Qual
deve ser a posição brasileira diante da guerra na Ucrânia? Em sua maior parte,
a mídia corporativa brasileira, seguindo caninamente a mídia ocidental, já
escolheu um lado. Vem demonstrando uma parcialidade escancarada, comprometendo
a sua obrigação de informar.
É
um grave equívoco. Não cabe ao Brasil tomar partido nesse complicado conflito.
E não é o que tem feito Brasília. Mesmo os adversários mais renhidos de
Bolsonaro, entre os quais me incluo, precisam reconhecer que é correta a
posição inicial do governo brasileiro, em especial do Itamaraty. Bolsonaro,
como sempre, dá suas derrapadas. Resiste, porém, à pressão dos EUA e da mídia
tradicional brasileira para que se alinhe ao lado ocidental. Por enquanto. Como
tudo é muito volátil, preciso dizer que estou escrevendo em 4 de março.
Para
entender o que está em jogo, é fundamental se dar conta de que o que estamos
vendo não é primordialmente uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia, mas sim uma
guerra entre a Rússia e os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte
(OTAN), aliança militar comandada pelos Estados Unidos. A Ucrânia, coitada,
entrou de gaiato no navio. Está lutando por procuração. Foi levada por
lideranças nacionais levianas e incompetentes a uma confrontação com a segunda
maior potência militar do planeta.
O
Brasil não pode, evidentemente, apoiar a invasão de um país por outro.
Precisamos nos ater à nossa posição tradicional de defender a busca de solução
diplomática e pacífica para as desavenças entre países.
Mas
precisamos, também, entender o lado da Rússia. Como este tem recebido pouca
atenção na mídia brasileira, vou tentar explicá-lo brevemente, sem a pretensão
de cobrir todos os aspectos de uma questão que é, insisto, de extraordinária
complexidade.
Toda
a confusão começa com a ampliação da OTAN para o Leste da Europa desde os anos
1990, como vem sendo crescentemente reconhecido no Brasil. Em etapas,
aproveitando a fraqueza da Rússia na época, a aliança militar ocidental foi
incorporando países antes pertencentes ao bloco soviético (Polônia, República
Checa, Eslováquia, Hungria, Romênia e Bulgária) e até mesmo países que
resultaram da dissolução da União Soviética (Lituânia, Letônia e Estônia).
Olhem o mapa da Europa e coloquem-se no lugar dos russos.
A
crise se aguçou em 2014, quando o governo ucraniano de Viktor Yanukovich,
próximo a Moscou, foi derrubado por um golpe de Estado, umas daquelas
revoluções coloridas, semelhante à que se organizaria no Brasil e levaria à
derrubada de Dilma Rousseff. Muito mais violenta, mas parecida. Não se engane,
leitor, sobre o seguinte ponto: houve ativa participação dos EUA (governo
Obama) na derrubada de Yanukovich.
A
pretensão americana de incorporar a Ucrânia à OTAN foi o passo fatal.
Perseguida por Kiev depois do golpe de 2014, essa pretensão não poderia ser
aceita por Moscou sem colocar em risco a segurança nacional da Rússia. Olhem de
novo o mapa e vejam a distância que separa a fronteira com a Ucrânia da capital
russa. Como se não bastasse a Estônia estar praticamente na esquina de São
Petersburgo, a segunda maior cidade russa!
Mesmo
assim, volto a dizer, o recurso da Rússia à violência e à invasão da Ucrânia é
deplorável. Não pode ser coonestado pelo Brasil. Temos que ser solidários ao
povo da Ucrânia, que passa por uma experiência terrível.
Pode-se
perguntar: o fato de o Brasil não poder apoiar a Rússia e condenar a invasão
prejudica os BRICS? Alguns apressados, já decretaram o fim do agrupamento. Isso
não tem o menor cabimento. Posso dar o testemunho de alguém que participou do
processo de formação dos BRICS desde o início, em 2008: os BRICS nunca foram,
nem pretenderam ser, uma aliança política – ponto que explico detidamente no
meu livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém, especialmente na
segunda edição. Os BRICS são um clube ou mecanismo de cooperação com propósitos
muito importantes, mas limitados. O grupo avançou mais do que outros grupos
semelhantes, tendo chegado a criar o seu próprio banco de desenvolvimento e o
seu próprio fundo monetário. Mas é um mecanismo circunscrito primordialmente à
área econômico-financeira. A Rússia sabe perfeitamente disso e não espera uma
adesão do Brasil a suas posições políticas.
A
posição inicial do governo Bolsonaro após a eclosão da guerra tem sido
basicamente correta, como disse, mas não se deve esquecer que este governo deu
um tremendo passo em falso num tema correlato, passo em falso que não tem sido
muito lembrado agora. Refiro-me ao fato de que, em 2019, quando Donald Trump
ainda era presidente dos EUA, Bolsonaro celebrou a designação do Brasil como
“aliado extra-Otan”. Isso não fazia sentido nenhum na época, e faz menos ainda
hoje em face da confrontação Rússia/OTAN.
O
Brasil deve ser um país não-alinhado. O que isso significa? Várias coisas.
Precisamos, por exemplo, voltar a ser participante ativo dos BRICS, algo que se
perdeu nos governos Temer e Bolsonaro. Temos que retomar e fortalecer as nossas
relações com a América Latina e África, sem parti-pris ideológico,
isto é, sem se preocupar se os governos dos outros países são de esquerda,
direita ou centro. No entanto, essa abertura para o chamado Sul político não
implica relações hostis com os Estados Unidos, a Europa ou o Japão. Ao
contrário, o Brasil deve buscar relações, não digo de amizade, uma vez que, como
dizia Charles de Gaulle, as nações têm interesses e não amigos, mas relações
positivas e construtivas com todas as nações.
Claro
que pouco ou nada disso será possível no governo Bolsonaro, em que pese os
esforços do Itamaraty, que melhorou a sua atuação depois da substituição de
Ernesto Araújo por Carlos Alberto França. Porém, sob novo comando a partir de
janeiro de 2023, o Brasil poderá fazer tudo isso e muito mais. Poderá até
desempenhar, se houver interesse das partes, um papel de pacificação do conflito
no Leste da Europa, conflito que, infelizmente, não será resolvido tão cedo.
Tijolaço!