Foto
Stringer/Reuters
A
condenação judicial do ex-presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva,
representa um novo e grave capítulo do movimento golpista
empresarial-midiático-judicial, que destituiu ilegitimamente uma presidente
eleita e rasgou a Constituição de 1988.
No
momento, as consequências imediatas ao ex-presidente não ultrapassam os limites
do aborrecimento e da vexação persecutória. Para o sistema político e demais
círculos da institucionalidade brasileira, delineados na transição da ditadura
à democracia representativa e normatizados na Carta Constitucional de 1988, os
efeitos potenciais beiram a pá de cal.
As
atitudes em resposta à arbitrária decisão do Judiciário foram heterogêneas,
envolvendo amplíssimo leque de opiniões e predisposições políticas no País.
Marcadas tanto por comemorações deliberadas, cínicas e irrefletidas, quanto por
gestos de solidariedade a Lula. Em relação aos últimos, manifestações
atravessadas por exaltações acríticas, como também por ponderações que não
deixavam de lastimar as suas opções políticas.
Nesse
sentido, considero que tende a imperar nas avaliações sobre o ex-presidente um
misto de satanização, mistificação e ilusão, infrutíferos à compreensão da
relevância histórica e política de Lula. Igualmente, tendentes a obscurecer as
suas acentuadas limitações.
Em
primeiro lugar, vale chamar a atenção para o fato de que a reflexão política e
histórica apoiada exclusivamente no comportamento e nas escolhas de um
indivíduo tem nula capacidade explicativa. O contexto que enreda o sujeito, sua
formação política e suas redes simbólicas e materiais de sociabilidade, tem
grande peso na ação individual.
Lula
tem quase 40 anos de atividade política exercida no centro da cena nacional. O
ex-presidente não deixa de constituir um amálgama de diferentes tempos, lutas
sociais, expectativas e cosmovisões políticas brasileiras, também influenciadas
pelos distintos panoramas internacionais.
Como
líder carismático que é, a trajetória de Lula tem sido caracterizada como a de
um depositário de esperanças, anseios e vicissitudes dos seus seguidores. A sua
força ou fraqueza, lembraria a teoria sociológica de Max Weber, é, em boa
medida, expressão dos atributos e predicados daqueles que investem em Lula a
capa do carisma.
Tomando
como premissa a feliz expressão utilizada para intitular a cinebiografia do
ex-presidente (dirigida por Fábio Barreto), “Lula, o filho do Brasil”, destaco
abaixo alguns traços da longa trajetória política de Lula, com vistas a
assinalar algumas congruências, características, dilemas e limitações que
entrecruza(ra)m o personagem e o País.
1)
Lula entrou no cenário nacional a partir da liderança sindical desempenhada na
São Paulo das multinacionais. Um estado que alcançou hegemonia cultural,
política e econômica no País, após o golpe de 1964.
2)
Era integrante de uma aristocracia operária. O capital estrangeiro concebido
como variável importante para a geração de oportunidades de ascensão social dos
trabalhadores. Nenhuma problematização acerca do perfil de atuação dos chamados
investimentos externos na economia brasileira. A ditadura promoveu o ambiente
ideológico entreguista favorável a tal percepção, precisamente por expurgar os
nacionalistas do pré-1964, na seara partidária e nos movimentos sociais.
3)
Esse é um elemento decisivo do DNA político de Lula. Atravessa toda a sua
trajetória. O filme de Leon Hirszman (“ABC da greve”, 1979) é muito
ilustrativo. Não apenas demonstra a capacidade retórica e política de um
tremendo galvanizador de vontades. Expressa também uma veia corporativista, de
quem estava integrado ao sistema, na sua margem esquerda, sindical: o resultado
das negociações com integrantes da Fiesp e do governo civil-militar foi a
elevação dos salários dos metalúrgicos, mas assentada na determinação de
reduções tributárias às empresas do setor.
4)
Nesse período de abertura, ao mesmo tempo em que Lula encontrava-se submetido à
vigilância dos aparatos de poder, possuía espaço na grande imprensa para
posicionar-se de maneira messiânica como líder da classe trabalhadora.
5)
Para o regozijo da Fiesp, das multinacionais, da burguesia doméstica e de
muitos intelectuais uspianos, motivado por razões diferentes, a grande imprensa
igualmente reservava espaço para Lula tecer considerações como a que segue: “A
CLT é fruto do fascismo de Getúlio Vargas”. Pouco importava se a longa
ditadura, então em erosão, havia sido instalada exatamente para silenciar os
herdeiros políticos de Vargas.
6)
Uma teoria sociológica bastante influente, produzida na USP e operacionalizada
por meio do uso de uma vaga e controversa categoria interpretativa – o
populismo –, contribuiu para a criação da ambiência de ideias que permitiu
construir notória legitimidade ao partido nascente de Lula. Denotando claro
sabor europeizante, identificava na classe operária industrial o agente
portador das mudanças sociais no País. Com efeito, Lula era símbolo maior. Mas,
não importava se essa indústria era transplantada de fora. A questão nacional
escanteada.
7)
No curso da década de 1980, a CUT e o PT participaram ativamente da organização
e da mobilização de amplas frações da classe trabalhadora e da pequena
burguesia, na cidade e no campo. Com isso, ofereceram importante contribuição
para a reverberação e a introdução de direitos sociais na Constituição de 1988.
Seguramente, Lula despontava como voz saliente nesse processo.
8)
Acompanhados de outros setores das esquerdas, especialmente do
brizolismo, o PT e Lula deram grande colaboração na feitura de uma Constituição
que ao menos buscasse compatibilizar, de maneira contraditória, os interesses e
as aspirações dos de cima e de baixo da sociedade brasileira.
9)
Uma democracia enclausurada, nada afeita à participação popular nos processos
decisórios, foi o fruto da correlação de forças políticas nesse período.
Assegurando alguns direitos coletivos e sociais na carta magna e mantendo a
CLT, contudo um pacto desigual e contraditório foi o resultado daquela
correlação de forças.
10)
Direta ou indiretamente, em maior ou menor escala, todos os principais partidos
políticos eram condicionados àquele ordenamento sistêmico. O PT não escapou à
regra, como ficou bastante evidenciado posteriormente, nos anos de
lulopragmatismo à frente do governo federal.
11)
O eleitoralismo foi prevalecendo, com a acomodação natural ao sistema político,
à pauta midiática e aos contornos econômicos delimitados pela inserção
subordinada, periférica e dependente do País na divisão internacional do
trabalho.
12)
Especialmente no período de boom das exportações de bens primários –
mais ou menos entre 2005 e 2012 –, o ex-presidente Lula foi alçado à posição de
líder maior do sistema brasileiro capitalista subalterno e dependente.
Expressão máxima, mais avançada, da conciliação de classes sustentada pela
Constituição e da operacionalização de frutos econômicos nos marcos da
dependência externa.
13)
Com isso, o grande capital nacional e internacional auferiu lucros
extraordinários, sendo compatibilizados com a geração de empregos dotados de
baixos salários e parca densidade educacional. O capitalismo periférico
preservado, mas legitimado com oportunidades crescentes de trabalho assalariado
e consumo popular.
14)
A fome, “retrato mais agudo do subdesenvolvimento”, como diria o bom e velho
geógrafo Josué de Castro, combatida, entre outros, por intermédio de políticas
oficiais de transferência de (pequenos) rendimentos. No interior sistêmico dos
principais partidos, sobretudo Lula e o PT poderiam ter essa (tímida, mas
importante) sensibilidade social.
15)
Grande respaldo popular de Lula no exterior, em particular na América Latina.
Quem acompanhou o noticiário internacional e os posicionamentos de lideranças
de nosso subcontinente pôde ter visto. Quem viajou até poucos anos atrás para
alguns desses países, presenciou a imagem extremamente positiva de Lula entre
nossos coirmãos.
16)
Um fenômeno que não era/é gratuito, em função da abertura da política externa
brasileira ao Sul global, adotada por Lula e, um pouco menos, por Dilma,
conferindo respaldo e credibilidade às ações de governos progressistas da
região.
17)
Mesmo submetido aos parâmetros do capitalismo periférico e subordinado, o
lulopragmatismo tentava de maneira “silenciosa” alternativas creditícias e
comerciais ao centro capitalista: a participação na formação dos BRICS foi
medida ousada, que pode(ria) incidir na correlação de forças internacionais.
Especialmente deslocar o peso do FMI e do Banco Mundial enquanto fonte de
empréstimos e condicionamentos.
18)
Contudo, não foram levadas a cabo medidas econômicas e políticas internas que
dessem sustentação a uma participação mais sólida do Brasil no bloco.
19)
Por conseguinte, a adoção da tática do apassivamento popular, apostando nos
mecanismos tão saudados da “governabilidade” possível, isto é, restringindo a
participação política das classes trabalhadoras e de estratos da pequena
burguesia ao ritual eleitoral, sob o influxo de negociações inter e
intraelites.
20)
Nenhum caráter abertamente conflitivo frente ao grande capital nacional e
internacional. Em meio à crise econômica derivada do refluxo das exportações, a
presidente Dilma (PT) acenava para a agenda dos adversários conservadores, com
apoio de Lula. Uma saída melancólica do governo, sem tensionar com a estrutura
de poder, sem fazer qualquer apelo às camadas trabalhadoras e medianas. Sem
qualquer medida de governo que oferecesse respostas à crise, pela via do
atendimento das necessidades populares. Até hoje, aposta em algum milagre por
cima, negociado.
Eis
alguns traços muito esquemáticos da trajetória entrecruzada de Lula, seu
partido e do Brasil das últimas décadas. Lula é um ator político complexo,
ambíguo, controverso. Muito distante das costumeiras simplificações
reducionistas, das avaliações unilaterais. Talvez consista na expressão mais
saliente da solução de compromisso constitucional, hoje violada.
À
esquerda do PT, particularmente entre os partidos que nasceram do seu
desgarramento, as habituais denúncias de “traição” não convencem. Revelam muito
mais as sofridas ilusões depositadas em Lula e no PT, por setores ditos
socialistas que se desvincularam do PT. Como também o caráter colonizado,
sobretudo eurocêntrico, das esquerdas brasileiras atuais.
Nos
quadros de uma nação periférica, subdesenvolvida, convenhamos, um líder nascido
da contraditória articulação entre questão social e apoio irrefletido ao
capital estrangeiro, desde o início deveria indicar significativas limitações
para as esperanças mudancistas. Talvez fosse a consciência política possível
durante anos, entre as esquerdas, os movimentos sociais e sindicais. Deve, no
entanto, urgentemente, ser superada. É ingenuidade.
Nos
termos da tensão mais recente, ou a CLT ou a Fiesp (testa de ferro de
multinacionais). Não há conciliação possível. Perdeu a CLT, “fascista”, como
antigamente Lula e o petismo afirmavam. O grande capital, que visa o incremento
da superexploração do trabalho, agradece.
A
ruptura institucional em vigor, com o golpismo galopante, representa aguda
guerra de classes imprimida pelas burguesias doméstica e forânea. A visão e a
esperança mítica do petismo, em nossos dias, em torno da “salvação” nacional
por meio de uma hipotética eleição presidencial de Lula, são componentes, no
mínimo, questionáveis e ilusórios.
A
habilidade negociadora do ex-presidente de nada serve no atual cenário. Ao
menos, não para responder aos desafios da intensificação da dependência, de um
neocolonialismo atroz, impostos pela agenda reacionária do bloco golpista.
O
Brasil corre o sério risco de desintegração territorial, de alienação absoluta
de qualquer laivo de soberania. E as burguesias associadas, de fora e de dentro
da Nação, já demonstraram que esse é o seu projeto. A crise capitalista
internacional, há alguns anos, em especial exemplificada pela atuação da
“polícia” no mundo – os EUA –, responde, como alternativa, à violação
sistemática do princípio da autodeterminação dos povos. Soberanias nacionais no
Terceiro Mundo agredidas – com recursos hard ou soft –,
almejando a expansão dos processos de mercantilização/comoditização.
Absolutamente de tudo.
Por
outro lado, as frações menores do capital nacional, setores da média e pequena
burguesia, que tanto demonizam o ex-presidente, irrefletidamente jogam para
escanteio o único líder que, mantendo os contornos do capitalismo periférico,
atenderia aos seus interesses. Romper com as amarras do subdesenvolvimento,
então, isso seria pedir muito a esses estratos de classe. Ciosos demais em
garantir privilégios mesquinhos e portadores de um ultrajante colonialismo
mental americanófilo. Servos voluntários do império.
Isso
posto, na atualidade, a questão não é saber se Lula é “demônio” ou “salvador”.
Não é uma coisa, nem outra. É saber se ele será completamente descartado pelo
sistema em um avassalador processo neocolonizador, em que não há espaço para
Lula, ou se será reincorporado, via solução de compromisso que mantenha a
agenda neoconservadora prevalecente, com pequena atenuação, para resgatar um fiapo
de credibilidade ao moribundo sistema político, institucional e econômico em
processo de reconfiguração. Para pior.
Nesse
caso, tenderia a exercer o papel de uma espécie de Perón dos anos 1970. Sem
força, nem energia. Subjugado e rendido integralmente ao sistema. Por isso,
entendo que o ex-presidente Lula e o seu partido já cumpriram os seus papeis
históricos.
Para
o Povo Brasileiro a única saída é organizar-se, formular e repercutir uma
agenda antissistêmica, que vá além das linhas do subdesenvolvimento e do
capitalismo dependente e periférico. Trata-se de uma luta de média e longa
duração.
No
momento, como ficou bastante evidente na fácil supressão das conquistas
trabalhistas históricas, os agentes da mudança não apareceram. Mesmo a
capacidade de resistência popular encontra-se frágil. Anos a fio de amplo
apassivamento e desmobilização – sobretudo das centrais sindicais – não são
superados em um estalar de dedos.
Ademais,
os dilatados e a cada dia crescentes subemprego e desemprego, além de um
sistema individualista e neoliberal de crenças, diuturnamente veiculado nos
meios de comunicação, têm corroído duas matérias-primas centrais para as
esquerdas, os movimentos sociais e a defesa dos interesses nacionais e
populares: a solidariedade e a cooperação. Sem elas, não há mudança plausível.
A emergência de alternativas e dos sujeitos da mudança irá requerer paciência,
organização, mobilização, tempo e, em elevada medida, descolonização mental.
Roberto
Bitencourt da Silva – cientista político e historiador.
GGN