Raramente um
fato aparentemente tão desimportante quanto o episódio que envolveu Miriam
Leitão num vôo foi alvo de tanto interesse público. Por que? O que houve por
trás disto que justificou tamanha atenção. Sabe-se que o que atrai a atenção dos
passantes num acidente de trânsito é que ele encerra uma verdade que deve ser
entendida por razões de sobrevivência. Se um fato, aparentemente menor, atraiu
tanta atenção é porque algo tem a ensinar.
Habituada a
agredir petistas e pessoas ligadas ao campo progressista em enterros,
internamentos hospitalares, restaurantes e nas ruas, a turba fascista em que se
converteu a direita tradicional no Brasil, nunca recebeu reprimenda de nenhuma
das suas organizações políticas de referência e, como quem cala consente, essa
expressão de ódio tornou-se o comportamento normal, o modus operandi daqueles
que aspiram a governar e estão governando o Brasil. Como já disse alguém, no
Brasil não temos esquerda e direita, mas Casa Grande e Senzala, o que insere
esses ódios novos a uma velha tradição nacional que relega aos de debaixo, o
pó.
O que
ocorreu no episódio Miriam Leitão/Gleisi Hoffmann foi o magnífico ensaio do que
deve ser clara e ostensivamente a nossa conduta. Militantes petistas, e depois
ficou provado que não se excederam, foram acusados, pela suposta vítima, Miriam
Leitão, de agressão pessoal e política num vôo comercial. Não sei se alguma vez
a colunista sentiu-se incomodada com agressões sofridas por gente de esquerda
em, limitemo-nos a essa circunstância, enterros de seus mortos. Não vem ao
caso, independente disto, baseado numa exigível presunção de inocência, a
presidente nacional do PT pediu-lhe desculpas e sinalizou, como lhe pareceu o
seu dever, aos que teriam participado da suposta agressão como também ao
conjunto da militância e ao país, que esses não eram nossos métodos, e que não
podíamos nos igualar à Globo.
Depois
disto, inúmeros testemunhos demonstraram que os fatos não haviam sido como
narrados por Leitão e eram outros, que as agressões em nenhum momento foram a
ela, mas à Globo que ela de direito ou de fato representa, e que tratou-se de
um mal decorrente da sua notoriedade e da sua assumida parcialidade, a que,
aliás, tem direito, respeitada a integridade moral dos seus alvos... poderiam
ter sido aplausos se mais distinta fosse a clientela do voo. Reconheça-se
também que, provado não ter havido agressão à pessoa da colunista, e por
vivermos, ainda, num país que garante a liberdade de expressão, nada há contra
os militantes que gritaram palavras de ordem. Há, portanto, espaço para que a
própria Gleisi enquanto presidente do PT possa analisar se vai ou não processar
a dita colunista por calúnia e difamação.
Feita essa
consideração voltemo-nos a Gleisi. Legítima representante de uma das maiores
forças políticas do Brasil, força esta não somente portadora de valores, de uma
tradição de lutas e de respeito à democracia, mas que governou e pretende
novamente governar o Brasil, Gleisi se limitou a exprimir no episódio o ideário
que a sua força política abraça. E, sim, admoestou os seus. Magnífico exemplo.
A possível mentira da colunista enobrece ainda mais a sua atitude desprendida e
corajosa. E os militantes repreendidos, embora tenham o direito de mostrar quem
é Miriam Leitão, têm o dever moral de entender o que a presidente do partido
quis dizer. Não é uma questão doméstica, como querem os que acham que ela
deveria ter perguntado aos militantes antes de agir. É uma questão pública, um
ótimo momento de dizer a que viemos. E, naturalmente, os militantes devem ser
ouvidos .
A questão
republicana não pode ser confundida com ingenuidade, ela opera no interesse das
maiorias e é uma ferramenta muito poderosa de organização das expectativas
políticas, conformando, portanto, a cultura a nosso favor.
Há pesada
crítica aos governos petistas por ter assegurado sempre a escolha do primeiro
da lista do Ministério Público para uma definição, privativa do Executivo, dos
Procuradores Gerais da República. E de fato houve aí erro e ingenuidade. Por
que? Porque a escolha do primeiro da lista nem sempre atendeu ao respeito à
República. Foi o primeiro da lista Janot? Foi republicano? A escolha do
primeiro da lista é demagógica e não republicana. A escolha republicana
deveria, sempre, ter sido a escolha do mais fiel à isenção e à honra das
instituições acima dos interesses específicos, o que, óbvio ululante, não
ocorreu. Deveriam ter sido escolhidos promotores reconhecidos por sua grandeza
e apego à justiça, e não por sua vaidade, partidarismo, corporativismo ou por
sua canalhice, pessoas que fossem reconhecidamente capazes de processar o (a)
presidente por causas reais e não casuísiticas. Não se pode escolher a
primeira raposa da lista para tomar conta do galinheiro esperando, em nome
dessa estupidez que, por reconhecimento, não devore galinhas. Da mesma forma
que seria perverso escolher alguém alinhado ao PT para a PGR.
Critica-se
também o PT por ter convertido a Polícia Federal numa força sem comando e aí se
atribui a isso o seu republicanismo. Porém observemos, Cardozo ministro e Dilma
presidente, nesse particular foram republicanos ou omissos? E Aragão quando
prometeu punição para conduções coercitivas desrespeitosas da lei teria sido
antirrepublicano? Não, na verdade, a atitude de Cardozo foi lesa-pátria e a de
Aragão republicana.
Não podemos
desejar um Estado que em nome de uma parcialidade política enviesada em favor
da esquerda deixe de buscar a isenção necessária no tratamento da coisa
pública. É óbvio que, como construções sociais em meio a uma sociedade dividida
entre explorados e exploradores, garantir o caráter republicanos das decisões
será sempre um terreno de lutas e de interpretações bem difíceis. E temos lado.
Podemos entender como republicano coisas que a direita considere que não são.
Vamos enfrentá-los.
Porém, o que
está claro é que as forças conservadoras no Brasil não têm, dados os
compromissos que estabeleceram com o mercado, com o proveito próprio, ou com o
crime organizado, como está escancarado à luz do dia, a menor condição de gerir
o Estado com qualquer espírito republicano, compreensão que é estratégica para
o campo progressista que deve afirmar-se aí também. O que se constata ,porém, é
que o governo da direita no Brasil é, na verdade, um espetáculo dantesco e que,
ainda que com ingenuidade e demagogia, somente a esquerda demonstrou poder ser
republicana.
Nunca
esqueçamos que o Estado democrático de direito é a casa das maiorias e que ele
é também a República. Construir e consolidar esse caráter republicano,
estratégico para nós, não será coisa nem para demagogos, nem para frouxos. A
República é a ordem da casa. Só empunha essa bandeira a força que aspira e pode
ser hegemônica. A esquerda democrática, que se opõe à direita plutocrática deve
ser tão republicana quanto a direita é antirrepublicana, oligárquica,
coronelista, senhorial ou escravagista...
Na sua
aparente fragilidade Gleisi fez a coisa certa. A República é um cavalo bravo
que não se deixará domar por demagogos que queiram jogar para a plateia. A sua
condução exigirá punhos de aço, desapego e sede de justiça, mas as maiorias não
precisam temer a República, os privilegiados sim.
No Tarot a
República bem que podia ser representada pela carta da Força, aquela onde uma
moça de aparência frágil calmamente domina o Leão.
Possa Gleisi
estar à altura.
Do GGN