Marcelo
Camargo/Agência Brasil
“É
urgente desarmar Gilmar Mendes”, escreve constitucionalista
O
Supremo converteu-se em gabinete regulatório da crise política brasileira. Não
há impasse político no país que lá não chegue, quer na esfera criminal, quer na
eleitoral, parlamentar ou constitucional. Com maior ou menor competência,
clareza e inventividade, o tribunal, quando não se omite, tem definido as
regras do jogo. Aos atores políticos implicados cabe obedecê-las.
A
obediência, contudo, não é um dado que se possa presumir, mas uma meta a se
conquistar. Essa conquista é rodeada de incerteza. Em casos com tamanha
voltagem política, nos quais o tribunal busca disciplinar conflitos e sancionar
atores com vultosos estoques de poder, o espectro da desobediência, explícita
ou velada, torna-se palpável. Há incentivos para resistir ao STF. Cabe ao
tribunal antecipá-los, neutralizá-los, minimizá-los.
Como
pode um tribunal minimizar esses incentivos e conquistar autoridade? Nem o
Direito Constitucional comparado nem a história judicial brasileira oferecem
uma receita para essa pergunta. Sabe-se que a fórmula, seja qual for, não pode
prescindir, por um lado, de argumentação transparente que costure uma
jurisprudência constitucional digna desse nome; por outro, de uma sensibilidade
de conjuntura, uma gestão aguçada de seu capital político. São duas
tarefas que o
STF não desempenha com destreza: a ingovernabilidade
de suas práticas solistas, já diagnosticada por tantas pesquisas empíricas
na última década, é a síntese de um tribunal
ancorado na individualidade de seus ministros. Comportamentos
propriamente institucionais e decisões que conjuguem a primeira pessoa do
plural não são visíveis ali.
Uma
corte poderosa não é aquela que recebeu amplos poderes da Constituição, mas
aquela que se faz obedecer. Sua imagem precisa estar acima de qualquer
suspeita. A ciência política que estuda cortes constitucionais pelo mundo sabe
que os atributos da legitimidade e da independência não são gratuitos nem
estáveis. Flutuam conforme as circunstâncias, o comportamento judicial e as
reações às decisões tomadas. Por isso mesmo, a legitimidade depende de contínua
administração e do bom desempenho do tribunal. Entre os adversários da
credibilidade institucional do STF está, curiosamente, um dos seus próprios
ministros: sobreviver a Gilmar Mendes é um desafio do cotidiano do STF. Requer
do tribunal uma estratégia de redução de danos. Mas o STF permanece rendido e
incapaz de controlar as contínuas quebras do decoro judicial.
A política de Gilmar Mendes
As
relações de Gilmar Mendes com a política não são novas, nem causam mais
espanto. O ministro transita com desenvoltura, em ambientes públicos e
privados, com correligionários partidários. Gilmar Mendes, juiz, tem
correligionários. Políticos que orbitam no seu círculo lhe pedem favores no
tribunal, lhe consultam sobre problemas jurídicos pessoais ou sobre os rumos
constitucionais do país, em encontros privados fora do tribunal ou telefonemas.
Negociar, prometer apoio, organizar jantares em casa, frequentar jantares dos
outros. O ministro é presença constante nos “círculos de comensais de banquetes
palacianos”, nas palavras de Rodrigo Janot. Corteja o poder político, e o poder
político o corteja. Há reciprocidade.
A
história é extensa, mas não custa recapitular alguns exemplos de promiscuidade.
Michel Temer, Aécio Neves, José Serra, Blairo Maggi, Eduardo Cunha são algumas
das autoridades públicas que lhe frequentam, antes e depois que tiveram suas
reputações gravemente atingidas por denúncias de corrupção.
O
episódio mais recente relaciona-se a Aécio Neves, até então presidente do PSDB
e segundo colocado nas eleições presidenciais de 2014. Aécio telefonou para
Gilmar Mendes, um dia depois de este ter suspendido o depoimento do senador à
Polícia Federal. Pediu que o ministro telefonasse
para o senador Flexa Ribeiro e que este votasse o projeto de lei
contra o abuso de autoridade. Sem maiores solenidades ou esforço
argumentativo, a assessoria do ministro publicou nota: “O ministro Gilmar
Mendes sempre defendeu publicamente o projeto de lei de abuso de autoridade
(…), não havendo, no áudio revelado, nada de diferente de sua atuação pública.
Os encontros e conversas mantidas pelo ministro Gilmar Mendes são públicos e
institucionais”.
Há
um mês Gilmar Mendes também conversou com Joesley Batista, da JBS. A conversa
ocorreu no Instituto de Direito Público, escola de direito fundada pelo
ministro. Como sua família vende gado para a JBS no Mato Grosso, foi alegada a
suspeição num caso em que o Supremo julgava a cobrança do Funrural, fundo
composto por contribuições de produtores rurais à previdência. O ministro
defendeu-se: “Votei contra os meus próprios interesses econômicos, pois minha
família terá de pagar a contribuição atrasada”. Admite, portanto, que
teria interesses na causa, mas não se enxerga como suspeito.
A
antiga relação de amizade que Gilmar Mendes tem com Sérgio Bermudes, já
descrita, em 2010, por longa
reportagem da revista Piauí [1], também
rendeu notícias nas últimas semanas. A concessão de habeas corpus para Eike
Batista, cliente de Sérgio Bermudes, sócio de sua esposa, rendeu pedido de
impedimento apresentado pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, com
base em artigo do Código de Processo Civil e do Código Penal. Em outra nota
pública de sua assessoria, o ministro defende-se na mesma lógica: “Cabe lembrar
que no início de abril o ministro Gilmar negou pedido de soltura do empresário
Eike Batista (HC 141.478) e na oportunidade não houve questionamento sobre sua
atuação no caso” [2].
A normalização de Gilmar Mendes
Não
nos escandalizamos mais com os escândalos de Gilmar Mendes. O juiz integra a
cozinha partidária como um par. A sociedade brasileira se deixou anestesiar e
passou a vê-lo como patologia menor de um sistema político que não consegue
separar o público do privado. Os fatos abaixo não geraram mais do que algumas
notas na imprensa. São uma pequena amostra dessa anestesia:
(i) Em
fevereiro de 2015, Gilmar
Mendes telefona ao governador do Mato Grosso, Silval Barbosa, depois de a
polícia ter executado mandado de busca e apreensão na casa do governador. Manda
um “abraço de solidariedade” e promete conversar com Toffoli;
(ii) Fora
de agenda pública, em março de 2015, encontra-se com
o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, quando este já era investigado pela Operação
Lava Jato;
(iii) Encontra-se
novamente, em julho de 2015, com
Eduardo Cunha para discutir o impeachment de Dilma Rousseff;
(iv)
É organizador de Seminário
Luso-Brasileiro de Direito Constitucional, em março de 2016, realizado em
Portugal pelo Instituto
de Direito Público, que contou com a presença de Aécio Neves e outros
políticos (no calor da crise política, Michel Temer, confirmado, cancelou sua
participação em cima da hora). O evento ocorreu numa hora de alta tensão da
Lava Jato e seus reflexos no processo de impeachment, logo depois que Gilmar
Mendes, em liminar monocrática, invalidou nomeação de Lula para o ministério de
Dilma. O
mesmo IDP, meses antes (12/2015), inaugurava escola
de direito em São Paulo com presença de muitos políticos, como Michel
Temer, recebidos no palco por Gilmar Mendes. Michel Temer, mais uma vez,
estará presente num seminário do IDP nos dias 20 e 21 de junho, evento
patrocinado pela Caixa. Poucos dias antes, o TSE, sob a presidência de Gilmar
Mendes, reinicia o julgamento que põe em risco o mandato do presidente.
(v)
Almoça, em março de 2016, com José
Serra e Armínio Fraga. Horas mais tarde, julga no STF o rito do
impeachment, com declarações inflamadas contra a corrupção de um partido
político que não lhe agrada, que pouco tinham a ver com o mérito daquele
processo. Questionado
sobre o episódio, respondeu: ‘Não estou proibido de conversar com Serra,
nem com Aécio”.
(vi)
Alguns jantares: a) em
sua própria casa, com pecuaristas, o Ministro da Agricultura Blairo Maggi,
e o vice-presidente
Michel Temer, que manifestava ali a vontade de que o impeachment de Dilma
fosse antecipado (2/8/2016); b) com
o presidente Michel Temer, no Palácio do Jaburu, para uma “conversa da
rotina” (22/1/2017); c) em sua própria casa, numa homenagem a José
Serra, investigado na Lava Jato, com presença de Michel Temer (16/3/2017);
(vi)
Michel Temer, alvo de processo que pode levar à sua cassação no TSE, presidido
por Gilmar Mendes, indica primo
deste para diretoria de agência reguladora (14/3/2017).
Sempre
que questionado, Gilmar Mendes afirma que sua isenção é inabalável, como se
fosse esse o problema. Despista. Pinça alguns exemplos de decisões que tomou,
supostamente, contra os próprios interesses ou contra os próprios amigos. Esses
exemplos seriam as provas incontestáveis de sua integridade. Tergiversa. E se,
num determinado caso, a solução juridicamente correta fosse aquela que
favorecesse o interesse de seu aliado? Da mesma maneira que uma decisão que
contrarie interesses de seu amigo advogado (e de sua própria esposa, sócia do
advogado) não prova sua honestidade, uma decisão favorável aos mesmos
interesses tampouco provaria sua desonestidade.
A
mira da resposta está errada. Seu equívoco é intencional e confunde
imparcialidade objetiva e subjetiva: sabe que os mecanismos legais de suspeição
e impedimento não servem para garantir o juiz honesto, mas para assegurar a
imagem de imparcialidade da justiça e afastar qualquer desconfiança quanto à
legitimidade da decisão. É preciso parecer honesto e imparcial, como a mulher
de César. Trata-se de regulação elementar de conflitos de interesse a
partir de parâmetros republicanos. Gilmar Mendes não respeita parâmetros
republicanos.
Suas
respostas insistem nessa falácia. No último não-escândalo, Aécio Neves lhe
telefona para pedir um favor político. Há detalhes que não são meros detalhes.
Um ministro de corte suprema trava conversa privada com senador da república
para tratar de um projeto de lei em tramitação. Um senador investigado por
corrupção solicita ao ministro que, na sua condição de ministro, ligue para
outro senador para pedir apoio. Que o ministro faça, em outras palavras, articulação
parlamentar. O pedido é bem recebido. Quando, em sua defesa, diz que seus
posicionamentos sobre a respectiva lei já eram públicos e conhecidos, quer
obscurecer a distinção primária entre o público e o privado, entre a pessoa
privada e a pública, entre o juiz e o parlamentar.
A
normalização de Gilmar Mendes não é só de Gilmar Mendes. Já não conseguimos ver
diferença relevante entre os parâmetros de conduta de um juiz, de
um político e de um cidadão comum. E paga-se
caro por isso. O ministro fez de si um expoente daquilo que,
retoricamente, mais abomina: uma
corte bolivariana. Ele mesmo, por um irônico lapso, pinta o seu
auto-retrato: “Tudo que vem desse eixo de inspiração bolivariano não faz
bem para a democracia”.
A pedagogia de Gilmar Mendes
Há
quem eduque pelo exemplo. Gilmar Mendes educa pelo contraexemplo. Oferece uma
ética negativa: uma longa lista sobre o que não fazer. Filósofos que navegam
pela ética aplicada e formulam parâmetros para lidar com dilemas morais de
nossa vida cotidiana são muitas vezes agnósticos e minimalistas sobre a decisão
correta a tomar. Diante da complexidade do contexto e das nuances de cada caso,
sentem-se mais seguros em apontar o que não fazer. Essa é a contribuição
pedagógica de Gilmar Mendes: sua conduta é uma cartilha da anti-ética.
Nem
sempre é fácil saber qual a conduta judicial correta em situações dilemáticas
dentro e fora da corte, dentro e fora dos autos, dentro e fora da interpretação
constitucional. Há imensa riqueza no comportamento de Gilmar Mendes. Seus
contra-ensinamentos são valiosos.
Os
atos listados acima não são deslizes isolados ou eventuais. Trata-se de
sistemática e periódica desconsideração de princípios de prudência e respeito à
liturgia do cargo, indispensáveis à construção da imparcialidade e
respeitabilidade da atividade judicial. Juízes não estão proibidos de ter amigos,
de ter vida social intensa, de viverem uma vida normal. No entanto, a ética da
atividade judicial pede vigilância a certos comportamentos, um senso de
responsabilidade pelo ethos de sua instituição. Nada excessivamente oneroso.
Gilmar
Mendes não é “polêmico”, nem “controverso”, nem “corajoso”. Eufemismos
jornalísticos apenas obscurecem o problema. O Direito não é indiferente a
antiética de Gilmar
Mendes: seu comportamento é ilegal.
A responsabilidade por Gilmar Mendes
Apesar
de Gilmar Mendes, o Supremo ainda sobrevive. Sua sobrevivência como ator
político relevante, contudo, não está garantida. O grau de relevância do
tribunal já está sob teste. Ou, num jargão da ciência política, “sob estresse”.
O ministro é um dos principais artífices da ingovernabilidade do STF: joga
contra a imagem da instituição, contra o plenário e contra seus
colegas juízes. Violenta a imparcialidade, moeda volátil da qual uma corte
com tamanha missão tanto depende.
O
colegiado é corresponsável pelos danos causados por Gilmar Mendes. O ministro
não é só um problema “para” o Supremo, mas um problema “do” Supremo, que
permanece omisso. Entrega ao ministro um cheque em branco. Não bastasse ter
adversários demasiado poderosos para enfrentar, o Supremo ainda faz vista
grossa para a conduta destrutiva de um de seus membros. Um inimigo íntimo como
esse exige coragem e articulação para enfrentá-lo. O
plenário deixa-se apequenar na cumplicidade, e deve prestar contas com
a democracia brasileira por isso. O Supremo não pode se submeter a esse
pacto suicida. Sabe disso.
O
que fazer para se proteger de Gilmar Mendes? Um passo modesto, para quebrar a
inércia normalizadora da sua conduta, seria reconhecer a suspeição do ministro
em tantos casos em que sua persona política não tem como não se confundir com
sua persona judicial. Por mais que o ministro prometa ser isento. Por mais que
seja sincero.
Um
dos maiores desafios de desenho institucional de uma corte suprema é prover
formas de auto-regulação coletiva dos desvios individuais. Num órgão colegiado
desse tipo, a colegialidade é indispensável. Não há instância superior que o
limite. Talvez por insolúvel do ponto de vista procedimental, o desafio não foi
inteiramente equacionado nem pelos Federalistas americanos nem por arquitetos
das cortes constitucionais do séc. XX. A leniência institucional diante do
desvio individual pode ser uma escolha racional quando a instituição permanece
acima de qualquer suspeita. No Supremo, esse não é mais o caso. O espectro da
desobediência ronda a corte faz tempo.
Uma
corte constitucional precisa, em tempos de normalidade, acumular capital
político para proteger a constituição nas situações-limite da política. De sua
habilidade para desarmar dinamites depende a qualidade e longevidade da
democracia. É urgente desarmar Gilmar Mendes.
——————
[1] Em
carta à revista Piauí, reagindo às denúncias feitas pela reportagem sobre
a relação sua e de sua mulher com Sérgio Bermudes, Gilmar Mendes respondeu:
“Aliás, ela era tão somente gestora organizacional do escritório do dr. Sergio
Bermudes, mais um entre tantos advogados que atuam em processos sob a minha
relatoria que examino com a mesma isenção.”
[2] Pedido
de impedimento de Gilmar Mendes por Rodrigo Janot diante do fato de que sua
esposa é sócia de Sérgio Bermudes (10/5/2017).
Conrado Hübner Mendes é doutor em Direito pela Universidade de Edimburgo e
doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), na qual é
professor de Direito Constitucional. Texto publicado originalmente no Jota.
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