Em
março de 2016 vazava uma conversa entre o ex-presidente Lula e a presidenta
Dilma Rousseff em que Lula dizia, em alto e bom som, que temos uma “suprema
corte totalmente acovardada”. Não vamos rediscutir a ilegalidade do vazamento,
a falta de punição aos agentes públicos que vazaram o áudio ou ao fato de que
os governos de Lula e Dilma terem indicado quase todos os ministros desta
corte. De fato, se Dilma tivesse continuado seu governo e a PEC da Bengala não
tivesse sido aprovada, Lula e Dilma teriam indicado 10 dos onze ministros do
STF. Apenas Gilmar Mendes seria a exceção.
Este
cenário também deve ser levado em conta para entender a inércia da corte quanto
ao golpe.
Mas
para quê, afinal, serve o STF?
Existem
estimativas de que o STF custe R$ 1,7 milhão de reais por dia ao povo
brasileiro. Um tribunal caro para um judiciário que está entre os mais caros do
mundo, chegando ao valor anual de quase 80 bilhões de reais, o que representa
algo como 1,3% do PIB. Segundo números do judiciário, ele próprio arrecadou
apenas R$ 45 bilhões, sendo deficitário, portanto.
Não
são todos os países do mundo que tem um Superior Tribunal de Justiça como uma
última instância do judiciário em linha normal e, acima dele, um Supremo
Tribunal Federal. Algo um pouco além do que a mera justiça. Algo diferente. É o
reconhecimento, feito por nossos legisladores, de que o judiciário, por si só,
não faz justiça. Pode fazer numa demanda entre o indivíduo A e o B, ou entre a
empresa A e o indivíduo C, mas nada substitui a política. Esta aliás, foi uma
das lições tiradas das discussões no século XVIII, quando da formação dos EUA.
Os “pais fundadores” de lá reconheciam o caráter subjetivo da lei e mais ainda
da aplicação desta lei, e sempre criaram formas de o executivo não ficar
escravo do judiciário. A própria Suprema Corte norte-americana exerce-se com um
comedimento imenso, evitando se intrometer onde a política deve prevalecer.
Quando houve um aumento da atividade jurídica dela por sobre a política por lá
(durante o governo Obama) a própria Hillary Clinton falou abertamente que os
senadores estavam “chocados” com o assanhamento da suprema corte. A palavra
“assanhamento” é minha, não de Hillary Clinton.
No
Brasil, há algum tempo, o STF vem se assanhando. Legislando nas brechas do
congresso, mudando a constituição quando lhe convém (e tem ocorrido bastante
esta conveniência), definido os espaços de atuação da Democracia ou permitindo
e retirando atores do jogo político sem uma regra clara. Apenas a título de
curiosidade o mesmo Gilmar Mendes que afrontou a tudo e a todos dando liminar
contra a nomeação de Lula para ministro, deu liminar para que o senador Cássio
Cunha Lima do PSDB fosse empossado por cima da lei da ficha limpa. Nos últimos
tempos o STF se tornou tudo o que um tribunal não deveria ser: o centro das
atenções.
Entretanto,
todos os efeitos ruins deste tribunal seriam bem aceitos se ele estivesse
contribuindo com o país. É preciso entender que o STF não foi pensado para ser
última instância de processos de polos enriquecidos que conseguem, com boa
retórica, transformar qualquer coisa em “questão constitucional”. As funções
jurídicas do STF têm se alargado imensamente nos últimos tempos. E a corte tem
deixado de lado suas originais funções.
Não
vou me deter nas funções jurídicas do STF, tem gente muito mais qualificada
para isto no cenário nacional. E que está já fazendo esta crítica. Vou me deter
nas funções políticas dele. O STF foi pensado, em primeiro lugar, para ser um
amortecedor da imensa liberdade que foi dado aos juízes de piso no nosso
sistema. Liberdade, diga-se de passagem, sem o contraponto da prestação de
contas à sociedade. Na prática, nossos juízes podem olhar para o céu e decretar
que estão vendo ele verde com bolinhas rosas. Sentenciar assim e ponto final. O
segundo grau foi organizado ser uma primeira barreira contra estes abusos, mas,
com o passar do tempo, a segunda instância virou meramente burocrática, para a
imensa maioria dos processos. Pesquisas atuais mostram que o grau de
deliberação da segunda instância é pífio e só existe quando há interesse
político ou financeiro em algum dos lados da demanda. O STF deveria, pois,
conter o próprio judiciário.
A
segunda função do STF é ser um dos “freios e contrapesos” entre os poderes.
Desde Montesquieu, a ideia de poderes independentes e de mesma envergadura
precisa ser pensada na prática. Como só um poder limita outro, ficou estabelecido
que os poderes teriam mecanismos para se conterem mutuamente. Nos EUA, por
exemplo, o impeachment é usado contra juízes de primeiro grau. No Brasil, uma
das únicas formas do executivo agir sobre o judiciário é o STF. Algumas vozes
têm defendido uma mudança na escolha do STF. Não sei se por ignorância ou má fé
falam em “concursos” ou “indicação legislativa”, retirando o poder atual do
executivo. A indicação de um ministro da suprema corta deveria ser algo de
extrema importância. De novo, voltando aos EUA, por lá são feitos meses de
entrevistas com os candidatos, análises das suas últimas decisões, de sua
produção na vida e etc. Os governos progressistas no Brasil acreditaram que
deveriam ser “republicanos” indicando ministros com critérios insondáveis.
Estamos onde estamos.
A
terceira função política do STF é evitar a conflagração social. Alguns nomeiam
de “Poder Moderador”, lembrando o tempo do império. Uma palavra que deveria se
basear na lei e moderar a vida do país quando em situação de risco. Este poder
moderador serviria sempre como apaziguador, mas teria que ser ativo. Teria que
se pronunciar e não se calar omitindo-se, como faz o atual STF. Não sei se a
experiência do regime militar (quando três ministros não aceitaram o golpe e
foram trocados pelos militares sem que a corte tomasse qualquer atitude) ainda
é presente, mas desde então o STF se tornou um carimbador de pequenos, médios e
grandes golpes. A corte procura se eximir da sua função de moderação. Protegem
seu status pessoais sem incorrer em muitos riscos. É sempre providencial o
pedido de vista indefinida, com que os ministros evitam até que o assunto seja
debatido em plenário. Qualquer tentativa de reverter este descalabro encontra a
voz corporativa da “independência do judiciário”. Defendem o direito de
engavetarem decisões pelo tempo que interessar a eles individualmente. E dizem
que isto é “independência” do poder que – em princípio – a teoria apontava que
deveria ser como uma segurança para a sociedade, e não para os próprios membros.
Agora,
se o STF se furta de ser um amortecedor do judiciário, quase sempre em função
do corporativismo. Se se furta decidir em momentos-chave para evitar
conflagrações sociais e se o executivo o livrou de ser um dos freios e
contrapesos (porque indicou com base em critérios não definidos), então este
STF não serve ao país. Não serve para mais nada. Esta situação ocorreu sim, em
parte, por inação do executivo. Entretanto, outra significativa parte ocorre
porque sim, temos uma suprema corte acovardada. Uma suprema corte em que o
único que ruge como um leão no plenário e na frente das câmeras fala como um
gatinho ao telefone com senadores de determinado partido. Lula estava certo em
seu julgamento. É um escárnio terem votado o processo do Collor quase 20 anos
depois do impeachment. E é um escárnio que os processos de Dilma Rousseff
caminhem a mesma senda. Uma corte que só grita para defender os seus.
O
país não precisa se onze supremas autoridades, protegidas social e
politicamente, regiamente pagas, nobiliarquicamente tratadas, artisticamente
filmadas em sessões para que eles deixem, por conveniência, a “história seguir
seu curso”. É muito caro ter um STF que engaveta o que de mais importante
existe para o país, enquanto põe em pauta um recurso da empresa X contra fulano
de tal e passa horas debatendo sobre uma questão minúscula com ares de
importância magistral enquanto o país se liquefaz.
Do
GGN