José
Dirceu e o jogo das aparências
O
golpe parlamentar transformou o Brasil num país sem lei. A cada dia novas
notícias deprimentes nos assolam. Quando não são os nove sem-terra chacinados
em Colniza (MT), são três manifestantes do MTST que são presos por motivo
fútil, mantida a prisão para deleite de uma magistrada aparentemente militante
dos celerados que ajudaram destituir uma Presidenta eleita com 54 milhões de
votos.
Assim,
quando não são índios Gamela atacados por fazendeiros sanguinários que lhes
decepam as mãos, é Mateus assaltado covardemente por um capitão da PM de Goiás,
que lhe afundou o crânio com uma cacetada tão forte que quebrou o cassete.
E
tudo se passa sem uma palavra de condolência, de conforto dos atores golpistas
instalados no governo federal; sem uma promessa de providências do
procurador-geral da República, preocupado demais com a ideia fi xa de “combate”
à corrupção. Parece que as instituições estão de férias, deixando o descalabro
correr solto.
Segurança
jurídica? O que é isso? Depois que um juiz de piso - como gosta de dizer o meu
amigo Eugenio Aragão - da provincial Curitiba se arrogou
poderes de subverter o devido processo legal ao jogar para a plateia ao invés
de jurisdicionar, pode se esperar tudo. As demais instâncias, seja por razões
de comodismo, seja por conivência ou seja por pusilanimidade, sacramentaram
largamente as práticas "excepcionais" para "tempos excepcionais".
Quatorze reclamações disciplinares contra o juiz de Curitiba foram arquivadas
no CNJ.
Moro
tudo pode. Até mesmo tornar públicas interceptações realizadas em comunicação
telefônica que não interessavam ao processo, somente para destruir
as reputações dos interlocutores. Ficou por isso mesmo. O juiz virou um
popstar. E nenhuma pecha nele gruda.
Isso,
claro, enquanto o magistradinho estava se limitando a dar suas caneladas na
turma do PT. Todos o festejavam e batiam palmas para maluco dançar. E enquanto
palmas se batiam, maluco dançava feliz.
Com
a divulgação precipitada das delações de Emílio Odebrecht e de Leo Pinheiro,
contudo, parece que a bonança acabou em Curitiba. As palmas parecem querer
silenciar. Ao menos as mais entusiasmadas delas, as palmas institucionais. Não
que a divulgação tenha obedecido à mesma dinâmica perversa das publicidades
anteriores, com timing calculado para destruir toda e qualquer chance de
sobrevida política de atores do PT.
Desta
vez, a ostentação das delações escapou como um salve-se quem puder. Os relatos
eram de um vulto tal, que não tinham como ser mantidos longe da curiosidade
pública por muito tempo. Tornaram-nos públicos para salvar a cara do ministério
público, já no fim do segundo e provavelmente último mandato de seu chefe. Não havia
como esconder tanta sujeira por debaixo do tapete, sem que seu sucessor
n&ati lde;o fosse obrigado a expor eventual omissão.
Só
que os novos delatados, pertencentes ao seleto clube das classes dominantes
brasileiras, não poderiam receber o mesmo tratamento da ralé de esquerda. A
sangria tinha que ser estancada, ainda que, para tanto, as instâncias omissas
ou coniventes agora se apropriassem do discurso crítico ao carnaval judicial
curitibano. Antes tidas como coisa de juristas esquerdistas e blogueiros de
pouco eco.
As
críticas agora passariam a fazer parte do repertório do magistrado supremo
porta-voz da elite política e financeira: Moro estaria agindo arbitrariamente
ao manter longas prisões processuais com escopo de moer a resistência de
potenciais delatores; essa prática, agora mereceria a mais veemente reprimenda
da corte suprema.
Às
favas com a coerência. Para tornar a mudança de ventos mais assimilável pelos
críticos costumeiros do carnaval curitibano, resolveu-se começar por José
Dirceu, como boi de piranha. Assim, pensou-se, calariam aqueles que enxergassem
oportunismo e seletividade na atitude dos magistrados inovadores.
Não
que José Dirceu não merecesse, por justiça, a ordem de habeas corpus que
colocasse fim ao longo cárcere decretado por capricho do ministério público e
do juiz de piso. Só que o merecia já muito antes, condenado que foi com pífia
prova de reforço a suposições sem lastro da acusação, apenas para perpetuar o
seu calvário político. Não, soltá-lo nada tem de errado.
Errado
é esperar tanto tempo para lhe garantir a liberdade que nunca deveria ter sido
surrupiada. É saber que seu cárcere apenas obedecia à lógica da extorsão de
delação para comprometer alvos políticos certeiros, como o PT e Lula, e nada
ter-se feito por tanto tempo. Escandaloso é determinar a soltura de José Dirceu
somente para garantir um precedente que possa aproveitar outros ameaçados por
Curitiba que pertençam ao clube dos intocáveis.
Fez-se
Justiça a José Dirceu, ainda que por aberratio ictus, por erro quanto à pessoa,
pois quem se quis beneficiar nada tem a ver com ele.
E
assim anda a carruagem de nosso estado de direito destroçado. Ninguém se
preocupa com a aplicação da lei para todos. Preocupam-se em passar a mão na
cabeça de alguns, ainda que para isso tenham que, a contragosto, beneficiar
outros como sacrifício necessário para manter as aparências.
Enquanto
isso, esperneiam os Dallagnois da vida, porque, coitados, até hoje não haviam
entendido como a orquestra toca. Finalmente aprenderam a duras penas que foram
"useful idiots", poupados nas suas extravagâncias tão e só porque
ajudaram com o trabalho sujo de solapar o processo político democrático.
Porem não pensem eles que podem continuar
tocando terror no País, porque, agora, os jogadores são outros. E saberão punir
exemplarmente qualquer insolência advinda da burocracia privilegiada do ministério
público e da justiça de primeiro grau. Que se cuidem e não se metam
a besta. Temer não é Dilma e Gilmar não é Lewandowski, só para lembrar...
Do 247, Wadih Damous