O advogado Pierpaolo Cruz Bottini, professor de Direito da
USP e membro do escritório que defende empresários da JBS, publicou artigo no
Conjur, no último dia 5, mostrando, com base em teses de diversos autores, que
"não parece haver lavagem de dinheiro no caso Lula".
Segundo Bottini, a sentença do ex-presidente no caso triplex,
dada pelo juiz Sergio Moro, é motivo de "controversa" no meio
acadêmico e jurídico.
Ao analisar a condenação, ele destacou que o conceito de
lavagem de dinheiro está atrelado à dissimulação do produto do crime,
justamente porque os envolvidos tentam se afastar do bem.
E, no caso do triplex, não há nenhuma tentativa nesse
sentido. O apartamento pertence à OAS e mesmo que tenha sido destinado a Lula,
não poderia haver lavagem de dinheiro sem dissimulação. Isso, hipotéticamente.
Porque a realidade dos fatos é outra: o imóvel nunca foi transferido ao
ex-presidente, mas Moro usou a "não-transferência" para sustentar o
crime de lavagem.
No artigo de Bottini só não ficou esclarecido que em nenhum
momento o ex-presidente Lula fez uso do imóvel considerado objeto de lavagem.
A suposta lavagem de dinheiro no
caso triplex*
A confirmação da condenação do ex-presidente Lula, pelo
Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por corrupção passiva e lavagem de
dinheiro tem sido objeto de intensos debates em todos os fóruns jurídicos ou
leigos, no país e no exterior. Discute-se a competência do juiz, a
insuficiência de provas da corrupção, a necessidade de demonstração do “ato de
ofício”, o momento da execução da pena, dentre outros temas relevantes.
O presente artigo tem por objeto analisar um ponto específico
da sentença condenatória mantida pelo TRF: a lavagem de dinheiro. Lula foi
condenado por corrupção por supostamente receber um apartamento tríplex no
Guarujá de uma construtora.
Também foi condenado por lavagem de dinheiro porque a
transferência do apartamento teria ocorrido de maneira sub-reptícia, com a
manutenção da titularidade formal do bem em nome da construtora, com o objetivo
de ocultar e dissimular o ilícito (sentença condenatória, item 305).
A questão é controversa. Lula foi condenado pela modalidade
de lavagem de dinheiro prevista no art. 1º, caput, da Lei 9.613/98: “ocultar ou
dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou
propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente,
de infração penal.”
A infração penal antecedente, que gera o produto a ser
lavado, no caso Lula, é a corrupção passiva. Segundo o Código Penal, tal crime
se caracteriza por “solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou
indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão
dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem” (CP, art.317). Ou
seja, é necessário solicitar ou receber algum benefício ilegítimo – no caso
Lula, um apartamento no Guarujá, segundo a acusação.
Não se discute aqui a existência ou não de provas das
imputações. Esse não é o objeto das presentes reflexões. Partamos da premissa
da acusação, de que o apartamento foi recebido pelo ex-presidente, para que a
análise jurídica não seja tomada pela disputa a respeito do conceito de prova,
indício ou dos critérios de sua valoração.
A punição à lavagem de dinheiro supõe a ocultação da origem
ilícita do bem, ou seja, o distanciamento entre o produto e o crime que lhe deu
origem. Em estudo específico sobre o tema com BADARÓ, apontamos que “a primeira
fase da lavagem de dinheiro é a ocultação (placment/ colocação/ conversão).
Trata-se do movimento inicial para distanciar o valor de sua origem criminosa,
com a alteração qualitativa dos bens, seu afastamento do local da prática
antecedente, ou outras condutas similares”. [1]
O Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras)
explica que, “para disfarçar os lucros ilícitos sem comprometer os envolvidos,
a lavagem de dinheiro realiza-se por meio de um processo dinâmico que requer:
primeiro, o distanciamento dos fundos de sua origem, evitando uma associação
direta deles com o crime; segundo, o disfarce de suas várias movimentações para
dificultar o rastreamento desses recursos; e terceiro, a disponibilização do
dinheiro novamente para os criminosos depois de ter sido suficientemente
movimentado no ciclo de lavagem e poder ser considerado "limpo".”[2]
Na mesma linha, BALTAZAR JR.: “a criação desse tipo penal
(lavagem de dinheiro) parte da ideia de que o agente que busca proveito
econômico na prática criminosa precisa disfarçar a origem dos valores, ou seja,
desvincular o dinheiro de sua procedência delituosa e conferir-lhe uma
aparência lícita, a fim de poder aproveitar os ganhos ilícitos, considerado que
o móvel de tais crimes é justamente a acumulação material” (BALTAZAR, José
Paulo, Crimes federais, 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012).
Se o crime antecedente é descrito como corrupção de uma
empreiteira para beneficiar Lula, a lavagem de dinheiro implicaria a prática
atos para distanciar a titularidade do imóvel tanto da empreiteira como do
beneficiário da vantagem, a fim de ocultar qualquer relação entre o político e
a empresa que possa levantar suspeitas sobre a origem ou a natureza da
transação que resultou na transferência do imóvel.
Nesse contexto, a manutenção do apartamento em nome da
empresa acusada de corrupção, enquanto o político supostamente corrompido
usufrui dele não parece ser um ato de ocultação ou dissimulação.
Não existe um distanciamento do bem em relação aos agentes do
crime. Ao contrário, a permanência do imóvel em nome da empresa enquanto o
agente político o utiliza é ato que evidencia a prática do delito, que faz
transparecer a proximidade entre corruptor e corrompido, que revela a
existência de uma relação de fato que demandaria explicações.
Assim, se o delito de lavagem na modalidade ocultação
“requiere um estado de oscuridad o confusión tal, que haga difícil el
estabelecimiento de lazos entre los bienes y su raiz delictiva”[3], não parece
ser possível classificar como ocultação o fato de um funcionário público
usufruir de um imóvel em nome do corruptor.
A retenção do bem no patrimônio do último enquanto o
beneficiário da corrupção o utiliza e dele dispõe seria prova da corrupção e
não ato de dissimulação capaz de mascarar a prática delitiva.
CARLA DE CARLI, em estudo sobre o tema, aponta como “exemplo
de lavagem de dinheiro na modalidade ocultação é o simples depósito de valores
recebidos em paga de corrupção em conta de terceiro – oculta-se a origem, a
localização e a propriedade dos valores ilicitamente havidos. A chave, aqui, é
ser a conta bancária de terceiro. Caso estivesse em nome do autor do delito de
corrupção não haveria lavagem, porque ele não estaria ocultando a verdadeira
propriedade desses valores” (Lavagem de dinheiro, Prevenção e controle penal,
p. 240).
É possível que a autora tivesse em mente afastar a lavagem de
dinheiro apenas no caso em que os bens estiverem em nome do corruptor passivo,
destinatário das vantagens indevidas. Mas o mesmo raciocínio parece possível
nos casos em que o corruptor ativo mantém o bem em seu nome, enquanto o corrompido
dele usufrui.
Não existe aqui a figura do laranja, do testa de ferro,
porque aquele que oferece a vantagem indevida é parte no crime, de forma que
não presta a dissimular nada. Seu contato com o bem o contamina, dificultando –
e não facilitando – o distanciamento deste de sua origem criminosa.
GÁLVEZ BRAVO apresenta, em sua obra “Los modus operandi em
las operaciones de blanqueo de capitales” uma vasta tipologia das técnicas de
lavagem de dinheiro, que inclui jogos de azar, contratos fictícios, uso das
mais diversas operações financeiras, atividades simuladas no mercado de valores
mobiliários, manejo de meios de pagamento pela internet, de seguro e inúmeros
outros. Nenhuma delas consiste no ato de retardar a transferência de um bem por
parte do corruptor ativo para o corruptor passivo.
Considerar a ausência da transferência do imóvel um ato de
ocultação significa reconhecer que todos os casos de corrupção passiva em que o
corruptor não transfere a vantagem indevida ao corrompido por qualquer motivo
deveriam ser punidos em concurso com lavagem de dinheiro. Não parece correto
sob o aspecto da tipicidade, nem sob uma perspectiva politico-criminal.
Por isso, não parece haver lavagem de dinheiro no caso Lula.
[1] BOTTINI, Pierpaolo e BADARO, Gustavo. Lavagem de
dinheiro. 3ª ed., p.32. Blanco Cordero, El delito de blanqueo de capitales, 3.
ed. Cap. I, 3, Caparrós, Eduardo A Fabián, El delito de blanqueo de capitales,
p. 50, Callegari, Lavagem de dinheiro, 45.
[3] GÁLVEZ BRAVO, Rafael. Los modus operandi em la
operaciones de blanqueo de capitales, 2ª ed., Barcelona: Bosch, 2017, p.46
Pierpaolo Cruz Bottini é advogado, sócio do escritório
Bottini e Tamasauskas e professor livre-docente de Direito Penal da Faculdade
de Direito da USP.
GGN