A frase “A casa-grande surta quando a senzala vira médica”
surgiu em 2016 com Suzane da Silva, jovem negra estudante de Medicina que
sofreu ataques racistas na internet. E viralizou no ano seguinte a partir da
postagem no Facebook de Bruna Sena, primeira colocada no vestibular de Medicina
da USP de Ribeirão Preto e negra também. Casa-grande & senzala, obra-prima
de Gilberto Freyre publicada em 1933, ajuda a entender o país onde vivemos e o
protesto dessas estudantes.
Qualquer livro se torna um desafio em tempos de leituras
rápidas usando o celular, imagine um livro de mais de 500 páginas. A leitura de
Casa-grande & senzala é densa, afinal, o Brasil não é simples. Cansa menos
se esconder atrás da ignorância e xingar nas redes sociais.
Na opinião de Darcy Ribeiro, outro gênio que se dedicou a
interpretar o Brasil, Casa-grande & senzala é “o maior dos livros
brasileiros”. A primeira lição dele diz respeito ao Presidente da República,
pelo menos na 51ª edição, da Global Editora. Acompanha o livro uma poesia do autor
chamada “O outro Brasil que vem aí”. Nela, Gilberto diz que um dia qualquer
brasileiro poderá governar o Brasil, contanto que seja digno do governo. Michel
Temer definitivamente não é esse brasileiro.
Casa-grande & senzala traz gentil e progressivamente uma
enorme riqueza de detalhes sobre o período escravocrata. Os africanos
acrescentaram à formação do Brasil uma cultura mais avançada que a indígena e
alto conhecimento técnico, empregado inclusive nas minas. Havia escravos
estimados como membros da família patriarcal, mas presos à condição de
escravos. E outros tão mal tratados quanto animais.
Crianças brancas ganhavam de presente dos pais crianças
negras da mesma idade e sexo. As brancas montavam nas costas das negras, as
espancavam e humilhavam. Imoralidade demoníaca que durou séculos. Não raro uma
pessoa negra é confundida com o porteiro ou motorista, alguém que deve obedecer
incondicionalmente. Como a babá obrigada a levar os filhos dos patrões a uma
manifestação política.
Freyre afirma que a colonização não seria possível sem
mão-de-obra escrava. Pesa na avaliação sociológica a limitação de recursos
humanos portugueses diante das adversidades do território (umidade,
alagamentos, mosquitos famintos, seca), o que não significa aprovação pessoal
das milhões de vidas massacradas.
O Brasil não superou o racismo e a exploração humana
detalhados no livro, por isso Bruna e Suzane comemoraram bastante. Somente 8%
dos adultos negros concluíram o curso superior. Negros ocupam menos de 5% dos
cargos executivos das 500 maiores empresas brasileiras.
No passado, escravos recebiam a culpa pela disseminação de
doenças sexualmente transmissíveis, pelos maus hábitos das crianças brancas,
pela sujeira e desordem. Um engano cometido até por sociólogos. O sistema
escravocrata e o homem branco eram os culpados, Gilberto revela.
Preconceituosos ainda dizem que hábitos ruins são “coisas de preto”.
A importância do ventre indígena no princípio da nossa
sociedade é destacada no livro. A quantidade de mulheres europeias era insignificante
e a força de trabalho, que consumiu índios antes de negros, principalmente
masculina.
Dos índios herdamos a higiene apurada, o gosto pela rede de
dormir, as superstições envolvendo animais monstruosos. Dos africanos, a forma
efusiva e meiga de falar, o Candomblé, preferências alimentares como o azeite
de dendê.
Características do povo português viabilizaram o sucesso da
colonização. Quando chegaram ao nosso litoral, os portugueses já acumulavam um
século de aventuras nos trópicos. A mistura sanguínea com mouros lhes deu
resistência ao calor do clima e a plasticidade necessária à união sexual com
outras raças.
O braço e a espada do particular, mais do que a ação oficial,
construiu nossa sociedade. Prática criminosa onde encontrou inspiração a
desembargadora que tirou seu filho da cadeia na marra.
A taxa de suicídio entre indígenas é três vezes maior que a
média nacional. O nível de qualidade de vida dos negros está 10 anos atrasado
em relação ao dos brancos. O Brasil está próximo da perdição, da falta completa
de rumo político. Gilberto Freyre, um dos mais importantes pensadores do século
20, propõe o caminho do respeito mútuo ao escrever essas linhas:
– Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na
alma, quando não na alma e no corpo, a sombra, ou pelo menos a pinta, do
indígena ou do negro.
GGN