A tragédia
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que levou ao suicídio do
reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo é ilustrativa desses tempos tormentosos
que o país atravessa, com o punitivismo entrando em todas as áreas e abrindo
espaço para os tipos mais doentios e desequilibrados.
Os jornais
cobriram a tragédia burocraticamente, tratando o volume de recursos
fiscalizados – R$ 80 milhões dos cursos de educação à distância – como se fosse
a corrupção final. E estabelecendo relações de causa e efeito com o suicídio,
não permitindo o direito da dúvida ao reitor, mesmo depois de morto. Afinal, os
que recebem a pecha de corrupto não tem direito nem à morte digna.
No entanto,
é um episódio exemplar, de como o punitivismo criou uma nova legião, os agentes
de controle, os templários da nova ordem, pessoas cuja métrica de avaliação é o
rigor sem limites, não distinguindo pequenos delitos de grandes crimes, não
entendendo outra forma de punição que não a da destruição total do inimigo.
Os órgãos de
fiscalização e de repressão assumiram tal influência que passaram a se imiscuir
em vários setores da vida do país, trazendo consigo altas doses de intolerância
e de pensamento policialesco e abrindo espaço para personalidades
desequilibradas, a verdadeira banalização do mal praticando a crueldade com a
segurança de quem tem o Estado atrás de si.
Nos últimos
tempos, começou a se disseminar a figura do corregedor da Universidade federal.
Ali, plantou-se o ovo da serpente, do poder externo se sobrepondo ao da comunidade.
Em geral, as
universidades padecem de problemas sérios de gestão. Muitas vezes pesquisadores
competentes são transformados em chefes de departamento, sem nenhuma
experiência nem paciência para lidar com problemas administrativos. Criadas
para permitir buscar outras fontes de recurso, muitas vezes as fundações não
têm a devida transparência na prestação de contas. Por outro lado, há um enorme
cipoal burocrático que torna mais difícil ainda a gestão nas universidades e
transforma o mero exercício contábil de prestação de contas em um inferno sem
fim.
Em vez de
aprimoramento nas formas de controle e de induzir as universidades a buscar
gestores profissionais, decidiu-se pelo caminho burocrático, de criar uma
corregedoria, figura esdrúxula, cujo titular responde administrativamente à
reitoria e funcionalmente à CGU (Controladoria Geral da República). Trocaram a
gestão pelo espírito policial. Some-se o punitivismo de juízes emulando Sérgios
Moros, procuradores imitando a Lava Jato e delegados da PF sendo delegados da
PF, e se terá a síntese da tragédia atual e das que ainda estão por ocorrer.
O corregedor policial
A figura
central da tragédia da UFSC é o corregedor Rodolfo Hickel do Prado.
Foi Hickel
quem solicitou o afastamento do reitor, que encaminhou as denúncias à Polícia
Federal e ao Ministério Público Federal e, segundo rumores que correm por lá,
instruiu uma professora a gravar uma conversa com o reitor.
Figura
estranha à Universidade, Hickel assumiu o cargo no ano passado, indicado pela
reitora que saía. Imediatamente tratou de se transformar em um poder autônomo,
colocando-se acima da reitoria e das demais instâncias administrativas, um
comportamento que refletia, no microcosmo da Universidade, o clima persecutório
que tomou conta do país, e o poder apropriado pelos cabeças-de-porta-de-cadeia
ganhando um status até então inimaginável.
Alguns
conflitos com o Centro Acadêmico do Centro Tecnológico da Universidade deixaram
claro esse comportamento de Hickel.
Houve dois
episódios iniciais envolvendo estudantes.
Um, mais
grave, foi de uma aluna que falsificou provas. Abriu-se um processo
administrativo, que é julgado pelo colegiado do curso. A aluna foi suspensa por
oito meses.
O segundo
incidente foi uma cola, uma molecagem de um estudante, já reprovado, que copiou
parcialmente o trabalho de um colega. O caso também foi apreciado pelo
colegiado e o aluno punido com 30 dias de suspensão.
O Centro
Acadêmico reagiu, julgando a segunda punição por demais severa e entrou
com recurso e o caso foi para o Conselho da Unidade, espécie de 2a instância.
Houve um parecer mantendo a punição.
A reação do
corregedor foi típica de um perfil psicológico já estudado: se não punir
exemplarmente o aluno, hoje é a cola, amanhã estará roubando e traficando.
No dia 16 de
outubro, o CA da Produção publicou nota do Facebook onde dizia não concordar
com o parecer. Na nota, apontavam denúncias de alunas sobre assédio sexual na
sala de aula.
Quatro dias
depois, os alunos receberam ofício do Chefe de Departamento solicitando que
fossem apresentados nomes. Os alunos suspeitaram que havia intenção de abafar o
escândalo. Como estava em fim de ano letivo, as alunas não queriam deflagrar
nada antes de encerrado o período.
Nesse
ínterim, continuava em andamento o primeiro caso, da aluna que falsificou as
notas. No dia 1o de novembro estava agendada reunião com a aluna e o
advogado, para acontecer na sala da professora presidente da Comissão, no
Centro Tecnológico.
O local foi
alterado a pedido do corregedor.
Terminada a
reunião, o corregedor chegou até os alunos do CA e começou a ameaça-los
explicitamente. Dizia que estavam espalhando calúnias contra os professores.
Exigia nomes. Os alunos explicaram que as colegas estavam esperando terminar o
semestre para avançar com as denúncias.
Na 6a feira,
a presidente do CA recebeu SMS intimando-a a se apresentar na corregedoria.
Presentes na sala, apenas ela e o corregedor. Foi pressionada de todos os modos
para entregar nomes. A moça permaneceu firme na postura de só entregar após
encerramento do ano letivo.
Na semana
seguinte, começou o terremoto. Mais de 100 alunas passaram a receber
intimações, no meio das aulas, para que se apresentassem na corregedoria.
Algumas das intimações interromperam aulas com provas de cálculo, o terror dos
politécnicos.
O critério
adotado pelo corregedor foram os cliques na nota do Facebook. Todas as alunas
que “curtiram” a nota foram intimadas e submetidas a métodos policialescos.
Para uma das primeiras convocadas, Hickel informou haver denúncia de cola em
sala de aula. A ameaça desestabilizou-a por inteiro. Ai o corregedor explicou
que era brincadeira.
No total,
foram intimados mais de 200 alunos, obrigando o CA a contratar um advogado para
entrar na história. Criou-se um clima de terror amplo, com o entorno dos alunos
entrando em pânico com as ameaças.
O advogado
abriu denúncia no Comitê de Ética da Universidade, para fugir do cerco do
corregedor. Era nítido para os alunos que sua intenção era abafar o caso e
transformar os alunos em réus. No auge do terror, os alunos procuraram o reitor
Cancellier. O reitor recebeu-os prontamente, ligou para o corregedor, que foi
até à sala.
- Olha,
Rodolfo, você não tem poder coercitivo. Se alguém não atender a essa chamada,
você não terá nada a fazer.
O corregedor
sentiu-se desautorizado. Depois, circularam pela Universidades queixas de
diversas pessoas sobre os problemas criados recorrentemente pelo corregedor,
que atropelava procedimentos e não seguia os ritos da Universidade.
Certa vez,
por conta própria Hickel chegou a afastar um professor de suas atividades. O
chefe de gabinete da reitoria precisou retificar a medida, que havia sido
publicada no Diário Oficial.
Essa
sucessão de episódios ampliou o fosso entre o corregedor e a reitoria.
Pouco
depois, foi apresentada a denúncia ao MPF e à Polícia Federal. Ali, começava a
ser montada a tragédia.
A delegada
Erika Marena, personagem do filme sobre a Lava Jato, fez o pedido de prisão
preventiva e, no momento em que ocorreu, toda a imprensa de Florianópolis já
estava a postos. Como sempre ocorre nesses casos, o MPF foi a reboque. Sem
acesso aos autos, o procurador da República André Bertuol endossou
burocraticamente o pedido. E a juíza Janaína Cassol Machado aquiesceu com a
gana de carnívoros famintos.
Como não
havia celas na PF, os prisioneiros foram submetidos a um amplo ritual de
humilhação. Despidos, colocados em uniformes de presidiários, algemados e
transportados para o presídio estadual. Em geral, , em Florianópolis, apenas
dois tipos de personagem tiveram tratamento similar: traficantes e um
empresário que respondia a mais de 60 processos. O empresário conseguiu
responder aos processos em liberdade.
Em todo
caso, a delegada Erika, o procurador Bertuol, a juíza Janaína, o próprio
corregedor Hickel são personagens menores. O grande personagem é o espírito
punitivista desses tempos de cólera, e uma imprensa sensacionalista, totalmente
dissociada de princípios civilizatórios básicos, que acabou conferindo a mentes
perturbadas o poder inaudito de assassinar reputações.
A morte
física do reitor foi apenas um acidente de percurso. E os protagonistas, não
mais que de repente, perderam a atração pelos holofotes.
Do GGN