A
semente da politização e início da escalada fascista no Judiciário nasceram e
foram alimentados na Procuradoria Geral da República, com a parceria entre o
PGR Antônio Fernando de Souza, seu sucessor Roberto Gurgel e seu colega,
ex-procurador, e Ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Joaquim Barbosa no
caso conhecido como “mensalão”.
Nos
últimos anos foram publicados diversos livros traçando uma radiografia do
fascismo na história, identificando os pontos de partida, a incapacidade da
sociedade de se dar conta da escalada até o movimento se tornar irreversível e
promover tragédias nacionais.
Esse
padrão aconteceu nitidamente no Brasil, no período que antecedeu a ascensão dos
Bolsonaro ao poder.
As
etapas principais desse processo têm como protagonistas o sistema judicial.
Peça 1 – a desorganização
dos sistemas de informação
Antes
do advento do rádio, a informação e a opinião eram organizadas em torno de
partidos políticos, sindicatos, Igrejas. A chamada opinião pública difusa se
expressava através de jornais, de posições políticas claras e com corpo
restrito de opinadores.
Com
o rádio, houve uma explosão de novas formas de opinião. A velha ordem se
esboroa e, em seu lugar, entra o caos abrindo novas possibilidades políticas,
das quais se valem novas lideranças e novos atores.
Assim
como nos anos 20, a recente onda fascista global foi precedida pela
desorganização do mercado de opinião com as novas tecnologias de informação e a
explosão das redes sociais.
Peça 2 – o papel da Veja
e de Roberto Civita
No
caso brasileiro, há um fenômeno que acelerou a radicalização: o papel da mídia,
liderada por Roberto Civita e pela Veja que, a partir de 2005, inaugura o
jornalismo de esgoto, a guerra implacável contra um inimigo fabricado, com uso
recorrente de fakenews embalados pelo discurso de ódio, seguindo o modelo do
australiano Rupert Murdok.
As
bestas das ruas começam a ser alimentadas pela própria cobertura midiática.
Nesse
início de processo, o grande modelo do novo-velho jornalismo que emerge foi
Olavo de Carvalho. É nele que os primeiros cultivadores de ódio da mídia vão se
espelhar, na adjetivação virulenta, nos bordões, nos alvos da esquerda, nos
métodos de manipulação dos argumentos.
Nao
adianta pretender minimizar sua atuação. Desde os anos 90, ao lado das igrejas
evangélicas, foi o único agente político com visão de futuro, percebendo os
movimentos subterrâneos que se formavam e entendendo o papel fundamental da
formação política para o enfrentamento de ideias. Algo do qual PT, PSDB, Igreja
Católica abdicaram. Sem recorrer aos recursos da salvação divina, Olavo
conseguiu dar vida a um mundo anti-científico, supersticioso, vingativo que,
cooptando um exército de zumbis, o transformou no brasileiro mais influente do
seu tempo
Peça 3 – o ovo da
serpente do mensalão
A
semente da politização e início da escalada fascista no Judiciário nasceram e
foram alimentados na Procuradoria Geral da República, com a parceria entre o
PGR Antônio Fernando de Souza, seu sucessor Roberto Gurgel e seu colega,
ex-procurador, e Ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Joaquim Barbosa no
caso conhecido como “mensalão”.
Ali
inaugura-se a aliança Judiciário-mídia que aniquila com os limites impostos
pelos códigos e pelos princípios de direito individual, que sustentavam o pacto
democrático pós-Constituinte de 1988. Nos anos seguintes, essa invasão dos
bárbaros, demolindo qualquer vestígio de civilização, encontraria sua mais
perfeita tradução no corneteiro Luis Roberto Barroso anunciando o novo
Iluminismo, a refundação do país, enquanto bigas selvagens esmagavam direitos,
rasgavam a Constituição e demoliam o custoso trabalho de reconstrução social
pós-Constituinte.
Com
todas suas manipulações, a Lava Jato chegou a fatos concretos, de corrupção e
de financiamento de campanha. Já o “mensalão” se baseou em provas falsificadas,
manipuladas pelo trio Souza, Gurgel e Barbosa: o suposto desvio de R$ 75
milhões da Visanet, que nunca ocorreu, e a manipulação da chamada teoria do
domínio do fato, provocando a indignação do seu próprio autor, o alemão Claus
Roxin.
Antes
da Lava Jato, um parecer da Pinheiro Neto, dos maiores escritórios de advocacia
do país, atestou que a verba da Visanet havia sido totalmente aplicada nas
campanhas do cartão. Posteriormente, um relatório técnico da Polícia Federal
confirmou o fato.
Em
determinado momento, tentou-se centrar o desvio na chamada “bonificação de
volume” – sistema criado pelos grupos de mídia para remunerar agências de
publicidade pelas campanhas divulgadas. Quando se constatou que o maior
beneficiário das campanhas da Visanet eram as Organizações Globo, voltou-se ao
mote original.
Ali
ficavam claras as intenções da própria cúpula do Ministério Público Federal de
começar a manipular investigações e denúncias para se firmar como poder
político de cunho conspiratório. E conferia-se a falta de tradição democrática
e institucional do país. A semente do golpismo já estava entranhada na
corporação, e não apenas nos Ailton Beneditos da primeira instância.
O
ovo da serpente foi gestado naquele julgamento. Uma leve exceção no punitivismo
do Supremo, a discussão dos embargos infringentes, fez com que a mídia
direcionasse o ódio do populacho contra o Ministro Ricardo Levandowski
Todo
o know futuro de parceria com a mídia, do discurso diuturno do ódio, da
sincronização da escandalização com eventos políticos, visando interferir nas
eleições municipais, de manipulação das leis, das teorias jurídicas, do código
penal, de intimidação dos recalcitrantes, foi testado naquela
julgamento. Tudo isso potencializado pela cobertura intensiva das
audiências do STF, revelando personagens toscos e deslumbrados, como o então
presidente do STF Ayres Brito, e a submissão da corte aos urros da
rua. Ali se formatava o direito penal do inimigo.
Antônio
Fernando de Souza aposentou-se da PGR ganhando um mega contrato de advocacia
com a Brasil Telecom, de Daniel Dantas, personagem que ele livrou do
“mensalão”, ao atribuir o financiamento de Marcos Valério aos desvios da
Visanet. Abria-se, pelo exemplo e pela blindagem, um caminho que seria seguido
no futuro por outros colegas: o de se valer do trabalho no MPF para abrir novas
oportunidades profissionais.
Como
instituição que defende a revisão da Lei da Anistia e a Justiça de Transição,
aguarda-se ansiosamente o momento em que a PGR e o MPF joguem luz sobre esses
episódios em uma futura comissão da verdade. O MPF foi peça central no desmonte
da democracia brasileira. E o STF o convalidador, ao abrir mão de sua
responsabilidade de defender a Constituição e as leis.
Peça 4 – a trégua do
sucesso de Lula
A
crise mundial de 2008 promoveu uma trégua na guerra interna. Paradoxalmente o
Brasil foi beneficiado. A crise promoveu uma desvalorização cambial que segurou
a escalada desastrosa de apreciação do real no segundo governo Lula. Pelo rumo
dos déficits comerciais, não fosse a crise, a crise externa explodiria antes do
final do ano
Ao
mesmo tempo, eclodiu em toda intensidade uma até então impressentida
genialidade política de Lula. A condução que deu ao combate à crise, a maneira
como se conduziu nas negociações internacionais, lideradas por Celso Amorim, o
pacto social que juntou grupos empresariais, mercado e movimentos sociais,
deram ao país um protagonismo inédito no mundo e transformaram Lula no
estadista mais respeitado do planeta. Durante algum tempo, passou-se a ilusão
de que o país finalmente se civilizara, que a política se equilibraria entre a
centro-esquerda e a centro-direita, sem movimentos radicais, como nas
democracias europeias (que se supunha) consolidadas.
Mas
o antipetismo crescia e estava claro, para quem tinha olhos para ver – não foi
o caso nem de Lula, nem do PT, nem de Dilma – que, ao primeiro sinal de crise,
se colocaria em marcha, novamente, a máquina de desestabilização política
inaugurada pelo “mensalão”.
De
certo modo, o “mensalão” foi uma benção, um alerta sobre as vulnerabilidades
jurídicas e políticas do governo e do PT. Mas o sucesso posterior do governo
Lula cegou o governo.
Peça 5 – a Lava Jato e o
impeachment
A
Lava Jato já foi suficientemente esmiuçada nos últimos anos. Desde as
manipulações de delações, de sentenças, como foi o caso do TRF4 aumentando a
pena de Lula para impedir a prescrição.
Nesse
ponto, o fascismo encontrou sua mais perfeita tradução na bandeira
anticorrupção. O antipetismo foi tão virulento e cego que permitiu o desmonte
da engenharia brasileira, a eliminação de centenas de milhares de empregos, o
aprofundamento visceral da crise, que já vinha sendo alimentada pela queda nos
preços das commodities e pela gestão econômica desastrosa de Dilma Rousseff, e
na implantação da chamada democracia mitigada – uma imagem suave para o estado
de exceção implantado no país. O impeachment arrebentou definitivamente com a
ordem constitucional, tendo como pontas de lança cristãos novos do estado de
exceção, como Luis Roberto Barroso e Luiz Edson Fachin, um PGR, Rodrigo Janot,
que lisonjeava o PT, enquanto poder, e que se tornou rapidamente seu algoz
quando os ventos mudaram.
Àquela
altura, o Judiciário já tinha mostrado sua verdadeira cara. A proliferação de
novos partidos e a radicalização nas redes sociais ganharam adeptos em todo o
sistema judicial. Assim como nos movimentos de rua, o proselitismo, as redes
sociais, os grupos de WhatsApp desnudaram uma corporação com instintos tão
primários quanto as massas ululantes.
Uma
pesquisa, ainda hoje, mostraria uma maioria assustadora de juízes,
desembargadores e procuradores alinhados com o bolsonarismo, mesmo com as
demonstrações diárias de um movimento moralmente doentio, politicamente
ameaçador, como foi o fascismo italiano e as primeiras movimentações do
nazismo.
A
pá de cal na democracia veio com o esvaziamento programático do PSDB e sua
adesão ao discurso de ódio, através das manifestações, especialmente, de
Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Aécio Neves e Aloysio Nunes. Ali ocorreu
um processo de autodestruição da segunda perna na qual se sustentava o sistema
partidário.
Peça 6 – a custosa
redenção
Por
outro lado, a visão da bocarra sinistra do bolsonarismo, suas sucessivas
declarações de guerra à mídia, o corte nas verbas publicitárias e o hálito
peçonhento, imoral, doentio, somado à derrota do petismo – esvaziando o álibi
do antipetismo – permitiu um relaxamento na ordem unida.
A
extrema crueldade com que a mídia tratou o casal Lula, com a casa invadida, a
cama revirada, a condução coercitiva, a própria morte de Mariza Silva, de
repente foi substituída por uma reação contra as manifestações indignas dos
bolsonaristas, a começar do filho Eduardo, no recente episódio da morte do neto
de Lula.
Antes
disso, a mídia de opinião começou a permitir gradativamente manifestações
progressistas de alguns jornalistas. A razão era simples. O público viciado em
violência, que ela ajudou a construir, estava definitivamente nas mãos das
redes sociais. Restava-lhe voltar ao público mais seletivo, consumidor de
opiniões plurais e civilizatórias.
Aliás,
é curioso como se dá esse endosso tácito a uma opinião relativamente mais
plural. Os jornais começam a se permitir notas críticas, em relação ao
pensamento selvagem dos Bolsonaro, manifestações tímidas em relação aos abusos
contra direitos humanos. Os primeiros jornalistas saem da toca e passam a
inovar no discurso da última década – defendendo temas civilizatórios. A
repercussão motiva outros jornalistas. E, assim, tenta-se voltar ao pluralismo
dos anos 90, em um momento em que o modelo jornal está em crise mundialmente.
O
que virá daqui por diante é uma incógnita.
Não
haverá saída fora da pacificação da sociedade brasileira. E a pacificação passa
pelo fim da perseguição implacável a Lula. Trata-se de questão central, que
jamais será abraçada pelo bolsonarismo.
O
movimento civilizatório é crescente. Não se sabe se a ponto de encorajar o STF
a colocar um fim na perseguição a Lula. Recorde-se que na reunião de Bolsonaro
com os chefes de outros poderes, para discutir a crise venezuelana, os dois
únicos endossos partiram do inenarrável David Alcolumbre, presidente do Senado,
e de Dias Tofolli, presidente do STF. Nem os militares, nem Rodrigo Maia,
presidente da Câmara, apoiaram a aventura.
Não
se tenha dúvida de que o país precisará bater no fundo do poço, antes de
começar o rearmamento moral – assim como a humanidade só encontrou um período
de paz relativamente mais duradouro depois do desastre da Segunda Guerra e do
nazismo.
A
dúvida é sobre o tempo para se atingir o fundo do poço. Os Bolsonaro parecem
uma cloaca sem fundo.
PS
– Devido ao seu comportamento recente, de defensor relevante e corajoso do
estado de direito e das garantias individuais, deixo de mencionar o papel
central de Gilmar Mendes no período anterior.
GGN