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sexta-feira, 6 de abril de 2018

IDENTIDADE DO BRASILEIRO é fruto de MENTIRAS contadas pela ELITE, por Jessé de Souza

“Reproduzimos sob máscaras modernas os mesmos ódio e desprezo às classes populares que antes eram devotados ao escravo”. A reflexão é do sociólogo Jessé Souza, palestrante da aula inaugural do curso de Mestrado Profissional em Atenção Primária à Saúde com ênfase na Estratégia de Saúde da Família, realizada em 22/02/2018, na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz).  Sob o tema O Brasil tem jeito? Sociedade e saúde em tempos de crise, o evento teve como debatedor o coordenador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE-Fiocruz), Antonio Ivo de Carvalho.
Para compreender o atual momento político do país, Jessé de Souza afirma ser necessário discutir “a narrativa que se construiu sobre nós mesmos e que foi comprada e difundida pelos intelectuais brasileiros, muitas vezes, a serviço da elite”. Segundo o sociólogo, esse tipo de narrativa surge da necessidade que o ser humano tem de construir um sentido sobre si, de saber quem é e o que ele faz no mundo. Se na Antiguidade, as religiões ofereciam esse tipo de explicação totalizante sobre as sociedades, observa, na Idade Moderna serão os mitos nacionais, em parte informados pela ciência, que irão desempenhar esse papel. “Em todas as sociedades, as elites sabem que precisam, primeiro, dominar a cabeça das pessoas com ideias para, depois, enfiar a mão no bolso delas. É preciso discutir essas ideias que nos escravizam para não repetirmos mais uma história que vem se mantendo há mais de cem anos”, propõe Jessé. 
“O mito nacional é um conto de fadas para explicar às pessoas de onde nós viemos, quem nós somos e para onde vamos”, diz Jessé, denominando esse fenômeno de “personalismo” e classificando-o como “uma das três mentiras contadas pela elite sobre quem o brasileiro é”. Do personalismo, enraizaram-se ideias sobre o Brasil como a de que o brasileiro é corrupto culturalmente, moldado pela emoção, não democrático, não produtivo, entre outras.  Segundo o pesquisador, parte dessa ideia que o brasileiro tem sobre si é moldada pela forma como o sociólogo Gilberto Freyre descreveu em sua obra. “Nós nos vemos em grande medida como Gilberto Freyre nos viu. Além disso, essas ideias influenciam a nossa autoimagem. Nossa personalidade individual é em parte moldada pelo nosso pertencimento nacional”, considera.
A outra mentira contada pela elite econômica ao longo do século XX, segundo Jessé, refere-se ao conceito de patrimonialismo. “Esse conceito diz que o poder, e consequentemente a corrupção e a elite má, estão no Estado. Se você tem o poder, terá a parte boa e, portanto, os privilégios. No entanto, o poder em toda sociedade capitalista está no mercado. Logo, o conceito de patrimonialismo é a cortina de fumaça usada pelos grandes proprietários do mercado que nos assaltam”. Segundo Jessé, a mentira de que a corrupção é política está exposta no Brasil. “Todo mundo sabe que os caras são meros lacaios, office boys do mercado”.
O conceito de patrimonialismo aponta que o poder, e consequentemente a corrupção e a elite má, estão no Estado. No entanto, o poder em toda sociedade capitalista está no mercado (Jessé de Souza)
O conceito de populismo também foi criticado pelo autor, que o classifica como a terceira e última mentira contada pelos intelectuais brasileiros. “Segundo a noção de populismo, os pobres que vêm do campo para cidade, que não foram à universidade e que não leem os grandes autores por não ter instrução são facilmente manipuláveis. Os líderes são, dessa forma, vistos como manipuladores”, explica Jessé, destacando que o conceito tem dois efeitos: limita o alcance da noção de soberania popular e estigmatiza os líderes. “A partir das noções de populismo e de patrimonialismo, chegamos a tudo o que os jornais dizem sobre a política. Claro que em doses homeopáticas, diárias, como pílulas envenenadas”.
A propagação dessas ideias teve início, segundo Jessé, com a associação entre elite e classe média na década de 1930 e veio se fortalecer a partir dos anos 70. “Esse acordo entre as classes do privilégio é de uma elite do dinheiro, que reproduz o capital econômico, e uma classe média, precarizada em alguma medida. Nessa dinâmica, a elite reproduz capital econômico, enquanto a classe média reproduz capital cultural”, destaca. “Para o capitalismo, o conhecimento é tão importante quanto o capital econômico. Não há função no Estado nem no mercado que você possa exercer sem o conhecimento”.
Segundo o sociólogo, juntas, a elite e a classe média formam um bloco antipopular que se posiciona contra qualquer política que diminua a distância entre as classes. “Acreditamos que a forma de Estado patrimonial era a nossa grande questão e a escravidão um dado secundário, desconsiderando que a forma de Estado decorre da forma como a sociedade se organiza. Isso fez com que sejamos senhores escravos até hoje”, diz Jessé. “Reproduzimos sob máscaras modernas o mesmo ódio e desprezo às classes populares que antes era devotado ao escravo. Retirava-se do escravo toda resistência e confiança, exatamente como fazemos hoje com as classes populares”.
A elite e a classe média formam um bloco antipopular que se posiciona contra qualquer política que diminua a distância entre as classes (Jessé de Souza)
O pesquisador aponta que, no golpe de 2016, a corrupção foi empregada seletivamente como uma forma de transformar o ódio desse bloco antipopular contra as políticas redistributivas. “Como não é cristão odiar pobre, o pretexto da corrupção transforma o canalha no herói moral da Avenida Atlântica, que veste uma camisa verde-amarela e se põe como defensor de valores morais”, diz Jessé, destacando que a classe média é, no entanto, também uma vítima desse acordo com a elite. “A única classe que tem uma consciência de classe é a elite, que sabe se comunicar entre si”. Por esse motivo, o pesquisador defende que a esquerda não deve perder a classe média de vista no atual momento de crise. “A classe média, pela sua função de formadora de opinião, é extremamente importante aqui. Acho imprescindível o apoio de fração expressiva dessa classe – ainda mais agora, que estamos em um momento de reconquista disso. O golpe é tão burro que está jogando boa parte da classe média na centro-esquerda. Já está acontecendo”.
GGN