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terça-feira, 16 de outubro de 2018

A ASCENSÃO DO FASCISMO, POR JESSÉ SOUZA

FASCISMO PROPRIAMENTE DITO
Todo fascismo é reflexo de uma luta de classes truncada, percebida de modo distorcido e por conta disso violento e irracional no seu cerne. A elite e a alta classe média haviam, com sucesso, legitimado a opressão das classes populares pelo moralismo seletivo da corrupção apenas do Estado e da política como forma de criminalizar a soberania popular. Os “belgas”, que se vem como estrangeiros na própria terra, oprimiram o “Congo”, ou seja, o próprio povo, e o reduziram á pobreza e á ignorância. O ódio ao escravo se transformou simplesmente em ódio ao pobre. O escravo negro é eternizado nas massas majoritariamente mestiças com escolaridade precária condenadas ao trabalho desqualificado e semiqualificado. Esta é a base primeira de todo o ódio e ressentimento reprimido e recalcado que é o núcleo da sociedade brasileira. O fascismo implícito sempre foi o DNA da opressão de classes entre nós. O que tem que ser explicado, portanto, é como ele contaminou as próprias classes populares.
O SURGIMENTO DO PT
A ascensão do partido dos trabalhadores, com todas as suas limitações, foi uma inflexão importante no processo de organização popular. Com o golpe de 2013/2016 a reação conservadora veio primeiro de cima, da alta classe média nas ruas, da sistemática corrosão de valores democráticos diariamente perpetrada pela imprensa, e do acanalhamento do STF e por consequência da constituição. O governo Temer promoveu o saque e a rapina que a elite queria e empobreceu o povo que havia experimentado uma pequena ascenção social. Foi dito a este povo que a corrupção política havia sido a causa do empobrecimento. Quando a corrupção dos partidos de elite fica óbvia a todos, sem ser reprimida, todo o sistema perde representatividade. O golpe de misericórdia foi a prisão injusta do líder das classes populares desmobilizadas. Aqui o último elo de expressão racional da revolta popular foi cortado.
NOTÍCIAS FALSAS (FAKE NEWS)
Abriu-se a partir daí a porta para a revolta agora irracional das massas. Neste contexto a ocasião faz o ladrão. A belíssima marcha do “ele não”, majoritariamente composta pelas mulheres da classe média mais crítica e engajada, possibilitou a cooptação do voto feminino das classes populares, última cidadela contra a “ética da virilidade” do fascismo popular. Aqui entra em cena o que há de mais sujo na política das “fake News” e da mentira institucionalizada. Analistas de ultradireita da campanha fascista, que perceberam as consequências do isolamento político dos indivíduos que é o que capitalismo financeiro representa na esfera política, se aproveitaram impiedosamente deste fato para oporem mulheres emancipadas da classe média contra as mulheres pobres e evangélicas.Se você é pobre e humilhada o ganho emocional que a distinção moral construída artificialmente com relação a mulheres supostamente “indecentes” exerce, por meio de mentiras que não podem ser desmentidas, passa a ter um apelo irresistível. É uma “vingança de classe”, obviamente distorcida e contra a fração errada da classe média, como escape em relação à pobreza vivida diariamente, mas cujas causas não são compreendidas.
“OS DELINQUENTES”
Como já discuti no meu livro “A ralé brasileira”, contracorrente, 2017, a oposição pobre honesto versus pobre delinquente perpassa os mais pobres dificultando enormemente qualquer solidariedade de classe. Daí também a importância de líderes políticos que os representem a partir de cima e secundarizem a contradição interna de classe com uma política de interesse de todos os pobres. Era isso que Lula representava. Sem isso a porta fica aberta para a guerra de classe entre os próprios miseráveis divididos entre os supostos honestos e supostos delinquentes como definidos pelas elites.
“BOIS DE PIRANHAS”
É aqui que a “ética da virilidade”- ou seja, a ética dos que não tem ética – do fascismo reina absoluta. O fascismo arregimenta a partir de cima os ressentimentos, medos e ansiedades sem explicação possível e os canaliza a “bodes expiatórios” externos. O antipetismo é apenas o mais óbvio. Mas todo fascismo usa e abusa da sexualidade reprimida das classes populares. A homossexualidade que não pode ser admitido em si mesmo é canalizado em selvagem agressão externa e o ódio a mulher percebida como ameaça incitam a uma agressiva regressão a padrões primitivos de relações de gênero. O pobre não é apenas pobre. Ele é humilhado e dominado por valores construídos para subjuga-lo. Isso confere ao fascismo enorme capilaridade e contamina a vida familiar e relações de vizinhança em todos os níveis da sociabilidade popular.
O FASCISMO À BRASILEIRA 
O líder fascista sem discurso e sem argumentos é o profeta exemplar perfeito das massas destituídas em todas as dimensões da vida. Sem organização hierárquica como os nazistas alemães, o nosso é um fascismo miliciano, capilarizado e sem controle. O que é necessário explicar ao povo de modo compreensível é porque ele ficou mais pobre. Sem isso se pavimenta o caminho ao ódio irreversível.  
GGN

domingo, 14 de outubro de 2018

O “COMUNISMO” IMAGINÁRIO E A DITADURA REAL. POR FERNANDO BRITO

Se permitirmos – e se o permitir o cinismo dos que invocam “mimimis” de autocríticas públicas, sabendo que isso é não apenas injusto como uma capitulação no combate – estaremos vivendo uma agravada e farsesca reedição de 1964, correndo o risco, quase certeza, de que a brutalidade e a longevidade do autoritarismo as supere.

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Perseguição, discriminação e autoritarismo no caso Barroso x Pizzolato

Depois demorar 1 ano para conceder a Pizzolato o direito de migrar do regime fechado para o semi-aberto, ministro do Supremo Tribunal Federal criou para o réu do Mensalão uma regra que ele próprio não exige de outros condenados. Em mensagens obtidas pelo GGN, Pizzolato denuncia outros abusos do Judiciário.
Condenado a 12 anos e 7 meses de prisão na Ação Penal 470 (Mensalão), Henrique Pizzolato já cumpriu o prazo exigido por lei para ter direito ao regime aberto. Mas o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, não tem acatado o que diz a lei e tampouco seguido decisões que ele próprio tomou no passado, denotando uma tendência a tratar Pizzolato de maneira diferenciada. É o que diz o ex-diretor do Banco do Brasil em mensagens onde denuncia uma série de "abusos” envolvendo o Judiciário.
Barroso, há não muito, protagonizou um bate-boca com Gilmar Mendes que teve como pano de fundo justamente o julgamento do Mensalão, além de Lava Jato e dos debates acalorados sobre execução penal a partir de condenação em segunda instância. Barroso parecia não querer ser visto como um ministro “leniente” com qualquer figura que tenha protagonizado - ou sido arrastada - para escândalos de corrupção.
Barroso também atacou Gilmar por criar jurisprudência de acordo com a cara do réu. Ironicamente, é disso que se trata a queixa de Pizzolato.
A demora de quase 1 ano de Barroso para autorizar a progressão de regime a Pizzolato pautou uma carta da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados à embaixada da Itália no Brasil, com um pedido para que o Ministério da Justiça da península tome conhecimento da morosidade do Judiciário brasileiro e interceda.
A carta explica exatamente o que aconteceu.
Em 7 de junho de 2016, Pizzolato, que está preso desde outubro de 2015, deveria ter começado o regime semiaberto. Mas esse direito só lhe foi concedido por Barroso um ano depois, em maio de 2017. Na prática, a progressão só ocorreu três meses após a autorização: em agosto de 2017.
A demora foi tanta que deu tempo de Pizzolato cumprir as exigências do regime aberto em julho de 2017. Na mesma data, Barroso recebeu um pedido para fazer a transição.
Ocorre que o ministro decidiu negar o pedido sob o argumento de que "embora tivesse cumprido 1/6 da pena em 7/6/2016, o sentenciado somente foi autorizado a progredir para o regime semiaberto no dia 30/05/2017. Data em que acolhida a proposta de parcelamento da pena de multa, requisito exigido pelo plenário do Supremo para a progressão do regime."
O parcelamento de multa foi um acordo no qual Pizzolato se comprometeu a pagar uma multa de R$ 2 milhões em parcelas de poucos mais de R$ 2 mil mensalmente.
Na prática, Barroso criou uma nova data para Pizzolato progredir de regime novamente, fazendo com que ele passe mais tempo em um regime que não lhe compete mais.
REGRAS DE ACORDO COM O RÉU
A Comissão de Direitos Humanos disse que a decisão de Barroso "surpreendente" porque o ministro, no caso de outra condenada no mensalão, decidiu de "forma diversa". Ele usou como data base para conceder a progressão para o regime aberto não o dia em que a decisão foi tomada, mas o dia em que a condenada, de fato, completou 1/6 da pena.
 Os parlamentares avaliaram que Barroso está "exigindo o cumprimento de uma pena superior àquela a qual [Pizzolato] foi condenado, em claro desrespeito a seus direitos legais", (...) constituindo-se em constrangimento ilegal a não observância da data em que o apenado efetivamente cumpriu o tempo da pena para a progressão de regime"
A Comissão ainda assinalou que o ministro deu "tratamento desigual e injustificado e em prejuízo de Pizzolato, fato que preocupa sobremaneira, por caracterizar-se em ato discriminatório, persecutório, e que não deverá prevalecer."
Pizzolato, por sua vez, escreveu recentemente uma mensagem, a qual o GGN teve acesso, onde afirma que a decisão de Barroso afronta o acordo Brasil x Itália e soma-se a vários outros abusos cometidos pelo Judiciário.
Em julho, a Comissão também enviou a Rodrigo Janot, antecessor de Raquel Dodge na Procuradoria-Geral da República, um ofício narrando uma série de arbitrariedades que ocorreram com Pizzolato na prisão. 
Por conta de uma regra interna da qual ele não tinha conhecimento, Pizzolato perdeu o status de preso vulnerável e foi transferido para uma cela compartilhada com mais uma dezena de presos que precisam se revezar para dormir no chão. Também sem explicações, tiram-lhe o direito à remissão da pena a partir da leitura de livros. Por um período de tempo, e igualmente sem justificativa, ele foi proibido de trabalhar. Tudo isso com aval da juíza da Vara de Execuções Penais do Distrito Federal Leila Cury, diz o documento.
LIVRAMENTO CONDICIONAL
Em outra mensagem, Pizzolato diz que já cumpriu um total de ⅓ da condenação há mais de 2 meses e poderia desfrutar do “livramento condicional”, mas continua no regime semiaberto sem perspectivas de mudanças. “Como as leis, no Brasil, não servem para nada, continuo refém e sendo, ainda, torturado. A tortura é deliberadamente assumida e consiste em usar de subterfúgios para lentamente matar o refém”, disparou.
A tortura a qual Pizzolato faz referência é um procedimento misterioso que tramita entre a Procuradoria-Geral da República e o ministro Barroso. 
Pizzolato desconfia que o magistrado solicitou um posicionamento de Raquel Dodge sobre o pedido de progressão para o regime aberto ou sobre o livramento condicional, embora sejam demandas distintas. 
O livramento condicional é um benefício que o réu pode solicitar quando tem bom comportamento, foi condenado a mais de 2 anos de prisão e já cumpriu ⅓ da pena. As condições em que o livramento poderá se dar depende dos critérios estabelecidos pelo juiz da execução penal.
Ocorre que, segundo relatos da esposa de Henrique Pizzolato, Andrea Haas, a PGR e Barroso não estão preocupados em discutir a progressão do regime ou os abusos que acontecem na detenção, mas sim “(des)cumprimento, pela Juíza Leila Cury, de um pedido dirigido a ela pelo ministro Barroso”, que não se sabe qual foi.
“O absurdo é Henrique – que já cumpriu TODOS os requisitos estabelecidos por lei (e mesmo aqueles, que não estão na lei, criados pelo ministro Barroso), seja para o regime aberto, seja para o livramento condicional – esperar, há muito tempo, em situação prisional irregular, que a Procuradora Raquel Dodge, a Juíza Leila Cury e o Ministro Barroso decidam por respeitar a lei”, escreveu a Andrea.  
GGN

sábado, 8 de julho de 2017

#SomosTodosJuízes ou a “pátria de toga”, por Rubens Casara

Linchamento ocorrido no Brasil em 2015 que vitimou Cleidenilson Pereira Silva. Foto: Biné Morais

 1 – Apresentação do Problema
Era uma vez, um tempo em que o brasileiro se orgulhava de conhecer como ninguém a beleza, as estratégias e os segredos do futebol. Esse tempo passou, talvez em razão da transformação dos campeonatos brasileiros em mercadoria (e de qualidade ruim), talvez diante da ferida narcísica provocada pela derrota para a Alemanha na última Copa do Mundo. Hoje, abandonada a sensação de que todo brasileiro entende de futebol, o Brasil tornou-se a pátria dos juízes. Os duzentos milhões de técnicos de futebol tornaram-se duzentos milhões de especialistas em direito, duzentos milhões de juízes prontos para julgar com celeridade fatos e pessoas. Todos se sentem habilitados a julgar e, enquanto isso, os juízes profissionais, aqueles concursados ou indicados para exercer a jurisdição estatal, tornaram-se protagonistas da vida política brasileira (alguns falam em efeito colateral do ativismo judicial, outros em hegemonia do “partido da justiça”).

O que interessa neste texto é analisar a “pátria de toga” à luz da formação cultural desses milhões de julgadores. Em uma sociedade de “juízes” forjados em uma tradição autoritária, os julgamentos serão sempre marcados pelo autoritarismo. E o Brasil, até agora, fracassou na missão de construir uma cultura democrática e isso repercute no teor dos julgamentos.

Os brasileiros, de um modo geral, acreditam no uso da violência para resolver os mais variados problemas sociais e, em consequência, apostam e apresentam respostas violentas como a solução para qualquer situação problemática. Não há que se estranhar, pois, o aumento do número de agressões a pretexto de fazer “justiça”, com especial destaque para os linchamentos tanto físicos quanto virtuais, tanto nas ruas das cidades quanto nas redes sociais. Em uma sociedade de milhões de juízes que foram levados a acreditar que os direitos e garantias fundamentais são obstáculos transponíveis à eficiência repressiva do Estado ou aos lucros dos empreendedores (e até os explorados, hoje, acreditam ser empreendedores), os julgamentos tendem a desconsiderar os limites civilizatórios.

Em apertada síntese, pode-se afirmar que uma cultura autoritária produz julgamentos autoritários, nos quais se verifica não só forte aderência aos valores da classe média (valores produzidos – vale frisar – em favor da elite econômica), mesmo quando esses valores estão em oposição à normatividade constitucional, como também o recurso à simplificação da realidade e ao pensamento estereotipado. Nos julgamentos do dia-a-dia cresce a tendência a explicações hipersimplistas de eventos humanos hipercomplexos; a reflexão é demonizada em tempo de anti-intelectualismo, típico de momentos autoritários. No país de duzentos e oito milhões de juízes verifica-se uma preocupação em afirmar desproporcionalmente os valores “força” e “dureza”, em manifestações de hostilidade generalizada, com muito cinismo e a desconsideração dos valores atrelados à dignidade da pessoa humana.

Mas, para além da tradição autoritária que condiciona os julgamentos do dia-a-dia, o problema é ainda mais grave. Basta lembrar que, não raro, esses julgamentos que se dão nas ruas, sem informação suficiente e por pessoas sem formação jurídica ou mesmo democrática, passaram a influenciar os julgamentos dos juízes profissionais (dos funcionários públicos a que se reserva o exercício da jurisdição estatal), inclusive nos tribunais superiores. Muitos juízes passaram a justificar suas decisões a partir da necessidade de “ouvir as ruas”, de ouvir a opinião dos milhões de juízes sem toga em seus sofás. Com isso, progressivamente o caráter contramajoritário da função jurisdicional, necessário ao modelo de democracia constitucional, passou a ser abandonado.

Nas democracias constitucionais, marcadas por limites rígidos ao exercício do poder, a “voz das ruas”, a “opinião pública” e as “maiorias de ocasião” não são suficientes para afastar os diretos e garantias fundamentais de qualquer pessoa concreta, culpado ou inocente, amado ou odiado. Em outras palavras, na democracia constitucional o principio da maioria (ou a percepção do juiz acerca da “voz das ruas” ou do “clamor popular”) não se sobrepõe à normatividade extraída da Constituição da República, dos tratados e das convenções internacionais que reconhecem direitos humanos.

Neste pequeno artigo, a proposta é analisar a mudança que parece ocorrer na atuação do juiz brasileiro, que estaria a abandonar o modelo racional e eticamente regrado de apuração dos fatos para aderir à lógica de uma espécie de “cognição mística radicada nas vísceras comunitárias” (Cordero). A hipótese assumida aqui é a de que o recurso às “vísceras comunitárias” estaria a serviço de justificar decisões a partir das convicções dos atores jurídicos (muitas vezes, certezas delirantes do julgador), ainda que essa convicção se revele afastada do acervo probatório ou em desatenção aos limites constitucionais, éticos ou epistêmicos.

2 – Dos Ordálios à “voz do povo”
Com as invasões bárbaras, tornou-se comum no Ocidente um instrumento usado para resolver controvérsias de todo o tipo: o ordálio. Pode-se, em certo sentido, afirmar que os ordálios constituíram uma espécie de sistema probatório composto de uma variedade de técnicas (duelo judicial, prova d`água, caldeirão fervente, etc.) que poderiam ser utilizadas em cada situação, a depender das tradições locais e, em alguns casos, da vontade das partes ou mesmo do juiz.

Alguns afirmam que os ordálios eram meios de prova irracionais. Isso não parece estar correto, como percebeu Taruffo. Os ordálios obedeciam a uma lógica racional, funcional e amplamente aceita no contexto (dominado pelo enchantment) em que eles eram utilizados: o divino podia e diria a verdade para solucionar um conflito. Na realidade, pode-se afirmar que o ordálio era tido como a liturgie d`um miracle judiciaire (Jacob).

Em um contexto de profunda fé religiosa, os ordálios eram a prova de que Deus estava presente nas disputas judiciais, sempre que outros meios se revelavam insuficientes para por fim à controvérsia. O ordálio caracterizava-se por ser decisivo e o seu resultado, as consequências positivas ou negativas da prova (então, mais um desafio do que um elemento de cognição), sempre claro e incontrastável (como duvidar da resposta fornecida por Deus?). Após o órdálio, não havia mais dúvida possível, Deus definia a parte vencedora.

O declínio do recurso aos ordálios, ao que parece, coincide com profundas mudanças na sociedade, e em especial nas práticas judiciárias. Passou-se a acreditar que a verdade dos fatos, a solução justa para uma determinada controvérsia, podia e devia ser apresentada a partir de condutas humanas e não mais por revelações divinas. Do ponto de vista teológico, aderiu-se à tese, já presente em São Tomás de Aquino, de que não se deveria desafiar Deus a resolver matérias que a razão humana poderia dar conta.

Michele Taruffo aponta o surgimento de “caminhos divergentes” após o declínio dos ordálios. Na Inglaterra e no Continente Europeu, o fim dos ordálios produziu consequências diferentes. Na Inglaterra, esse declínio guarda conexão com a consolidação do jury trial. Enquanto isso, na Europa Continental, a probatio substituiu a divinatio, com o aparecimento de novos meios de prova (apresentados como “racionais”), voltados a descoberta da verdade dos fatos (a principal técnica era a inquisitio), que passaram a ser geridos, no mais das vezes, por juízes profissionais.

Na Inglaterra (e de lá para o mundo anglo-saxão), o Júri se consolidou como o principal método à resolução dos conflitos postos à apreciação judicial. Os jurados, antes “testemunhas dos fatos” e depois “juízes do fato”, tornam-se autores de um veredicto imperscrutável (e nesse particular, se assemelha à solução alcançada pela via dos ordálios). É importante lembrar que o juramento solene dos jurados, que ainda hoje se faz presente, invoca a intervenção de Deus no julgamento. Pode-se afirmar que o jury trial, construído como uma garantia individual contra a opressão do poder, busca nas “vísceras comunitárias” a legitimidade dos julgamentos (o que no sistema dos ordálios era obtido mediante a evocação divina).

No modelo originado na Europa Continental, e em princípio adotado no Brasil, procurou-se abandonar os ordálios em uma tentativa de “racionalizar” a busca pela verdade como condição para a realização do valor justiça. O “mito de Deus” acabou substituído pelos mitos da “razão” e da “ciência”. Nesse modelo, os julgamentos têm por base a reconstrução dos fatos através de meios probatórios admitidos na legislação, razão pela qual tanto a “divindade” quanto a “voz das ruas” ou as “vísceras comunitárias” mostram-se estranhas à solução justa dos casos postos à apreciação do Sistema de Justiça. A “verdade” é elevada à condição de legitimidade dos julgamentos e, ao mesmo tempo, as garantias processuais e demais direitos fundamentais, limites jurídicos e éticos ao exercício do poder, passam a funcionar como condições de legitimidade da busca da verdade.

Em apertada síntese: enquanto no modelo europeu-continental (civil law) a verdade dos fatos é tida como um dos principais escopos do processo, no modelo de common law a confiança na correção e na justiça do veredito dos jurados baseia-se no fato dele ser formulado por pessoas que retratam a vox populi (nesse sentido, por todos, Taruffo).

Costuma-se aproximar a “voz do povo” do princípio majoritário. Este, por sua vez, costuma ser apontado com uma manifestação necessariamente democrática. Trata-se de uma concepção que identifica a vontade da maioria (ou, ao menos, a “voz do povo”) com a democracia. Não faltam exemplos históricos de que essa visão é equivocada. Basta pensar na maioria alemã que levou Hitler ao poder e apoiou o projeto nazista ou na maioria dos estadunidenses que apoiava a segregação racial. A democracia e a justiça, coo se percebe, não guardam relação com a opinião das maiorias.

Em princípio, decisões que buscam legitimidade a partir da “voz do povo”, isso é, a partir da opinião (algo da ordem da doxa) dos milhões que se consideram aptos a fazer julgamentos no Brasil, não se mostram sensíveis a limites, sempre que os limites se revelem incompatíveis com o princípio majoritário. Em outras palavras: levar em consideração a “voz do povo” nas decisões judiciais, muitas vezes, vai significar a violação dos limites jurídicos, éticos e epistêmicos (e aqui não se esta problematizando a questão do significado da expressão “voz do povo”). Nada assegura que a “voz do povo” retrate a verdade ou produza justiça.

Registre-se que nos Estados Unidos da América, o trial by jury, pensado como uma garantia contra o poder (a voz Populi em defesa das garantias individuais), vem sendo substituído por técnicas da chamada “justiça negocial” (bargain), adequadas à razão neoliberal, que faz com que todos os valores (verdade, liberdade, etc.) sejam tratados como meras mercadorias (negociáveis, portanto).

III – O Brasil da voz autoritária
No Brasil, apesar da adesão inicial ao modelo europeu-continental, verifica-se, nos últimos anos, a incorporação de institutos, práticas e modos de ver o Sistema de Justiça cunhados para o modelo anglo-saxão. Esse fenômeno, todavia, ocorreu sem a incorporação dos correlatos limites à atividade das partes, à produção e à valoração das provas. Com isso, a vox populi foi elevada a fator decisório, mas sem a dimensão de garantia que existia no modelo do Júri. Mas, qual é a “voz das ruas” que passou a justificar as decisões no Brasil? Uma vox populi selvagem, sem limites, desconstituinte e autoritária.

No Brasil, para satisfazer “as vísceras comunitárias” e atender à “voz das ruas”, atores jurídicos passaram a desconsiderar direitos e garantias fundamentais, vistos não como conquistas civilizatórias, mas como obstáculos à eficiência do Estado. No lugar da busca pela verdade (respeitados os limites jurídicos e éticos), surgem construções narrativas adequadas ao que o julgador afirma ser a “voz das ruas”, mas que muitas vezes não passa de uma estratégia discursiva para decidir contra a lei ou a doutrina.

Muitas sentenças passaram a assumir como “verdade” o que é uma mera possibilidade. São acolhidas as versões que vão ao encontro das convicções dos atores jurídicos (e dos milhões de julgadores), mesmo que os fatos afirmados não encontrem respaldo nas provas produzidas ao longo do processo. Aliás, se verifica uma mutação na valoração da prova: a prova vista como positividade (a “boa prova”, a informação útil, etc.) é apenas aquela que confirma a hipótese já assumida como verdadeira pelo julgador ou pela “voz das ruas”. A verdade judicial passa a ser aquilo que o juiz afirma ser “verdade” a partir de “convicções” prévias (leia-se: preconceitos e pré-compreensões), mesmo que inexista prova nesse sentido (ressuscitou-se a máxima de viés autoritário: auctoritas facit veritas).

Em nome da “voz das ruas”, a natureza contramajoritária da função jurisdicional acaba por desaparecer, o que representa risco concreto aos direitos das minorias e facilita a opressão estatal. Como já se disse no início deste texto: sociedades autoritárias, produzem decisões autoritárias. Escutar a vox populi em um contexto autoritário equivale a abandonar não só o modelo de democracia constitucional como também qualquer pretensão de verdade e justiça.
     
Rubens Casara é Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Juiz de Direito do TJ/RJ e escreve a Coluna ContraCorrentes, aos sábados, com Giane Alvares, Marcelo Semer, Marcio Sotelo Felippe e Patrick Mariano.

GGN

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Aldo Fornazieri: Dória toca o Nazismo na Cracolândia

Em nome do combate ao tráfico de drogas, da cidade linda e da reurbanização da região da Luz, o prefeito Dória, com o apoio do governo do Estado, desencadeou um verdadeiro pogrom na região da Cracolândia. Pogrom é um termo de origem russa nascido para designar as ações de massacres contra judeus no século XIX. Mas o termo se generalizou e designa ações violentas (assassinatos, expulsões e agressões) praticadas pelo Estado, por forças policiais ou paramilitares contra grupos sociais ou étnicos específicos. Essas ações transitam desde massacres e extermínios até a dispersão e o desalojamento geográfico desses grupos vitimizados. O nazismo usou os pogroms em larga escala. O pogrom nazista mais famoso é conhecido como "A Noite dos Cristais", ocorrido em 1938, no qual foram queimadas sinagogas, judeus assassinados, lojas saqueadas e destruídas, tudo com o beneplácito do Estado nazista.

domingo, 14 de maio de 2017

O pensamento do juiz autoritário em 14 pontos, Rubens Casara

Foto: GIl Ferreira/STF

Do Justificando. O pensamento do juiz autoritário em 14 pontospor Rubens Casara

I – Introdução
Em 1950, foram publicadas as conclusões da pesquisa conduzida por Theodor W. Adorno e outros pesquisadores, realizada nos Estados Unidos da América, logo após o fim da 2ª Guerra Mundial e a derrota dos fascistas, com o objetivo de verificar a presença naquele país de tendências antidemocráticas, mais precisamente de indivíduos potencialmente fascistas e vulneráveis à propaganda antidemocrática. Os dados produzidos na pesquisa, tanto quantitativos quanto qualitativos, não deixaram dúvida: a potencialidade antidemocrática da sociedade norte-americana já era um risco presente naquela oportunidade.

Neste breve texto, prévio à elaboração de pesquisa mais profunda sobre a tradição autoritária dos atores jurídicos, a ser conduzida pelo Núcleo de Pesquisa da Passagens – Escola de Filosofia, buscar-se-á, a partir dos caracteres da personalidade autoritária identificados por Adorno, demonstrar que eventual potencialidade fascista de juízes brasileiros é um risco à democracia no Brasil, em especial porque o Poder Judiciário deveria funcionar como guardião dos direitos e garantias fundamentais, isto é, como limite ao arbítrio em nome da democracia e não como fator antidemocrático.

A investigação segue a hipótese formulada por Adorno: que as convicções políticas, econômicas e sociais de um indivíduo formam com frequência um padrão amplo e coerente, o que alguns chamam de “mentalidade” ou “espírito”, e que esse padrão é expressão de profundas tendências de sua personalidade. No caso dos juízes brasileiros, a aposta era de que seria possível falar em uma tradição ou uma mentalidade antidemocrática, que vislumbra o conteúdo material da democracia, os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, como um obstáculo a ser afastado em nome da eficiência do Estado.

Para identificar o espírito ou a mentalidade antidemocrática, para os fins deste pequeno artigo, a proposta é de que o leitor compare artigos, entrevistas e decisões judiciais com sintomas e características identificadas por Adorno em 1950 como tendencialmente antidemocráticos.

II – Dos sintomas antidemocráticos
Em Estudos sobre a personalidade autoritária, Adorno identifica uma série de características que revelam uma disposição geral ao uso da força em detrimento do conhecimento e à violação dos valores historicamente relacionados à democracia. Na lista de Adorno estão, dentre outros:

01. Convencionalismo: aderência rígida aos valores da classe média, mesmo que em desconformidade com os direitos e garantias fundamentais escritos na Constituição da República. Assim, por exemplo, se é possível encontrar na sociedade brasileira, notadamente na classe média, apoio ao linchamento de supostos infratores ou à violência policial, o juiz autoritário tenderia a julgar de acordo com opinião média e naturalizar esses fenômenos. No Brasil, a sociedade foi lançada em uma tradição autoritária e acostumou-se, em especial após o Estado Novo de Vargas e a ditadura civil-militar instaurada em 1964, com o uso da violência em resposta aos mais variados problemas sociais. Atos como linchamentos e arbítrios policiais tornaram-se objeto de aplausos e até de incentivo de parcela dos meios de comunicação de massa, e passam a integrar o repertório de ações aceitas pela classe média e, consequentemente, por juízes tendencialmente antidemocráticos. Ao aderirem a esses valores da classe média autoritária, esses juízes abandonariam a natureza contramajoritária da função jurisdicional, que exigiria o respeito aos direitos e garantias fundamentais, mesmo contra a vontade de maiorias de ocasião, para atuar de maneira populista e julgar de acordo com a opinião média;

02. Submissão autoritária: atitude submissa e acrítica diante de autoridades idealizadas no próprio grupo. O juiz autoritário tenderia a ser submisso com desembargadores e ministros, em relação aos quais se considera inferior e a quem atribui uma autoridade moral idealizada. Essa submissão acrítica faria com que o juiz autoritário aplauda medidas administrativas tomadas por seus “superiores”, mesmo que contrárias às prerrogativas da magistratura, e reproduza acriticamente as decisões dos tribunais, desde que o prolator da decisão seja tido como do mesmo “grupo moral” a que considera pertencer. Assim, repudiaria decisões que ampliem os espaços de liberdade e incorporaria em seu repertório jurisprudencial as decisões que, mesmo contra o texto expresso da Constituição, afastam direitos e garantias fundamentais;

03. Agressão autoritária: tendência a ser intolerante, estar alerta, condenar, repudiar e castigar as pessoas que violam os valores “convencionais”. O juiz antidemocrático, da mesma forma que seria submisso com as pessoas a que considera “superiores” (componente masoquista da personalidade autoritária), seria agressivo com aquelas que etiqueta de inferiores ou diferentes (componente sádico). Como esse tipo de juiz se revela incapaz de fazer qualquer crítica consistente dos valores convencionais, tenderia a repudiar e castigar severamente quem os viola, por ser incapaz de entender a razão pela qual esse valor foi questionado. De igual sorte, não se pode descartar a hipótese de que a vida que esse juiz considera adequada, inclusive para si, é muito limitada, o que faz com que as pulsões sexuais e agressivas sejam reprimidas de tal forma que retornam na forma de violência contra todos aqueles que, por suas posturas, incitam sua ansiedade e o seu próprio medo de castigo. A grosso modo, pode-se supor que o juiz autoritário, convencido que alguém deve ser punido por exteriorizar posições que ele considera insuportáveis, expressa em sua conduta profissional, ainda que inconscientemente, seus impulsos agressivos mais profundos, enquanto tenta reforçar a crença de si como um ser absolutamente moral. Como é incapaz de atacar as autoridades do próprio grupo, e em razão de sua confusão intelectual é incapaz de identificar as causas tanto de sua frustração quanto a complexidade dos casos postos à sua apreciação, o juiz autoritário teria que, a partir de algo que poderia ser chamado de uma necessidade interna, escolher um “bode expiatório”, em regra dirigir sua agressão contra grupos minoritários ou aqueles que considera traidores do seu grupo;

04. Anti-intracepção: oposição à mentalidade subjetiva, imaginativa e sensível. O juiz autoritário tenderia a ser impaciente e ter uma atitude em oposição ao subjetivo e ao sensível, insistindo com metáforas e preocupações bélicas e desprezando análises que busquem a compreensão das motivações e demais dados subjetivos do caso. Por vezes, a anti-intracepção se manifesta pela explicitação da recusa a qualquer compaixão ou empatia. Segundo a hipótese de Adorno, o indivíduo anti-intraceptivo tem medo de pensar em fenômenos humanos e de ceder aos sentimentos, porque poderia acabar por “pensar os pensamentos equivocados” ou não controlar os seus sentimentos;

05. Simplificação da realidade e pensamento estereotipado: tendência a recorrer a explicações primitivas, hipersimplistas de eventos humanos, o que faz com que sejam interditadas as pesquisas, ideias e observações necessárias para um enfoque e uma compreensão necessária dos fenômenos. Correlata a essa “simplificação” da realidade, há a disposição a pensar mediante categorias rígidas. O juiz autoritário tenderia a recorrer ao pensamento estereotipado, fundado com frequência em preconceitos aceitos como premissas, que faz com que não tenha a necessidade de se esforçar para compreender a realidade em toda a sua complexidade;

06. Poder e “dureza”: preocupação em reforçar a dimensão domínio-submissão somada à identificação com figuras de poder (“o poder sou Eu”). A personalidade autoritária afirma desproporcionalmente os valores “força” e “dureza”, razão pela qual opta sempre por respostas de força em detrimento de respostas baseadas na compreensão dos fenômenos e no conhecimento. Essa ênfase na força e na dureza leva ao anti-intelectualismo e à negação de análises minimamente sofisticadas. Não é possível descartar a hipótese de que o juiz antidemocrático reafirma posições duras (“lei e ordem”) como reflexo tanto de sua própria debilidade quanto da natureza da função que ele é chamado a exercer. O juiz autoritário veria tudo em termos de categorias como “forte-débil”, “dominante-dominado”, “herói-vilão”, etc.

07. Destrutividade e cinismo: hostilidade generalizada somada à desconsideração dos valores atrelados à ideia de dignidade humana. Há um desprezo à humanidade de tal modo que o juiz antidemocrático exerce uma agressão racionalizada. Ou seja, o juiz antidemocrático buscaria justificações para agressões, em especial quando acreditasse que a agressão seria aceita pelo grupo do qual participa. Em meio a juízes que aceitam agressões à pessoa, o juiz autoritário busca justificativas, ainda que contrárias à normatividade constitucional que o permitam agredir;

08. Projetividade: disposição para crer que no mundo existem ameaças e ocorrem coisas selvagens e perigosas. O juiz antidemocrático acredita que o mundo está sempre em perigo e que sua função, ainda que insuficiente, torna o mundo menos selvagem. Em suas ações, contudo, vislumbrar-se-ia a projeção de fortes impulsos emocionais inconscientes. Deve-se admitir a hipótese de que os impulsos reprimidos de caráter autoritário do juiz antidemocrático tendem a projetar-se em outras pessoas, em relação às quais ele acaba por atribuir toda a culpa por pulsões e pensamentos que, na realidade, dizem respeito a ele. Se um juiz insiste em “demonizar” uma pessoa (um acusado do crime de tráfico, por exemplo) atribuindo-lhe propósitos hostis para além da conduta imputada, sem que existam provas de nada além dos fatos imputados, existem boas razões para acreditar que o juiz autoritário tem as mesmas intenções agressivas e está buscando justificá-las ou reforçar as defesas da instância repressiva pela via da projeção. Da mesma maneira, deve-se assumir a possibilidade de que quanto maior for a preocupação com a “criminalidade organizada”, o “aumento da corrupção” ou as “forças do mal”, mais fortes seriam os próprios impulsos inconscientes do juiz antidemocrático no âmbito da destrutividade e da corrupção;

09. Preocupação com a sexualidade: preocupação exagerada com o “sucesso” sexual e com a sexualidade alheia. O juiz antidemocrático teria medo de falhar no campo sexual e compensaria suas inseguranças com condutas que acredita reproduzirem a imagem do homem viril. Penas altas e desproporcionais, por exemplo, procurariam compensar a impotência, o medo de falhar e quiçá a insegurança com o tamanho do pênis. Não se pode descartar a hipótese de que juízas procurariam reproduzir a imagem do “homem viril” como forma de se afastar do estereótipo do sexo frágil. Com Adorno, pode-se apostar na força das pulsões sexuais inconscientes do sujeito na formação da personalidade autoritária;

10. Criação de um inimigo imaginário: o juiz antidemocrático, que trabalha com estereótipos e preconceitos distanciados da experiência e da realidade, acabaria por fantasiar inimigos e riscos sem amparo em dados concretos. Nessas fantasias, marcadas por adesão acrítica aos estereótipos, prevalecem ideias de poder excessivo atribuído ao inimigo escolhido. A desproporção entre a debilidade social relativa ao objeto (por vezes, um pobre coitado morto de fome que comercializa drogas ilícitas em uma comunidade como meio de sobrevivência) e sua imaginária onipotência sinistra (“capitalista das drogas ilícitas e responsável pela destruição moral da juventude brasileira”) parece demonstrar que há um mecanismo projetivo em funcionamento. No combate ao inimigo imaginário com superpoderes igualmente imaginários, os sentimentos implicitamente antidemocráticos do juiz autoritário apareceriam por meio de sua defesa discursiva da necessidade do afastamento das formas processuais e dos direitos e garantias fundamentais como condição à eliminação do inimigo e da ameaça;

11. O fiscal como juiz e a promiscuidade entre o acusador e o julgador: a confusão entre o fiscal/acusador e o juiz é uma característica historicamente ligada ao fenômeno da inquisição e à epistemologia processual autoritária. A hipótese é de que, no momento em que o juiz tendencialmente fascista se confunde com a figura do acusador, em que passa a exercer funções típicas do acusador como tentar confirmar a hipótese acusatória, surge um julgamento preconceituoso, uma paródia de juízo, com o comprometimento da imparcialidade que atuaria como condição de legitimidade democrática do julgamento. Tem-se, então, o primado da hipótese sobre o fato. A verdade perde importância diante da “missão” do juiz, que aderiu psicologicamente à versão acusatória, de comprovar a hipótese acusatória ao qual está comprometido;

12. Ignorância e confusão: uma característica da personalidade autoritária é que ela se desenvolve no vazio do pensamento. Assim, o juiz autoritário em suas manifestações deixaria claro a ignorância e a confusão acerca de conceitos políticos, econômicos, culturais, criminológicos, etc. A hipótese, nesse particular, é que se o indivíduo não sabe sobre o que se manifesta, razão pela qual substitui o conhecimento pela força em uma postura anti-intelectual, que ele disfarça como “senso prático” (“eu faço”, “eu entendo porque sou eu que faço”, “eu sei porque passei em um concurso”, etc.”), precisa preencher o vazio cognitivo com chavões, senso comum, preconceitos difundidos na classe média e estereótipos. O pensamento estereotipado, que atua em favor de tendências reacionárias (todo movimento e propaganda antidemocrática busca o ignorante e, por vezes, alcança também o “semi-formado”, aquele que tem uma formação “superior” e diplomas, mas é incapaz de reflexão porque não consegue articular as informações recebidas ou as desconsidera por acha-las desimportantes para suas metas individuais). Impressiona, ainda hoje, o grau de ignorância e confusão observado em pessoas com nível educacional formal relativamente alto. Também não se pode descartar o fato de que a ignorância e a confusão, não raro, são incentivadas e produzidas pelos meios de comunicação de massa e pela propaganda, muitas vezes direcionada a fins antidemocráticos ou pseudodemocráticos;

03. Pensamento etiquetador: o pensamento etiquetador é fenômeno conexo ao pensamento estereotipado. O fundo de ignorância e confusão, mesmo que inconscientemente, gera um quadro de ansiedade, semelhante ao estranhamento e a ansiedade infantil, o que faz com que o indivíduo recorra a técnicas que afastem essa ansiedade e orientem a ação, mesmo que essas técnicas sejam grosseiras e falsas. Os estereótipos e as etiquetas, com as quais divide o mundo e as pessoas (“homem mau”, “pessoas de bem”, “homem do saco”, “personalidade voltada para o crime”, etc.), servem ao indivíduo como um substituto do conhecimento (ou uma forma de conhecimento precária e tendencialmente falha) que torna possível que ele tome decisões e posições (tendencialmente antidemocráticas, uma vez que falta a informação que legitima as escolhas verdadeiramente democráticas). A hipótese aqui é a de que o juiz antidemocrático recorre ao pensamento etiquetador para produzir em si uma ilusão de segurança intelectual ou como forma de buscar apoio popular no meio que também só pensa a partir de estereótipos e outras estratégias de simplificação da realidade;

14. Pseudodemocracia: a personalidade autoritária, por questões ligadas à ideologia, muitas vezes, caracteriza-se por recorrer a distorções de valores e categorias democráticas para alcançar resultados antidemocráticos. Há, nesses casos, um descompasso entre o discurso oficial e a funcionalidade real. Isso ocorre, por exemplo, ao se defender práticas racistas em uma sociedade racista a partir da afirmação do princípio democrático da maioria (“se a maioria é racista, o racismo está legitimado”). A hipótese, portanto, é de que o juiz autoritário recorre ao argumento de estar atendendo às maiorias de ocasião, muitas vezes forjadas na desinformação, para violar direitos e garantias fundamentais.

III – Desafio ao leitor
Agora, cabe ao leitor para ter uma ideia do pensamento e da mentalidade dos juízes brasileiros comparar artigos, entrevistas, decisões e demais manifestações desses importantes atores jurídicos com os sintomas e caraterísticas identificados por Adorno como tendencialmente antidemocráticos.

Importante ter em mente que as características e sintomas descritos por Adorno, em regra, apresentam nexos entre si, mas se referem apenas a uma tendência. As conclusões sobre a aderência, ou não, de cada pessoa às características da personalidade tendencialmente fascista nos servem para refletir sobre a formação da subjetividade de nossa época e a responsabilidade dos atores sociais na defesa da democracia.

Rubens Casara é Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais e Juiz de Direito do TJ/RJ

Do GGN