Tradicionalmente
a esquerda política se entende como portadora da visão política do povo e
entende que a eventual não adesão ideológica desse povo aos valores
políticos que o beneficiariam como decorrente de uma alienação política que
provem da própria dominação. Já dizia Marx que as ideias dominantes numa
sociedade são as ideias da classe dominante, razão porque o voto dos oprimidos,
pela própria razão de que são oprimidos é comumente um voto conservador. A
“alienação política” é parte integrante do problema que deve ser solucionado.
Historicamente
a esquerda se entende, portanto, como força emancipadora, cuja missão é
justamente a de enfrentar a dominação política da direita e de contribuir para
a emancipação do povo, entendido aliás como o protagonista das transformações
sociais.
Teoricamente
um golpe de Estado, como o atual, é a ocasião incontornável para a compreensão
de fenômenos difíceis de serem percebidos em tempos de normalidade política,
fenômenos que, no entanto, poderão ter contribuído para viabilizá-lo, razão
porque a “autocrítica” não é nenhum tipo moderno de haraquiri e sim um
componente importante do processo de aprendizagem política, cujo principal
benefício é o de evitar que o erro cometido se repita.
Tudo
muito simples, exceto se tivermos alguém em cima de quem jogar a culpa, papel
que ocupa a figura mitológica do pobre de direita, o bode expiatório perfeito.
É
bom nos precavermos porque o fascismo, que produz uma espécie de redemoinho que
termina por envolver contingentes gigantescos da sociedade, muito além do que
poderíamos imaginar, é um fenômeno que envolve sempre a satanização de um
terceiro, responsabilizado, então, por todos os males da sociedade. Hoje a
esquerda está sendo satanizada, agora o mitológico “pobre de direita”.
É
fato histórico muito conhecido que, desde sempre, a direita no Brasil
responsabiliza e pune os pobres, sobretudo os negros, pelas mazelas sociais as
mais diversas, como a violência, as más condições de saúde e higiene, a feiura
das ruas, a ignorância, etc.
Atenção,
o fascismo, nos estende a sua ideologia totalizante e totalitária a todos e
essa se amolda a ambientes culturais bastantes variados, como um camaleão que,
sem perder a forma, toma a cor de onde está.
Vamos
reconhecer também que diferentemente das camadas médias mais cerebrais, o povo
se politiza pela experiência vivida do projeto de sociedade e se despolitiza
por sua ausência. Os nordestinos, por exemplo, são leais a Lula em virtude de
que o a experiência do Projeto de Sociedade foi mais clara para eles que saíram
da miséria mais profunda aos milhões.
Em
contraste com o caráter cerebral da politização da classe média, a politização
do povo é visceral. Essa politização não é inferior por não ser cerebral, ao
contrário, ao que parece ela tende a ser mais profunda e mais difícil de ser
revertida pelo fato de que não está sujeita ao convencimento das narrativas
circenses, pois fala de uma verdade experimentada e vivida e entende que o discurso
que não a reconhece é que é manipulatório e mentiroso. A esquerda das camadas
médias vive um universo bizantino onde as ideias são fugidios pirilampos.
Tempos
de autocrítica, onde falhamos? Entendo que falhamos em não ter oferecido a
contingentes ainda mais expressivos do nosso povo a experiência visceral que os
governos Lula e Dilma ofereceram aos nordestinos.
O
que significa isso? Que jamais poderíamos sob a alegação da responsabilidade
estadual ter lavado as mãos da humanização das polícias que continuam matando
negros. Que jamais poderíamos ter negligenciado com a desumanização do sistema
carcerário onde se encontram presos jovens sem culpa formada muitos
efetivamente inocentes em convivência impiedosa com os criminosos mais
violentos, locais onde experimentam o inferno. Significa que deveríamos ter
envidado os nossos melhores esforços para aniquilar a violência nas periferias
onde nasce, vive e morre o nosso povo. Que deveríamos ter com maior vigor
incorporado essas periferias à contemporaneidade, ao acesso à cultura, à
estética urbana, ao esporte e ao lazer; que deveríamos ter assegurado a essas
comunidades condições dignas para velar seus mortos, pois muitos ainda têm que
ser velados em casa, na sala de 6 metros quadrados, dentre inúmeras outras coisas.
Quando
sinalizo isso entre amigos, é comum que haja reações, como se isso significasse
que não fizemos nada. Não se trata disto. Significa que erramos.
É
evidente, por exemplo, que essa experiência visceral, juntamente com a
cerebral, foi experimentada por milhares de jovens nos IFs pelo Brasil a fora e
eles evoluíram como os cidadãos altivos que deveriam ser. É evidente que a
renda melhorou. É evidente que a desnutrição infantil quase desapareceu. Sei de
tudo.
Mas
eu sei também que a mãe que teve o seu filho injustamente preso e que lá na
prisão vive o impublicável, ou aqueles que continuaram tendo dificuldades para
obter condições mínimas de dignidade numa vida pesada e difícil para conseguir
um internamento, uma cirurgia ou um medicamento, talvez não tenham conseguido
enxergar, apesar do muito que foi feito, as mudanças qualitativas capazes de
produzir o salto de consciência que os nordestinos foram capazes de dar, porque
ali esse fenômeno libertário se exprimiu visceralmente (comida na mesa) com maior
clareza relativa provavelmente porque as condições de miséria eram piores.
O
“pobre de direita” é antes de tudo uma chaga que nos responsabiliza. É ele, na
verdade, em sua terrível situação de desamparo e inconsciência que aponta para
nós.
Do
GGN