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segunda-feira, 4 de março de 2019

XADREZ DE COMO O SISTEMA JUDICIAL ALIMENTOU O FASCISMO À BRASILEIRA, POR LUIS NASSIF

A semente da politização e início da escalada fascista no Judiciário nasceram e foram alimentados na Procuradoria Geral da República, com a parceria entre o PGR Antônio Fernando de Souza, seu sucessor Roberto Gurgel e seu colega, ex-procurador, e Ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Joaquim Barbosa no caso conhecido como “mensalão”.
Nos últimos anos foram publicados diversos livros traçando uma radiografia do fascismo na história, identificando os pontos de partida, a incapacidade da sociedade de se dar conta da escalada até o movimento se tornar irreversível e promover tragédias nacionais.
Esse padrão aconteceu nitidamente no Brasil, no período que antecedeu a ascensão dos Bolsonaro ao poder.
As etapas principais desse processo têm como protagonistas o sistema judicial.
Peça 1 – a desorganização dos sistemas de informação
Antes do advento do rádio, a informação e a opinião eram organizadas em torno de partidos políticos, sindicatos, Igrejas. A chamada opinião pública difusa se expressava através de jornais, de posições políticas claras e com corpo restrito de opinadores.
Com o rádio, houve uma explosão de novas formas de opinião. A velha ordem se esboroa e, em seu lugar, entra o caos abrindo novas possibilidades políticas, das quais se valem novas lideranças e novos atores.
Assim como nos anos 20, a recente onda fascista global foi precedida pela desorganização do mercado de opinião com as novas tecnologias de informação e a explosão das redes sociais.
Peça 2 – o papel da Veja e de Roberto Civita
No caso brasileiro, há um fenômeno que acelerou a radicalização: o papel da mídia, liderada por Roberto Civita e pela Veja que, a partir de 2005, inaugura o jornalismo de esgoto, a guerra implacável contra um inimigo fabricado, com uso recorrente de fakenews embalados pelo discurso de ódio, seguindo o modelo do australiano Rupert Murdok.
As bestas das ruas começam a ser alimentadas pela própria cobertura midiática.
Nesse início de processo, o grande modelo do novo-velho jornalismo que emerge foi Olavo de Carvalho. É nele que os primeiros cultivadores de ódio da mídia vão se espelhar, na adjetivação virulenta, nos bordões, nos alvos da esquerda, nos métodos de manipulação dos argumentos.
Nao adianta pretender minimizar sua atuação. Desde os anos 90, ao lado das igrejas evangélicas, foi o único agente político com visão de futuro, percebendo os movimentos subterrâneos que se formavam e entendendo o papel fundamental da formação política para o enfrentamento de ideias. Algo do qual PT, PSDB, Igreja Católica abdicaram. Sem recorrer aos recursos da salvação divina, Olavo conseguiu dar vida a um mundo anti-científico, supersticioso, vingativo que, cooptando um exército de zumbis, o transformou no brasileiro mais influente do seu tempo
Peça 3 – o ovo da serpente do mensalão
A semente da politização e início da escalada fascista no Judiciário nasceram e foram alimentados na Procuradoria Geral da República, com a parceria entre o PGR Antônio Fernando de Souza, seu sucessor Roberto Gurgel e seu colega, ex-procurador, e Ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Joaquim Barbosa no caso conhecido como “mensalão”.
Ali inaugura-se a aliança Judiciário-mídia que aniquila com os limites impostos pelos códigos e pelos princípios de direito individual, que sustentavam o pacto democrático pós-Constituinte de 1988. Nos anos seguintes, essa invasão dos bárbaros, demolindo qualquer vestígio de civilização, encontraria sua mais perfeita tradução no corneteiro Luis Roberto Barroso anunciando o novo Iluminismo, a refundação do país, enquanto bigas selvagens esmagavam direitos, rasgavam a Constituição e demoliam o custoso trabalho de reconstrução social pós-Constituinte.
Com todas suas manipulações, a Lava Jato chegou a fatos concretos, de corrupção e de financiamento de campanha. Já o “mensalão” se baseou em provas falsificadas, manipuladas pelo trio Souza, Gurgel e Barbosa: o suposto desvio de R$ 75 milhões da Visanet, que nunca ocorreu, e a manipulação da chamada teoria do domínio do fato, provocando a indignação do seu próprio autor, o alemão Claus Roxin.
Antes da Lava Jato, um parecer da Pinheiro Neto, dos maiores escritórios de advocacia do país, atestou que a verba da Visanet havia sido totalmente aplicada nas campanhas do cartão. Posteriormente, um relatório técnico da Polícia Federal confirmou o fato.
Em determinado momento, tentou-se centrar o desvio na chamada “bonificação de volume” – sistema criado pelos grupos de mídia para remunerar agências de publicidade pelas campanhas divulgadas. Quando se constatou que o maior beneficiário das campanhas da Visanet eram as Organizações Globo, voltou-se ao mote original.
Ali ficavam claras as intenções da própria cúpula do Ministério Público Federal de começar a manipular investigações e denúncias para se firmar como poder político de cunho conspiratório. E conferia-se a falta de tradição democrática e institucional do país. A semente do golpismo já estava entranhada na corporação, e não apenas nos Ailton Beneditos da primeira instância.
O ovo da serpente foi gestado naquele julgamento. Uma leve exceção no punitivismo do Supremo, a discussão dos embargos infringentes, fez com que a mídia direcionasse o ódio do populacho contra o Ministro Ricardo Levandowski
Todo o know futuro de parceria com a mídia, do discurso diuturno do ódio, da sincronização da escandalização com eventos políticos, visando interferir nas eleições municipais, de manipulação das leis, das teorias jurídicas, do código penal, de intimidação dos recalcitrantes, foi testado naquela julgamento. Tudo isso potencializado pela cobertura intensiva das audiências do STF, revelando personagens toscos e deslumbrados, como o então presidente do STF Ayres Brito, e a  submissão da corte aos urros da rua. Ali se formatava o direito penal do inimigo.
Antônio Fernando de Souza aposentou-se da PGR ganhando um mega contrato de advocacia com a Brasil Telecom, de Daniel Dantas, personagem que ele livrou do “mensalão”, ao atribuir o financiamento de Marcos Valério aos desvios da Visanet. Abria-se, pelo exemplo e pela blindagem, um caminho que seria seguido no futuro por outros colegas: o de se valer do trabalho no MPF para abrir novas oportunidades profissionais.
Como instituição que defende a revisão da Lei da Anistia e a Justiça de Transição, aguarda-se ansiosamente o momento em que a PGR e o MPF joguem luz sobre esses episódios em uma futura comissão da verdade. O MPF foi peça central no desmonte da democracia brasileira. E o STF o convalidador, ao abrir mão de sua responsabilidade de defender a Constituição e as leis.
Peça 4 – a trégua do sucesso de Lula
A crise mundial de 2008 promoveu uma trégua na guerra interna. Paradoxalmente o Brasil foi beneficiado. A crise promoveu uma desvalorização cambial que segurou a escalada desastrosa de apreciação do real no segundo governo Lula. Pelo rumo dos déficits comerciais, não fosse a crise, a crise externa explodiria antes do final do ano
Ao mesmo tempo, eclodiu em toda intensidade uma até então impressentida genialidade política de Lula. A condução que deu ao combate à crise, a maneira como se conduziu nas negociações internacionais, lideradas por Celso Amorim, o pacto social que juntou grupos empresariais, mercado e movimentos sociais, deram ao país um protagonismo inédito no mundo e transformaram Lula no estadista mais respeitado do planeta. Durante algum tempo, passou-se a ilusão de que o país finalmente se civilizara, que a política se equilibraria entre a centro-esquerda e a centro-direita, sem movimentos radicais, como nas democracias europeias (que se supunha) consolidadas.
Mas o antipetismo crescia e estava claro, para quem tinha olhos para ver – não foi o caso nem de Lula, nem do PT, nem de Dilma – que, ao primeiro sinal de crise, se colocaria em marcha, novamente, a máquina de desestabilização política inaugurada pelo “mensalão”.
De certo modo, o “mensalão” foi uma benção, um alerta sobre as vulnerabilidades jurídicas e políticas do governo e do PT. Mas o sucesso posterior do governo Lula cegou o governo.
Peça 5 – a Lava Jato e o impeachment
A Lava Jato já foi suficientemente esmiuçada nos últimos anos. Desde as manipulações de delações, de sentenças, como foi o caso do TRF4 aumentando a pena de Lula para impedir a prescrição.
Nesse ponto, o fascismo encontrou sua mais perfeita tradução na bandeira anticorrupção. O antipetismo foi tão virulento e cego que permitiu o desmonte da engenharia brasileira, a eliminação de centenas de milhares de empregos, o aprofundamento visceral da crise, que já vinha sendo alimentada pela queda nos preços das commodities e pela gestão econômica desastrosa de Dilma Rousseff, e na implantação da chamada democracia mitigada – uma imagem suave para o estado de exceção implantado no país. O impeachment arrebentou definitivamente com a ordem constitucional, tendo como pontas de lança cristãos novos do estado de exceção, como Luis Roberto Barroso e Luiz Edson Fachin, um PGR, Rodrigo Janot, que lisonjeava o PT, enquanto poder, e que se tornou rapidamente seu algoz quando os ventos mudaram.
Àquela altura, o Judiciário já tinha mostrado sua verdadeira cara. A proliferação de novos partidos e a radicalização nas redes sociais ganharam adeptos em todo o sistema judicial. Assim como nos movimentos de rua, o proselitismo, as redes sociais, os grupos de WhatsApp desnudaram uma corporação com instintos tão primários quanto as massas ululantes.
Uma pesquisa, ainda hoje, mostraria uma maioria assustadora de juízes, desembargadores e procuradores alinhados com o bolsonarismo, mesmo com as demonstrações diárias de um movimento moralmente doentio, politicamente ameaçador, como foi o fascismo italiano e as primeiras movimentações do nazismo.
A pá de cal na democracia veio com o esvaziamento programático do PSDB e sua adesão ao discurso de ódio, através das manifestações, especialmente, de Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Aécio Neves e Aloysio Nunes. Ali ocorreu um processo de autodestruição da segunda perna na qual se sustentava o sistema partidário.
Peça 6 – a custosa redenção
Por outro lado, a visão da bocarra sinistra do bolsonarismo, suas sucessivas declarações de guerra à mídia, o corte nas verbas publicitárias e o hálito peçonhento, imoral, doentio, somado à derrota do petismo – esvaziando o álibi do antipetismo – permitiu um relaxamento na ordem unida.
A extrema crueldade com que a mídia tratou o casal Lula, com a casa invadida, a cama revirada, a condução coercitiva, a própria morte de Mariza Silva, de repente foi substituída por uma reação contra as manifestações indignas dos bolsonaristas, a começar do filho Eduardo, no recente episódio da morte do neto de Lula.
Antes disso, a mídia de opinião começou a permitir gradativamente manifestações progressistas de alguns jornalistas. A razão era simples. O público viciado em violência, que ela ajudou a construir, estava definitivamente nas mãos das redes sociais. Restava-lhe voltar ao público mais seletivo, consumidor de opiniões plurais e civilizatórias.
Aliás, é curioso como se dá esse endosso tácito a uma opinião relativamente mais plural. Os jornais começam a se permitir notas críticas, em relação ao pensamento selvagem dos Bolsonaro, manifestações tímidas em relação aos abusos contra direitos humanos. Os primeiros jornalistas saem da toca e passam a inovar no discurso da última década – defendendo temas civilizatórios. A repercussão motiva outros jornalistas. E, assim, tenta-se voltar ao pluralismo dos anos 90, em um momento em que o modelo jornal está em crise mundialmente.
O que virá daqui por diante é uma incógnita.
Não haverá saída fora da pacificação da sociedade brasileira. E a pacificação passa pelo fim da perseguição implacável a Lula. Trata-se de questão central, que jamais será abraçada pelo bolsonarismo.
O movimento civilizatório é crescente. Não se sabe se a ponto de encorajar o STF a colocar um fim na perseguição a Lula. Recorde-se que na reunião de Bolsonaro com os chefes de outros poderes, para discutir a crise venezuelana, os dois únicos endossos partiram do inenarrável David Alcolumbre, presidente do Senado, e de Dias Tofolli, presidente do STF. Nem os militares, nem Rodrigo Maia, presidente da Câmara, apoiaram a aventura.
Não se tenha dúvida de que o país precisará bater no fundo do poço, antes de começar o rearmamento moral – assim como a humanidade só encontrou um período de paz relativamente mais duradouro depois do desastre da Segunda Guerra e do nazismo.
A dúvida é sobre o tempo para se atingir o fundo do poço. Os Bolsonaro parecem uma cloaca sem fundo.
PS – Devido ao seu comportamento recente, de defensor relevante e corajoso do estado de direito e das garantias individuais, deixo de mencionar o papel central de Gilmar Mendes no período anterior.
GGN