Por que a
Justiça brasileira tem uma tendência em beneficiar a elite nas suas
sentenças? O Comitê dos Juristas Piauienses pela Democracia está divulgando um
texto esclarecendo algumas questões acerca do judiciário nacional que
podem ser parte da resposta à pergunta.
Para entender o
Judiciário
Você já parou para pensar como pode um cidadão prepotente,
arrogante, parcial, ser Juiz (Ministro) do Tribunal mais importante do País, o
Supremo Tribunal Federal, que julga as questões fundamentais da República
Federativa do Brasil?
Você já parou para pensar como pode um cidadão prepotente,
arrogante e parcial, que protege os amigos senadores e persegue os inimigos
políticos de seus amigos senadores, ser o juiz mais badalado e festejado pela
Rede Globo?
Tudo muito esquisito, não é mesmo?
Nós sempre fomos tentados a acreditar que dos três poderes
(Executivo, Legislativo e Judiciário), o único que não é escolhido por nosso
voto democrático, seria o mais sério.
A justiça, imaginamos, seria o equilíbrio entre o modo como
as pessoas vivem, se comportam e agem, por um lado, e a situação, o tratamento
que, por outro lado, recebem. Os seja: se a pessoa se comporta mal, fere aos
demais membros da sociedade, merece um tratamento corretivo proporcional a sua
maldade. Por isso o símbolo da justiça é a balança.
A vida em sociedade acaba exigindo que assim seja. Afinal não
se pode esperar que um ladrão se arrependa e devolva a motocicleta roubada a
seu legítimo dono. Isso pode até acontecer, mas não é comum.
A sociedade ideal, pensada ainda nos anos de 1700, na França,
seria mais ou menos assim: o poder legislativo (Câmara Municipal, Assembleia
Legislativa ou Congresso Nacional) faria as leis para melhorar a situação de
vida do povo. O poder executivo (Prefeito, governador ou Presidente),
governaria de acordo com essas leis. E o poder judiciário julgaria o
comportamento das pessoas que agissem contrariamente a essas leis.
O modelo é perfeito. Sua aplicação em nossa história,
entretanto, nunca seguiu a esse modelo.
O conjunto das leis brasileiras obedece a uma certa
hierarquia. A isso se chama “Ordenamento jurídico”. Pois bem, nosso ordenamento
jurídico, desde que o Brasil existe, foi concebido como um modelo completo e
coerente.
Completo porque regula todos os aspectos da vida em
sociedade. Desde o registro de nascimento da pessoa até como deve funcionar a
transmissão de dados via internet.
Coerente porque as leis, respeitada a hierarquia que as
ordena, não guardam contradição entre si, o que poderia ocorrer num país
gigantesco como o Brasil.
Mas veja: ordenamento jurídico completo e coerente, porém
absolutamente independente de nossa realidade social e econômica.
E isso é importante: independente das dificuldades por que
passa o povo justamente porque serve a interesses das elites que sempre
estiveram alheias a essa realidade social e econômica objetiva. Talvez por isso
se diga que a Justiça é cega.
Você poderia dizer: o problema aí é da lei. De fato. Mas a
aplicação dessa lei, pelo Judiciário, desde que o Brasil existe, aprofunda, em
muito, as desigualdades existentes em nossa realidade socioeconômica.
Vamos tentar entender um pouco do que é e como funciona essa
“caixa preta” chamada Poder Judiciário no Brasil.
Primeiro precisamos entender como, em geral, funciona o
processo judicial. Processo é a forma como “anda” uma ação que se propõe em
juízo.
Nosso processo, se diz, é “inquisitorial”. Primeiro se busca
o culpado, depois se arranjam as provas da culpa. As condicionantes sociais e
econômicas são irrelevantes. Não importa, por exemplo, que a mãe de família
furtou aquele pacote de bolacha para alimentar seus filhos famintos...
E quando se diz que o processo, no Brasil, é “inquisitorial”
se quer dizer que todos (todos à exceção das elites) são, de antemão,
presumidamente culpados. No inquérito policial o acusado é ouvido sem poder se
defender. A polícia produz a prova a partir desse depoimento do acusado e de
indícios outros.
E o interessante é que quando o inquérito policial se
transforma em ação penal, já na justiça, o acusador se senta ao lado do
julgador, na sala de audiências. A defesa não tem esse privilégio!
Ou seja, a partir da forma como se distribuem os personagens
em um julgamento já se denota que a máquina judicial está montada para
condenar. A esse sistema não interessa se o acusado é “inocente” ou “culpado”.
E sim a maior ou menor de forma de controle a ser exercido sobre esse acusado
que, presumidamente, optou pelo crime e por isso deverá perder uma parte maior
ou menor de seus direitos de cidadania.
Esse sistema inquisitorial do processo brasileiro, no qual
todos os pobres, todos os pretos e todos os moradores da periferia das grandes
mansões, são culpados (basta depois conseguir as provas!) tem raízes históricas
perfeitamente definidas em um modelo de sociedade excludente e de judiciário
elitista.
E quando se diz que a sociedade brasileira é excludente, que
exclui os pobres do centro de suas preocupações, se diz com base em dados: hoje
apenas 5 (cinco) pessoas ricas do Brasil detém tanta riqueza quanto o somatório
de tudo o que possuem mais da metade de nossa população! Um historiador inglês
já dizia que o Brasil é “um monumento às desigualdades sociais”.
Desigualdades sociais acobertadas pelo Poder judiciário.
Sempre achamos que aquele homem branco de quarenta e poucos
anos, o Juiz de nossa cidade, seria o homem mais inteligente, mais preparado da
cidade. Por isso mesmo o mais justo.
Não nos enganemos. A justiça que esse homem branco de
quarenta e poucos anos distribui não é a Justiça em favor dos pequeninos. É a
justiça dos fariseus!
A Justiça no Brasil, desde que o Brasil é Brasil, em
essência, é tradicional, formal. Serve-se a si mesma. Enquanto a sociedade se
transforma, o Judiciário continua a se pautar por muitas características do
passado.
Até 1808, pelo menos, quem julgava e condenava os moradores
de suas terras era o latifundiário. Evidente que nos núcleos urbanos havia uma
pequena estrutura de judiciário que, de certa forma, independia dos
latifundiários.
Esse Judiciário de então era um serviço público que
funcionava como a uma “franquia”. Uma concessão: o cidadão formado em Direito
(os cursos superiores eram sediados em Portugal: portanto somente os filhos de
latifundiários ou dos altos funcionários da Corte Portuguesa podiam ser
advogados e juízes) adquiria a concessão daquele serviço público chamado
Judiciário, passando a ser o dono das taxas e custas cobradas dos “clientes” da
justiça.
Eram os chamados “Juízes de Fora”. Aqui no Piauí o mais
famoso foi o Juiz de Fora de Campo Maior e Parnaíba. Esse Juiz de Fora aplicava
aos casos que julgava um “direito” absolutamente deslocado daquela específica
realidade social e econômica. Por exemplo: o costume na região era a partilha
na base da quarta. Pois esse juiz de fora poderia condenar o agricultor a
partilhar sua roça na base da meia, costume de outra região, com notórios
prejuízos ao agricultor.
E o que é pior: os Juízes de Fora sempre consultavam ao
Executivo quanto a como decidir determinada demanda. Isso além de atrasar a
solução do caso, mostrava a subordinação do judiciário ao executivo.
E se o agricultor que quisesse recorrer contra aquela
sentença injusta deveria ir até a Casa de Suplicação de Lisboa (isso mesmo: em
Lisboa) para apresentar seu recurso.
É verdade que desde 1587 havia um Tribunal de Relação, em
Salvador, na Bahia. Mas esse Tribunal tratava de questões meramente
administrativas, do funcionamento da Corte Portuguesa no território brasileiro.
Fica claro, então, que as três questões fundamentais para que
entendamos o judiciário no Brasil, desde sua origem, são exatamente essas:
O Juiz de Fora era um filho das elites (altos funcionários da
Corte Portuguesa ou latifundiários);O Judiciário era uma concessão pública, uma
espécie de “franquia”, de modo que as taxas judiciárias beneficiavam
exclusivamente aqueles filhos da elite que tivessem o privilégio de possuí-las;
eO Juiz de Fora aplicava uma regra geral, também de fora, interpretando de
maneira particular. Ou seja: de forma absolutamente desconectada com a
realidade local.
Essa três características dos primórdios do judiciário no
Brasil findaram por moldar toda a estrutura do judiciário que hoje temos no
Brasil: um conjunto de servidores públicos filhos da elite, cheios de
privilégios corporativos, que julgam as questões sem o menor senso crítico de
nossa realidade socioeconômica de gritantes desigualdades sociais.
Um concurso público para Juiz, com as famosas “perguntas de
algibeira”, frequentemente usadas para excluir do certame aqueles candidatos
que não tiveram condições financeiras para estudar por anos à fio, finda por
elitizar cada vez mais a esse judiciário.
É certo que, por vezes, alcançam êxito em concursos públicos
alguns que não são, por berço, gente da elite. Ocorre que a própria carreira da
magistratura é instrumento para enquadrá-los no sistema. A jurisprudência dos
tribunais superiores é por eles absorvida sem qualquer discussão.
Assim, se o Juiz de Fora consultava ao Executivo como julgar
aquela demanda, hoje o Judiciário está tão hierarquizado que os juízes novatos,
recém aprovados em concurso, mesmo não sendo por acaso filhos da elite, findam
por incorporar aquela jurisprudência, aquela forma de decidir já estabelecida
no sistema.
Portanto: é um sistema fechado. Alheio à nossa realidade
socioeconômica. Não há como mudá-lo.
Lamentavelmente, não bastam reformas pontuais no Judiciário
brasileiro.
Os democratas brasileiros devem repensar, de forma amiudada,
esse Poder.
Do Comitê dos Juristas Piauienses pela Democracia