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Corria
o ano de 1882. Comodamente instalados numa velha otomana, dois alemães
esperavam o dono da casa. Acabavam de chegar de Londres.
–
Será que vai dar certo? – perguntara o mais velho, antes da viagem.
–
Não tenho dúvida – respondeu o mais moço. – Um sujeito que escreveu uma novela
como “O alienista” e um romance como “Memórias póstumas de Brás Cubas” deve
compreender tudo desse país. Ou quase tudo.
Marx,
o mais velho, duvidou:
–
Sei não. Esses escritores são pouco confiáveis.
–
Mas você não adora Balzac? – divergiu Engels, o mais novo. – Se gosta daquele
janota maluco que parasitava mulheres ricas, pode gostar do brasileiro que, até
onde sei, e pelo menos aparentemente, é o sujeito mais pacato do mundo.
–
Veremos – disse o cético Marx. E embarcaram no Tâmisa rumo ao mar.
ANTECEDENTES
A
visita fora acordada por telegrama, invenção recente e que só há 10 anos
permitia mensagens da Europa para o Brasil. Entre chiados, estática e
mal-entendidos, foi estabelecido que os visitantes se hospedariam num hotel do
Catete.
Assim
fizeram e ali estavam eles, na casa do Cosme Velho.
Alquebrado,
Marx relutara bastante. No ano anterior escrevera a Engels: "Você sabe que
há poucas pessoas mais avessas ao patético-demonstrativo do que eu; contudo,
seria uma mentira não confessar que grande parte do meu pensamento está
absorvida pela recordação de minha mulher, boa parte da melhor parte da minha
vida".
Nada
mais adequado, portanto, que uma viagem longa para distrair e refazer as
forças, decidiu Engels. Depois de resistir bravamente, Marx concordou.
Apesar
de todos os esforços de Engels, a viagem foi preocupante. Sentado no convés
horas e horas, Marx deixava o olhar se perder na distância. A força do velho
combatente estava minada, sua imensa capacidade de trabalho e de luta parecia
no fim.
Ao
avistar a costa do Rio de Janeiro, contudo, recobrou o ânimo. “Bom sinal”,
alegrou-se Engels. “Vamos ver se aqui ele volta à velha forma”.
O DONO DA CASA
Machado
de Assis entrou, seguido por Carolina. Conhecia a fama dos visitantes e se
orgulhava dessa visita, que considerava um privilégio. Só não entendia o
motivo.
Machado estendeu a mão:
–
Muito prazer em recebê-los – disse em inglês, que falava com desenvoltura. –
Sintam-se à vontade. Espero que tenham feito boa viagem.
–
Fizemos sim, obrigado – respondeu Engels. – Até o meu amigo Marx, que durante a
travessia se mostrou macambúzio, se aninou na chegada.
–
Carolina Augusta – pediu o escritor –, você poderia nos servir chá? E então,
senhores, o que os traz à minha humilde residência?
OS MOTIVOS SÃO ÓTIMOS
–
Embora distantes – começou Engels –, ficamos sabendo de seu prestígio entre os
intelectuais brasileiros. Foi isso que nos trouxe aqui.
–
Estamos cansados da Europa – emendou Marx. – Escrevemos muito e muito
longamente debatemos nossas ideias com os mais variados públicos.
–
Estou ciente – disse educadamente Machado –, embora soubesse pouco sobre os
visitantes: sabia apenas que eram esquerdistas, que pregavam a luta de classes,
que não eram bem vistos na maioria dos países europeus etc... Mas nada lera
deles. Soubera do bombástico “Manifesto comunista”, mas não se interessou em
ler.
–
Em que país teria a revolução possibilidade de sair vitoriosa? – retornou Marx.
– Este é o principal dilema. Pensamos na Alemanha e na Inglaterra em primeiro
lugar, como países desenvolvidos que são. Pesando prós e contras, desistimos e
passamos a mirar a Rússia, com seu imenso campesinato. Mas não tem operariado.
Estados Unidos? Não serve. Caótico, individualista e arrogante. Foi assim que
chegamos ao Brasil. Queremos descobrir se o Brasil está maduro para a
revolução.
O ZERO E O INFINITO
Machado
se espantou: “Revolução no Brasil? Como assim?”, mas logo se recompôs,
guardando para si o pensamento.
Sorte
que Carolina Augusta entrou com o chá naquele momento. Serviu aos três,
perguntando com amável sorriso: – Mais açúcar? Uma gota de leite? Conhecem
nossos biscoitos de araruta? As torradas estão fresquinhas, não querem provar?
O
ambiente se tornou leve e descontraído; os visitantes, bem à vontade. Marx
abriu o colete e até sorriu para a dona de casa:
–
Obrigado – disse ele. – Aceito um biscoito de araruta.
Mastigaram
ruidosamente. As torradas, de fato, estavam fresquinhas.
Durou
bastante o silêncio. Afinal, Machado de Assis reiniciou a conversa:
–
Sinto desapontá-los, mas aqui será impossível. – Sorveu um gole de chá,
mordiscou um biscoito e continuou: – Não temos operariado, apenas artesãos que,
quase sempre, trabalham por conta própria em pequenos cubículos. Não temos
camponeses, pois a mão de obra na roça é toda ela escrava.
–
E quanto à administração pública?
–
Desculpem ser tão direto, mas são todos uns ladrões, descendentes dos ladrões
portugueses que colonizaram este país. Passam rasteira uns nos outros durante o
dia e, à noite, encontram-se nos salões como se nada tivesse acontecido. São
uns cínicos.
E
os fazendeiros?
–
Uns broncos, todos eles. Fazem-se chamar de coronel e capitão, mas os títulos
são comprados junto à corte. Analfabetos e ignorantes. Mal assinam o nome.
–
Quer dizer que não podemos pensar num Brasil revolucionário?
–
Nem sonhando – concluiu Machado. – E daqui a 100, 200 anos será pior.
Foi
convivendo com as nossas elites que garimpei matéria para meus livros. Se
querem uma opinião sincera, sugiro que tentem o Paraguai, aqui pertinho. Quem
sabe lá?
E
foi assim que a revolução comunista não aconteceu no Brasil.
Do
GGN