Dez de maio
de 2017: o dia da vergonha. O dia em que o processo penal do espetáculo (nos
dizeres de Rubens Casara) atingiu seu ponto máximo. Foi a demonstração de que o
uso e a destruição da imagem de um ser humano (presumidamente inocente), para o
deleite de uma plateia enfurecida pela desinformação generalizada espalhada
diariamente pela grande mídia – movida unicamente por seus interesses
empresariais –, em manifesta contrariedade ao que dispõe o art. 221, I, da
Constituição Federal ¹, não encontram limites.
Nos últimos
dias, os veículos de comunicação têm dispensado quase que 24 horas diárias de
sua programação para divulgar o conteúdo de delações (que nem provas são) que
supostamente incriminariam o principal réu da famosa ação penal. As informações
e opiniões recorrentes dos grandes conglomerados midiáticos são todas no
sentido da culpa inequívoca do acusado. Para eles, a condenação é questão de
tempo. Não importam as provas, não importam os direitos ao contraditório e à
ampla defesa; nada disso importa.
É nítida a
intensão da mídia em manter a atenção da dita “opinião pública” (como se menos
de dez famílias donas das maiores empresas de comunicação pudessem
representá-la) nesse caso, pois, assim, tira-se o foco da destruição – a todo
vapor – dos direitos sociais e trabalhistas levada a efeito pelo governo
ilegítimo que se apossou do poder. Manter a população anestesiada, acreditando
que a questão mais importante para o país é a acusação contra Lula é
conveniente, para que os retrocessos intentados pelos atuais poderes da
república (com iniciais minúsculas mesmo) não sejam percebidos pelos mais
prejudicados.
Voltemos à
operação.
Costumeiramente,
operação é um nome dado a atividades policiais. Segundo nosso ordenamento
jurídico, Polícia, Ministério Público e Judiciário cumprem papéis diversos na
persecução penal. Se essas três estâncias agem conjuntamente, o Estado de
Direito é enfraquecido. Se todos estão engajados em comprovar teses
acusatórias, não há fiscalização mútua, própria de toda atividade estatal. Bem
por isso, o Sub-Procurador Geral da República Eugênio Aragão defende a tese de
que forças-tarefas como essa são inconstitucionais. E parece que tem razão.
O caso Lula,
para uma análise séria e imparcial das práticas ilegais que passaram a ser
adotadas no país, é emblemático. Outras hipóteses de arbítrio também poderiam
ser citadas, como o da condução coercitiva de um jornalista para que divulgasse
suas fontes (cujo sigilo é garantido constitucionalmente) ou o do empresário
que ficou preso mais de seis meses preventivamente – perdendo emprego,
casamento e convivência com a filha recém-nascida – para depois ser absolvido
pelo Tribunal Regional Federal (apesar de isso acontecer cotidianamente com os
clientes preferidos do sistema de justiça criminal) e tantos outros.
Mas para
Lula, negou-se a existência do Estado de Direito. Negou-se a ele – e a sua
família – a condição de cidadão, o que é gravíssimo.
A divulgação
para a imprensa de conversas telefônicas – que nenhuma importância tinham para
o processo –, entre o réu e a Presidente da República, entre ele e seu advogado
e até mesmo entre sua esposa e um filho, foi uma das primeiras amostras do que
estava por vir. Se dúvidas ainda há sobre a ilegalidade de tais providências,
uma rápida leitura dos artigos 8º, 9º e 10 da Lei n. 9.296/96 espanca qualquer
dúvida. O artigo 8º diz que deve ser preservado o sigilo das diligências,
gravações e transcrições da interceptação, o artigo 9º estabelece que a
gravação que não interessar à prova será inutilizada, e o artigo 10 prevê como
crime quebrar segredo de Justiça de interceptações telefônicas, cominando pena
de 2 a 4 anos de reclusão. Desnecessário recordar a opinião do falecido
ministro Teori Zavascki sobre isso.
O espetáculo
da condução coercitiva do acusado, sem que tivesse sido intimado anteriormente
para depor, é outra demonstração do afastamento das regras processuais no feito
criminal em comento. A condução coercitiva é permitida somente para o
“ofendido” (art. 201, § 1º, do CPP) ou se, “regularmente intimada, a testemunha
deixar de comparecer sem motivo justificado” (art. 218 do CPP). Não há margem
para interpretação. Nada, rigorosamente nada, existe no ordenamento jurídico
pátrio que permita uma condução coercitiva como as que vêm sendo realizadas. Se
agentes públicos podem violar as leis, por que os investigados e acusados não
podem?
Tantas
arbitrariedades fizeram com que o réu perdesse sua esposa de forma triste.
Graças à fúria persecutória que não enxerga seres humanos a sua frente, os
últimos dias dela foram dos mais infelizes. É uma pequena amostra do que o
Estado Penal (na expressão de Loic Wacquant) pode causar aos selecionados como
inimigos.
Com relação
aos abusos cometidos pela autointitulada “operação”, é importante lembrar da
opinião de juristas do quilate de Celso Antonio Bandeira de Mello (Professor
titular de direito administrativo da PUC-SP), para quem ela “está sendo
conduzida com violação aos princípios fundamentais do Estado de Direito”²; de
Fábio Konder Comparato (Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP), que
a conceitua como um “acúmulo de ilegalidades”³; e até mesmo para o grande
jurista italiano Luigi Ferrajoli, que disse, no Parlamento italiano, que a
operação lava-jato não busca a verdade, mas sim “o consenso da opinião pública”
(além de dizer que o processo de impeachment contra Dilma Rousseff foi
“insensato e infundado”4).
Os direitos
e garantias fundamentais devem estar à disposição de todos, inclusive de nossos
adversários e inimigos (Lênio Streck5). Enquanto não enxergarmos o outro como
uma extensão de nós mesmos, a tendência é afundarmos cada vez mais no
voluntarismo daqueles que se julgam ungidos por uma força superior para salvar
o país, mas, não obstante, nos estão levando para o fundo do poço.
Calar ante
essa tragédia, e consequentemente compactuar com ela, é intolerável.
Gustavo
Roberto Costa - Promotor de Justiça em São Paulo. Membro fundador do Coletivo
por um Ministério Público Transformador e membro do Movimento LEAP-Brasil –
Agentes da Lei contra a Proibição.
¹ Art. 221.
A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos
seguintes princípios:
I -
preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;
2 Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=UK32VLUvdEs
3 Disponível
em: http://correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=11515%3A2016-03-21-23-38-30&catid=72%3Aimagens-rolantes&Itemid=151
5 http://www.conjur.com.br/2017-mai-08/streck-clamor-ruas-ou-constituicao-casos-dirceu-palocci-bruno
Do DCM