Na próxima
quarta-feira (21), o Tribunal Regional Federal da 5a Região, sediado em
Recife, julga a constitucionalidade do decreto 4.887/03, que regulamenta a
demarcação e titulação das terras dos remanescentes quilombolas no Brasil. A
decisão pode afetar a vida de pelo menos 20 mil famílias com processos abertos
no Incra nos estados de Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do
Norte e Ceará, áreas de abrangência do TRF 5.
O decreto
4.887/03 regulamenta o artigo 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 que determina que
“aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas
terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os
títulos respectivos.”
Pelo
decreto, consideram-se remanescentes dos quilombos, “os grupos étnicos-raciais,
segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados
de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra
relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”. Compete ao
Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), por meio do Incra, a
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras
ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da
competência concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
O decreto
prevê que “para a medição e demarcação das terras, serão levados em
consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das
comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar
as peças técnicas para a instrução procedimental”. Também garante aos
remanescentes “a participação em todas as fases do procedimento administrativo,
diretamente ou por meio de representantes por eles indicados”.
Comunidade
de Acauã
O caso que
deu origem ao processo no TRF5 está vinculado à comunidade quilombola de Acauã,
localizada no município de Poço Branco, no Rio Grande do Norte. Formada por 60
famílias, a comunidade teve seu território reconhecido oficialmente pelo Estado
brasileiro em 2008. Ela ocupa uma área de 338 hectares – muito menor do que o
território original reivindicado pelos remanescentes. O reconhecimento garantiu
à população acesso a políticas públicas como a construção de casas pelo governo
federal e o recebimento de cisternas.
A
desapropriação da terra saiu em 2013 e foi questionada na Justiça Federal pelo
proprietário Manoel de Freitas, alegando a inconstitucionalidade do decreto
4.887/03. É esse questionamento que será julgado na próxima quarta-feira pelo
tribunal federal sediado em Recife.
Na semana
passada, o desembargador Edilson Nobre deferiu o pedido de habilitação no
processo como amicus curiae de 23 comunidades quilombolas dos estados
de Pernambuco e Rio Grande do Norte. A expressão em latim faz referência à
participação de terceiros em processos jurídicos, com o objetivo de subsidiar a
Corte com informações relevantes sobre a causa a ser julgada.
Além das
comunidades, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Defensoria Pública da União,
a Fundação Cultural Palmares e a Associação dos Advogados/as de Trabalhadores
Rurais (AATR) também se habilitaram no processo como amicus curiae.
Para
Gabriella Santos, assessora jurídica e advogada da CPT, a participação direta
das comunidades no processo, como “amigos da corte” é fundamental, por se
tratar de uma causa que vai impactar diretamente centenas de comunidades
quilombolas existentes no território abrangido pelo TRF 5. “Como amicus
curiae, as comunidades quilombolas podem fornecer subsídios que ajudem a
instruir o processo, pois os desembargadores estão diante de uma causa de
especial relevância e complexidade, inclusive porque nesses casos o instrumento
do amicus serve como forma de ampliar e qualificar o contraditório, previsto na
Constituição Federal”, analisa.
União quilombola
Jefferson
Pereira, quilombola do território Águas do Velho Chico, localizado em Orocó,
Pernambuco, chama a atenção para o momento crítico do debate sobre os direitos
das comunidades remanescentes. “É muito importante que as comunidades
quilombolas se unam em torno de sua grande pauta, que é o território, e que
está definitivamente ameaçada por esse julgamento que ocorrerá no TRF 5.
Reafirmamos a importância de todos os quilombos do Brasil se unirem, para que
os poucos direitos duramente conquistados não sejam suprimidos“.
Para
Jefferson, o que está em jogo é parte fundamental da história e da memória de
seus ancestrais negros. “Diante de tantas opressões vividas ao longo da nossa
história, as comunidades quilombolas sempre se uniram em torno do que mais
necessitavam: liberdade, enquanto possibilidade de manutenção de nossas
tradições e de nossos direitos. Hoje não será diferente”.
Audiências públicas
Nesta
segunda-feira (19), o Ministério Público Federal vai realizer audiência pública
às 14h para discutir a constitucionalidade do decreto em sua sede no Recife.
Estarão presentes representantes de comunidades quilombolas do estado; o
procurador da República, Alfredo Carlos Gonzaga; o pesquisador e professor da
Universidade Federal da Paraíba,Eduardo Fernandes; Geraldo Vilar, da
Defensoria Pública da União; Priscila Oliveira, procuradora regional Federal;
Eliane Recena, procuradora regional da República; e representante do Incra
nacional. O conteúdo desta audiência poderá fazer parte dos autos do processo e
servir de subsídio para os desembargadores que julgarão o decreto 4.887/03.
O tema
também sera discutido na terça-feira (20) em audiência pública na Assembléia
Legislativa de Pernambuco, a partir das 9h. A audiência, intitulada de Quilombolas,
nenhum direito a menos: a regulamentação fundiária e os direitos dos povos
remanescentes dos quilombos, discutirá, além do decreto, o contexto de
violações de direitos, conflitos agrários a luta pelo território
quilombola.
Ataques recorrentes
Esta não é a
primeira vez que o decreto que regulamenta a demarcação e titulação de terras
dos remanescentes quilombolas é questionada na Justiça. Após a decretação do
decreto em 2003, o então Partido da Frente Liberal, antigo PFL e atual DEM,
ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF).
O julgamento está empatado em 1 a 1, com voto pela inconstitucionalidade
proferido pelo ministro Cesar Peluso e outro de constitucionalidade dado pela
ministra Rosa Weber. O julgamento aguarda retomada na Corte desde 2015.
Em 2013, O
Tribunal Regional Federal da 4a Região declarou a constitucionalidade do
decreto por 12 votos a 3, depois de ter sido provocado por fazendeiros do
estado do Paraná em caso envolvendo a comunidade quilombola de Paiol de Telha.
Agora, os direitos das populações remanescentes dos quilombos estão mais uma
vez em xeque.
Do GGN