O direito não ajuda as pessoas entenderem os seus próprios
direitos, e isso toda a população já deveria saber. O linguajar, as
nomenclaturas, os conceitos, são elaborados para fazer do direito algo
distante, técnica nas mãos de alguns poucos. Não à toa essa quantidade enorme
de advogados e faculdades de direito, as pessoas acabam precisando ter ao menos
alguém que entenda esse emaranhado de códigos na família.
Simplificar tudo isso é difícil, e muitas vezes o leigo
sequer quer realmente saber, age por impulso e pensa que direito é aquilo que
sente, vê e ouve, ou, pior, intui, e sai por aí fazendo post de Facebook como
se fosse um Phd.
Quando o assunto é prisão, tanto pior. A emotividade quando o
assunto é esse chega às raias do absurdo. Mas o esforço nesse campo,
para explicar alguns equívocos, ainda vale à pena, pois, afinal, o
encarceramento é algo que atinge à sociedade como um todo, inclusive
ao bacharel de Facebook.
Há dois tipos de prisão, a prisão antes da condenação e a
prisão depois da condenação. Isso parece óbvio. Então, a prisão antes da
condenação só pode existir se for necessária, enquanto a prisão posterior
à condenação, por incrível que pareça, não precisa ser necessária, é
simplesmente punição. Foi condenado, tem que ser preso para cumprir a pena.
Por óbvio que aqui estamos generalizando, pois há crimes aos
quais não se aplica pena de prisão, aplicam-se as chamadas penas
alternativas ou a multa, mas a maioria dos crimes no Brasil têm como pena
principal a pena de prisão, o encarceramento, e quando aplicada essa pena, o
judiciário a aplica independentemente do juízo de necessidade.
O leitor pode perguntar, mas como não seria necessária a
prisão, se a pessoa foi condenada. Bem, não queremos aqui entrar no mérito
da total inutilidade do encarceramento, aliás, da prejudicialidade do
encarceramento para a sociedade. Nossas prisões causam muito mais males para a
sociedade do que benefícios. Mas há casos sim em que a prisão, mesmo depois da
condenação, se demonstra desnecessária mesmo sem julgarmos a inutilidade
do instituto prisão.
Imaginemos um crime praticado por um jovem de 18 anos, um
processo longo, em que a sentença sai quando ele está por volta dos 25 anos.
Entre 18 e 25 anos muita coisa muda na vida de uma pessoa, ela pode ter feito
uma faculdade, pode ter se alfabetizado, casado, ter tido filhos, mudado
completamente de vida. Assim, quando sai a sentença de um processo longo,
muitas vezes o apenado já nem necessitaria da pena, mas ela é imposta de
qualquer forma, porque, segundo o direito, pena é pena e não se discute.
Imaginemos também alguém que, após cometer um crime, na fuga.
por ocasião da legítima defesa da vítima ou mesmo por fato posterior, fique
paraplégico, ou tetraplégico, totalmente desnecessário encarcerar essa
pessoa. Mas, não importa, temos diversos paraplégicos ou tetraplégicos
encarcerados, dormindo no chão, misturados com o resto da massa carcerária, sem
assistência, acompanhamento, sem nada, obviamente sofrendo uma pena muito mais
pesada e grave que os outros.
Agora, diferente, é a pena antes da condenação, esta
deve ser necessária, e deve estar fundamentada em algum fato específico que não
seja o crime em si, pois o processo ainda não acabou. Apesar de termos
milhares de pessoas presas aguardando julgamento, esta não deve ser a regra. A
regra é a liberdade. Mas de onde o judiciário tira a necessidade de se manter
uma pessoa presa, tantas pessoas presas, antes da condenação?
Ora, como a maioria é pobre, fica fácil imaginar a
fundamentação dessas milhares de prisões provisórias (são chamadas
prisões provisórias porque, para o direito, que, no papel, não vê cor, pobreza,
nem gênero, deve-se respeitar o fato de a pessoa não ter sido condenada ainda,
e dever ser considerada sem culpa, inocente). A fundamentação dessas prisões
provisórias, porque o processo ainda não acabou, deve estar sempre relacionada
a um julgamento do comportamento do réu, do acusado, evidente no momento do
pedido dessa prisão.
Embora não possa ser um pré-julgamento do fato, porque o juiz
deve manter sua imparcialidade, acaba sendo, pois deve haver algum indício de
que efetivamente houve um crime e de que aquela pessoa é autora, mas o motivo
mesmo da prisão antes da condenação não é ligado ao crime. Os motivos estão
inclusive ligados mais ao processo do que ao crime.
Por exemplo, se o réu não pode ser encontrado se for solto,
ou seja, não tem domicílio certo, os juízes têm entendido que isso é causa de
se manter a prisão em flagrante, isto é, o pobre que não tem número na sua
casa, que mora na rua ou em um barraco qualquer, dificilmente vai responder
processo em liberdade.
Outro exemplo, quando a pessoa é acusada de vários crimes, ou
tem condenações anteriores, o judiciário tem entendido que aquela pessoa
“ameaça a ordem pública”, ou seja, pode continuar cometendo crimes, e mantém,
se for caso de flagrante, ou decreta a prisão provisória.
Há ainda o exemplo de crimes muito graves com testemunhas,
quando o judiciário entende que o acusado pode ameaçar uma dessas testemunhas,
prejudicando assim a prova do processo.
Essas são, bem resumidamente, a maioria das fundamentações
utilizadas para se manter uma pessoa presa por parte do judiciário, mas essa
prisão, precisa, é necessária que esteja fundamentada, porque a pessoa presa
tem o direito de poder se defender dessa perda de um direito tão importante, a
liberdade.
Dito tudo isso, o judiciário, fundamentando, pode prender
quem achar necessário. Portanto, é um total desserviço o que a imprensa fez
após a última decisão do Ministro Marco Aurélio, espalhando notícias de que
vários estupradores, latrocidas e homicidas iriam ser
soltos, absolutamente mentira.
A prisão automática, quando é publicada uma sentença
condenatória por um tribunal deveria, como acha a maior parte dos integrantes
do STF, ser considerada inconstitucional, porque a Constituição diz que
“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença
condenatória”, e trânsito em julgado é, ou deveria ser, quando não cabe mais
recurso contra aquela sentença.
Mas se o judiciário pode prender qualquer um com as
fundamentações acima, e com muitas outras não citadas, por que o judiciário
precisaria de uma prisão automática durante um processo? A resposta é evidente,
para não precisar fundamentar essa prisão.
E por que o judiciário não quer fundamentar uma prisão?
Porque o judiciário não tem dado conta de tantos processos, tantos litígios,
tantos fatos levados ao seu conhecimento, o judiciário está abarrotado. Sentar,
ler um processo, avaliar, sopesar, adequar o fato descrito à lei, tudo isso dá
muito trabalho.
Mas isso não quer dizer que muitos latrocidas, homicidas ou
estupradores seriam soltos, isso com certeza não aconteceria. Presos do
colarinho branco seriam soltos? Bem, difícil dizer, mas não seriam
necessariamente soltos, porque o juiz do processo poderia encontrar, e a mente
dos integrantes do judiciário é fértil nesse campo, um motivo para manter a
prisão desses presos também.
A grande questão é que não pode haver em um país que se diz
Estado de Direito uma prisão automática, durante o processo, antes do trânsito
em julgado da condenação, sem qualquer fundamentação. Repetindo: as condenações
antes de esgotados todos os recursos não são fundamentação, porque ainda não há
pena certa a se cumprir.
Mesmo Lula poderia não ser solto diante da decisão do Min. Marco
Aurélio, mas para tanto, para não ser solto, seria necessária uma decisão
fundamentando a necessidade dessa prisão. Uma sociedade sã, não totalmente
esclerosada, não pode ficar com medo da soltura de quem quer que seja, até
porque se acreditou no judiciário que mandou prender, não faz sentido não
acreditar no judiciário que manda soltar.
A sociedade deveria ser a primeira a pedir que todas as
decisões fossem fundamentadas, independente do acúmulo de processos, da
quantidade de juízes ou da preguiça em fundamentar. O que precisamos é de
sentido, de razão, de nexo, isso sim está em falta atualmente, e prisão sem
fundamentação chega às raias da loucura, de uma sociedade, de uma imprensa,
louca por grades e muros.
Do GGN