“Reproduzimos sob máscaras modernas os mesmos ódio e desprezo
às classes populares que antes eram devotados ao escravo”. A reflexão é do
sociólogo Jessé Souza, palestrante da aula inaugural do curso de Mestrado
Profissional em Atenção Primária à Saúde com ênfase na Estratégia de Saúde da
Família, realizada em 22/02/2018, na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp/Fiocruz). Sob o tema O Brasil tem jeito? Sociedade e
saúde em tempos de crise, o evento teve como debatedor o coordenador do Centro
de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE-Fiocruz), Antonio Ivo de Carvalho.
Para compreender o atual momento político do país, Jessé de
Souza afirma ser necessário discutir “a narrativa que se construiu sobre nós
mesmos e que foi comprada e difundida pelos intelectuais brasileiros, muitas
vezes, a serviço da elite”. Segundo o sociólogo, esse tipo de narrativa surge
da necessidade que o ser humano tem de construir um sentido sobre si, de saber
quem é e o que ele faz no mundo. Se na Antiguidade, as religiões ofereciam esse
tipo de explicação totalizante sobre as sociedades, observa, na Idade Moderna
serão os mitos nacionais, em parte informados pela ciência, que irão desempenhar
esse papel. “Em todas as sociedades, as elites sabem que precisam, primeiro,
dominar a cabeça das pessoas com ideias para, depois, enfiar a mão no bolso
delas. É preciso discutir essas ideias que nos escravizam para não repetirmos
mais uma história que vem se mantendo há mais de cem anos”, propõe Jessé.
“O mito nacional é um conto de fadas para explicar às pessoas
de onde nós viemos, quem nós somos e para onde vamos”, diz Jessé, denominando
esse fenômeno de “personalismo” e classificando-o como “uma das três mentiras
contadas pela elite sobre quem o brasileiro é”. Do personalismo, enraizaram-se
ideias sobre o Brasil como a de que o brasileiro é corrupto culturalmente,
moldado pela emoção, não democrático, não produtivo, entre outras.
Segundo o pesquisador, parte dessa ideia que o brasileiro tem sobre si é
moldada pela forma como o sociólogo Gilberto Freyre descreveu em sua obra. “Nós
nos vemos em grande medida como Gilberto Freyre nos viu. Além disso, essas
ideias influenciam a nossa autoimagem. Nossa personalidade individual é em
parte moldada pelo nosso pertencimento nacional”, considera.
A outra mentira contada pela elite econômica ao longo do
século XX, segundo Jessé, refere-se ao conceito de patrimonialismo. “Esse
conceito diz que o poder, e consequentemente a corrupção e a elite má, estão no
Estado. Se você tem o poder, terá a parte boa e, portanto, os privilégios. No
entanto, o poder em toda sociedade capitalista está no mercado. Logo, o
conceito de patrimonialismo é a cortina de fumaça usada pelos grandes
proprietários do mercado que nos assaltam”. Segundo Jessé, a mentira de que a
corrupção é política está exposta no Brasil. “Todo mundo sabe que os caras são
meros lacaios, office boys do mercado”.
O conceito de patrimonialismo aponta que o poder, e
consequentemente a corrupção e a elite má, estão no Estado. No entanto, o poder
em toda sociedade capitalista está no mercado (Jessé de Souza)
O conceito de populismo também foi criticado pelo autor, que
o classifica como a terceira e última mentira contada pelos intelectuais
brasileiros. “Segundo a noção de populismo, os pobres que vêm do campo para
cidade, que não foram à universidade e que não leem os grandes autores por não
ter instrução são facilmente manipuláveis. Os líderes são, dessa forma, vistos
como manipuladores”, explica Jessé, destacando que o conceito tem dois efeitos:
limita o alcance da noção de soberania popular e estigmatiza os líderes. “A
partir das noções de populismo e de patrimonialismo, chegamos a tudo o que os
jornais dizem sobre a política. Claro que em doses homeopáticas, diárias, como
pílulas envenenadas”.
A propagação dessas ideias teve início, segundo Jessé, com a
associação entre elite e classe média na década de 1930 e veio se fortalecer a
partir dos anos 70. “Esse acordo entre as classes do privilégio é de uma elite
do dinheiro, que reproduz o capital econômico, e uma classe média, precarizada
em alguma medida. Nessa dinâmica, a elite reproduz capital econômico, enquanto
a classe média reproduz capital cultural”, destaca. “Para o capitalismo, o
conhecimento é tão importante quanto o capital econômico. Não há função no
Estado nem no mercado que você possa exercer sem o conhecimento”.
Segundo o sociólogo, juntas, a elite e a classe média formam
um bloco antipopular que se posiciona contra qualquer política que diminua a
distância entre as classes. “Acreditamos que a forma de Estado patrimonial era
a nossa grande questão e a escravidão um dado secundário, desconsiderando que a
forma de Estado decorre da forma como a sociedade se organiza. Isso fez com que
sejamos senhores escravos até hoje”, diz Jessé. “Reproduzimos sob máscaras
modernas o mesmo ódio e desprezo às classes populares que antes era devotado ao
escravo. Retirava-se do escravo toda resistência e confiança, exatamente como
fazemos hoje com as classes populares”.
A elite e a classe média formam um bloco antipopular que se
posiciona contra qualquer política que diminua a distância entre as
classes (Jessé de Souza)
O pesquisador aponta que, no golpe de 2016, a corrupção foi
empregada seletivamente como uma forma de transformar o ódio desse bloco
antipopular contra as políticas redistributivas. “Como não é cristão odiar
pobre, o pretexto da corrupção transforma o canalha no herói moral da Avenida
Atlântica, que veste uma camisa verde-amarela e se põe como defensor de valores
morais”, diz Jessé, destacando que a classe média é, no entanto, também uma
vítima desse acordo com a elite. “A única classe que tem uma consciência de
classe é a elite, que sabe se comunicar entre si”. Por esse motivo, o
pesquisador defende que a esquerda não deve perder a classe média de vista no
atual momento de crise. “A classe média, pela sua função de formadora de
opinião, é extremamente importante aqui. Acho imprescindível o apoio de fração
expressiva dessa classe – ainda mais agora, que estamos em um momento de
reconquista disso. O golpe é tão burro que está jogando boa parte da classe
média na centro-esquerda. Já está acontecendo”.
GGN