochas. Eu tinha 23 anos, e aquele foi um momento muito
marcante na minha vida.
Você
chegou por Imperatriz, mas depois foi para outras regiões. Quando é que
retornou e territorializou o MST nessa região?
Eu
rodava por todo o Maranhão, mas para a região Tocatina vim definitivamente em
1995. Aqui era tudo acampamento, não tinha assentamento. Tive minha filha
em 1995, a Tainá. Com menos de um ano da bebê, em 26 de março de 1996, ocupamos
a fazenda Califórnia. Era o filé mignon de Açailândia, na beira da
estrada.
Os
latifundiários já tinham ficado furiosos com a consolidação do assentamento
Itacira, conhecido como Vila Conceição, muito próximo à fazenda
Califórnia. Fomos despejados em 24 horas. Tinha a polícia vinda de toda a região
pra tirar a gente, pois era uma área cobiçada pelo projeto de celulose,
inicialmente da Celmar, que passou para a siderúrgica Ferro Gusa Carajás e
depois pra Suzano. Eles tinham comprado muitas terras em Açailândia para a
produção de eucalipto.
A
fazenda Califórnia, inclusive, estava na lista das fazendas que eles queriam
comprar para plantar eucalipto. Depois que ocupamos a fazenda, eles aceleraram
o processo de compra e plantação de eucalipto, tanto que hoje o assentamento
está cercado de eucalipto.
Nós
conseguimos reverter o processo de despejo fazendo muita mobilização no Incra
[Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], na cidade, porque eram
quase 600 famílias nessa ocupação. E assim conseguimos a desapropriação.
E
depois do assentamento Califórnia?
Como
tinham muitas famílias nessa luta, nós tínhamos possibilidade e gente para
ocupar mais terras na região. E foi aí que descobrimos que tinha uma área
pública do Exército que tinha sido cedida pela Superintendência de
Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) para treinamento dos soldados na
região.
Ocupamos!
E o Incra não queria de jeito nenhum conversar com a gente. Então fomos
ocupar o Incra. Foram dias intensos de muita mobilização, mas conseguimos as
terras cedidas para o Exército, uma área de quase 22 mil hectares que hoje
abriga um complexo de assentamentos e vilas: Nova Vitória, Nova Conquista,
Macaúba, Conquista da Lagoa, 50 Bis... É uma das maiores conquistas do MST
nessa região e demarca nossa territorialização na região tocantina.
Brasil de Fato.