Por
baixo dos data vênias, do latim, das citações, o direito, assim como a
economia, tem que obedecer à lógica. Às vezes, há temas complexos, exigindo
desenvolver conceitos mais sofisticados. Em outros casos, são situações
corriqueiras, que exigem apenas decifrar os pontos centrais do que está em
julgamento. É o caso do julgamento de Lula.
Nele,
havia um conjunto de indícios e duas narrativas possíveis.
Peça 1 - Os fatos
Marisa
Lula tinha uma cota em um apartamento da Bancoop cooperativa que entrou em
crise.
Anos
atrás, OAS assumiu o edifício e negociou com os moradores a transformação das
cotas em apartamentos.
Marisa
tinha um apartamento menor. Na divisão foi-lhe facultado adquirir um maior.
O
triplex foi reformado pela OAS de acordo com o gosto do casal.
Em
determinado momento Lula desistiu do apartamento e Marisa pediu o dinheiro de
volta.
Esses
são os fatos.
Os pontos de dúvida
1.
Qual a motivação da OAS reformando o apartamento para o casal Lula?
2.
O casal chegou ou não a ter a propriedade do imóvel?
Peça 2 - A narrativa
lógica
1.
Na política econômica dos campeões nacionais, as empreiteiras foram o setor
mais beneficiado. Ao mesmo tempo, Lula saiu do governo como o mais popular
estadista do planeta, com imagem pública e relacionamentos consolidados nos
países de interesse da empreiteira.
2.
Por tudo isso, a OAS pretendeu oferecer um mimo a Lula, turbinando a cota de
apartamento que tinha no edifício Solaris.
3.
Após duas reuniões, Lula desistiu do apartamento. Ou porque se deu conta da
exploração política que poderia advir do episódio, ou porque se desinteressou
do apartamento.
Peça 3 - A narrativa da
Lava Jato
1.
A OAS tinha uma conta-corrente de propina com o PT proveniente de contratos com
a Petrobras.
2.
Descontou da conta R$ 3 milhões para fazer as reformas do apartamento.
3.
Passou o apartamento para Lula, mas manteve em seu nome para esconder o novo
proprietário.
As
evidências apresentadas
Ponto 1 -
O tratamento diferenciado concedido a Lula, em relação aos demais condôminos.
Ponto 2 -
Vários depoimentos dando conta de que o apartamento estava sendo preparado para
a família Lula.
Ponto 3 -
Depoimento de Léo Pinheiro, presidente da OAS, de que a diferença entre o que
foi gasto e o que foi recebido da família Lula saiu da conta do PT.
Peça 4 - Sobre a
relevância das evidências
Entre
as três, apenas o terceiro ponto tem relevância para o processo.
Ponto 1
– se em lugar de Lula fosse uma atriz de novela da Globo, o tratamento
seria igualmente diferenciado. Uma personalidade pública é, por definição, uma
personalidade diferenciada. Qualquer empreendimento gostaria de ter o casal
Lula como condômino.
Ponto 2 –
nunca houve a menor dúvida sobre o interesse inicial do casal Lula pelo tríplex
durante determinado período. O ponto central é se o casal ficou ou não com a
posse.
Ponto 3 -
Esse é o cerne da acusação. As dezenas de evidências recolhidas pela Lava Jato
se referem apenas aos Pontos 1 e 2, que não são condições suficientes para
confirmar o Ponto 3.
A
lógica canhestra da manipulação consiste em juntar uma enxurrada de depoimentos
que apenas reafirmam dois pontos incontroversos: Lula estava sendo um
tratamento especial; e em determinado período, a OAS estava preparando o
apartamento para o casal Lula. Morre aí, totalmente insuficiente para a
condenação.
Peça 5 – a prova
definitiva
Aí
entra o depoimento de Léo Pinheiro, trazendo a prova considerada definitiva
pelos juízes: uma mera declaração de que o apartamento era de Lula e o valor
foi descontado das propinas devidas ao PT.
A
prova decisiva: uma conversa entre Léo Pinheiro e o tesoureiro do PT, João
Vaccari Neto.
Coloco
em negrito e sublinhado porque toda a construção da acusação se baseia nesse
ponto.
A
denúncia de Léo Pinheiro obedeceu à seguinte trajetória:
1. 01/06/2016 Delação
de Léo Pinheiro trava após inocentar Lula (https://goo.gl/kp3whZ).
2. 23/11/2016 recebeu
sentença de 26 anos de prisão confirmado pelo TRF4 (https://goo.gl/qFEvgB).
3. 12/07/2017 por
ter ajudado no processo contra Lula, Sérgio Moro reduz a pena de Léo Pinheiro a
10 anos e 8 meses.
4. 21/09/2017 Procuradoria
Geral da República não aceita a delação de Léo Pinheiro por não ter apresentado
nenhum elemento de prova (https://goo.gl/4kn7tF).
5.
Mesmo assim, Moro mantém o depoimento de Léo Pinheiro e o TRF4 reduz sua pena
para três anos e seis meses. Como já cumpriu uma parte, deverá ser solto em breve
(https://goo.gl/TaY6kp).
E
toda a acusação se baseou apenas nisso, declarações de Léo Pinheiro, de que o
gasto foi descontado da conta de propina do PT, claramente, nitidamente em
troca da redução da sua pena. Sem o acerto, ele passaria o resto de sua vida na
prisão.
O
tal acerto teria sido combinado em uma reunião com o tesoureiro do PT João
Vaccari Neto. Apenas duas pessoas poderiam confirma a conversa: ele e Vaccari.
Vaccari não foi ouvido. Léo não apresentou um documento sequer. No ano passado,
declarou não possuir documentos porque Lula teria aconselhado a se desfazer
deles.
Nem
se entre em outros detalhes, como a desproporção entre a suposta propina ao
suposto chefe maior do esquema e o que era pago ao terceiro escalão da
Petrobras.
O
ponto central foi esse.
Ponto 6 – a retórica
midiática de defesa da condenação
Entendido
isso, leia agora o artigo “Questão de ordem:
Provas, sim, e claríssimas”, de Marcelo Coelho na fonte. É interessante
para comprovar a maneira como a mídia em geral constrói seus sofismas.
O
artigo tem 4.058 caracteres, divididos da seguinte maneira.
Marcelo
é um dos bons colunistas da Folha. No artigo, extenso, falou de todas as
preliminares, mas não consumou o ato: a prova “acima de qualquer dúvida” de que
o apartamento era dew fato de Lula. Limitou-se a endossar todas as afirmações
dos desembargadores, como se fossem verdades comprovadas, de fontes
intelectualmente idôneas.
O
editorial da Folha, “Condenado”:
Editorial
do Estadão, “Acima de qualquer dúvida”
Ponto 7 – sobre a nova
retórica
Todo
o jogo é esse, uma sucessão de argumentos retóricos em que o objetivo final não
é a busca da verdade, mas o convencimento do público.
A
propósito, é um dos temas desenvolvidos por Chain Perelman, pensador já
falecido, que estudou as implicações da “Nova Lógica”, no pensamento jurídico (https://goo.gl/2auhPn)
“Para
os retóricos não existe nada em absoluto. As coisas estão mais ou menos
corretas, mais ou menos entendidas, mais ou menos aceitas. O embate retórico
contra a certeza e contra a objetividade fez-se projetar como teoria do
aproximado, do inconcluso, do relativo. [...] Não se espera convencer através
de um argumento específico em qualquer debate gerado pela vida quotidiana ou
jurídica, a práxis dos falantes revela que o argumentador não sabe ao certo
qual dos seus argumentos –perante o auditório ou o juiz- pesará mais. Então ele
busca a quantidade, a diversidade e espera, desta forma, ser mais persuasivo.
Entende
PERELMAN que para a solução de problemas cotidianos que tenham envolvimento com
valores a melhor forma de se buscar uma solução é através da chamada arte da
discussão.
O
objeto da retórica, segundo PERELMAN, “é o estudo das técnicas discursivas que
visam provocar ou a aumentar a adesão das mentes às teses apresentadas a seu
assentimento
Destarte,
podemos dizer que a Retórica é a adesão intelectual de um ou mais espíritos
apenas com o uso da argumentação; é o preocupar-se mais com a adesão dos
interlocutores do que com a verdade; é não transmitir noções neutras, mas
procurar modificar não só as convicções daqueles espíritos, como as suas
atitudes”.
GGN