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domingo, 14 de maio de 2017

O pensamento do juiz autoritário em 14 pontos, Rubens Casara

Foto: GIl Ferreira/STF

Do Justificando. O pensamento do juiz autoritário em 14 pontospor Rubens Casara

I – Introdução
Em 1950, foram publicadas as conclusões da pesquisa conduzida por Theodor W. Adorno e outros pesquisadores, realizada nos Estados Unidos da América, logo após o fim da 2ª Guerra Mundial e a derrota dos fascistas, com o objetivo de verificar a presença naquele país de tendências antidemocráticas, mais precisamente de indivíduos potencialmente fascistas e vulneráveis à propaganda antidemocrática. Os dados produzidos na pesquisa, tanto quantitativos quanto qualitativos, não deixaram dúvida: a potencialidade antidemocrática da sociedade norte-americana já era um risco presente naquela oportunidade.

Neste breve texto, prévio à elaboração de pesquisa mais profunda sobre a tradição autoritária dos atores jurídicos, a ser conduzida pelo Núcleo de Pesquisa da Passagens – Escola de Filosofia, buscar-se-á, a partir dos caracteres da personalidade autoritária identificados por Adorno, demonstrar que eventual potencialidade fascista de juízes brasileiros é um risco à democracia no Brasil, em especial porque o Poder Judiciário deveria funcionar como guardião dos direitos e garantias fundamentais, isto é, como limite ao arbítrio em nome da democracia e não como fator antidemocrático.

A investigação segue a hipótese formulada por Adorno: que as convicções políticas, econômicas e sociais de um indivíduo formam com frequência um padrão amplo e coerente, o que alguns chamam de “mentalidade” ou “espírito”, e que esse padrão é expressão de profundas tendências de sua personalidade. No caso dos juízes brasileiros, a aposta era de que seria possível falar em uma tradição ou uma mentalidade antidemocrática, que vislumbra o conteúdo material da democracia, os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, como um obstáculo a ser afastado em nome da eficiência do Estado.

Para identificar o espírito ou a mentalidade antidemocrática, para os fins deste pequeno artigo, a proposta é de que o leitor compare artigos, entrevistas e decisões judiciais com sintomas e características identificadas por Adorno em 1950 como tendencialmente antidemocráticos.

II – Dos sintomas antidemocráticos
Em Estudos sobre a personalidade autoritária, Adorno identifica uma série de características que revelam uma disposição geral ao uso da força em detrimento do conhecimento e à violação dos valores historicamente relacionados à democracia. Na lista de Adorno estão, dentre outros:

01. Convencionalismo: aderência rígida aos valores da classe média, mesmo que em desconformidade com os direitos e garantias fundamentais escritos na Constituição da República. Assim, por exemplo, se é possível encontrar na sociedade brasileira, notadamente na classe média, apoio ao linchamento de supostos infratores ou à violência policial, o juiz autoritário tenderia a julgar de acordo com opinião média e naturalizar esses fenômenos. No Brasil, a sociedade foi lançada em uma tradição autoritária e acostumou-se, em especial após o Estado Novo de Vargas e a ditadura civil-militar instaurada em 1964, com o uso da violência em resposta aos mais variados problemas sociais. Atos como linchamentos e arbítrios policiais tornaram-se objeto de aplausos e até de incentivo de parcela dos meios de comunicação de massa, e passam a integrar o repertório de ações aceitas pela classe média e, consequentemente, por juízes tendencialmente antidemocráticos. Ao aderirem a esses valores da classe média autoritária, esses juízes abandonariam a natureza contramajoritária da função jurisdicional, que exigiria o respeito aos direitos e garantias fundamentais, mesmo contra a vontade de maiorias de ocasião, para atuar de maneira populista e julgar de acordo com a opinião média;

02. Submissão autoritária: atitude submissa e acrítica diante de autoridades idealizadas no próprio grupo. O juiz autoritário tenderia a ser submisso com desembargadores e ministros, em relação aos quais se considera inferior e a quem atribui uma autoridade moral idealizada. Essa submissão acrítica faria com que o juiz autoritário aplauda medidas administrativas tomadas por seus “superiores”, mesmo que contrárias às prerrogativas da magistratura, e reproduza acriticamente as decisões dos tribunais, desde que o prolator da decisão seja tido como do mesmo “grupo moral” a que considera pertencer. Assim, repudiaria decisões que ampliem os espaços de liberdade e incorporaria em seu repertório jurisprudencial as decisões que, mesmo contra o texto expresso da Constituição, afastam direitos e garantias fundamentais;

03. Agressão autoritária: tendência a ser intolerante, estar alerta, condenar, repudiar e castigar as pessoas que violam os valores “convencionais”. O juiz antidemocrático, da mesma forma que seria submisso com as pessoas a que considera “superiores” (componente masoquista da personalidade autoritária), seria agressivo com aquelas que etiqueta de inferiores ou diferentes (componente sádico). Como esse tipo de juiz se revela incapaz de fazer qualquer crítica consistente dos valores convencionais, tenderia a repudiar e castigar severamente quem os viola, por ser incapaz de entender a razão pela qual esse valor foi questionado. De igual sorte, não se pode descartar a hipótese de que a vida que esse juiz considera adequada, inclusive para si, é muito limitada, o que faz com que as pulsões sexuais e agressivas sejam reprimidas de tal forma que retornam na forma de violência contra todos aqueles que, por suas posturas, incitam sua ansiedade e o seu próprio medo de castigo. A grosso modo, pode-se supor que o juiz autoritário, convencido que alguém deve ser punido por exteriorizar posições que ele considera insuportáveis, expressa em sua conduta profissional, ainda que inconscientemente, seus impulsos agressivos mais profundos, enquanto tenta reforçar a crença de si como um ser absolutamente moral. Como é incapaz de atacar as autoridades do próprio grupo, e em razão de sua confusão intelectual é incapaz de identificar as causas tanto de sua frustração quanto a complexidade dos casos postos à sua apreciação, o juiz autoritário teria que, a partir de algo que poderia ser chamado de uma necessidade interna, escolher um “bode expiatório”, em regra dirigir sua agressão contra grupos minoritários ou aqueles que considera traidores do seu grupo;

04. Anti-intracepção: oposição à mentalidade subjetiva, imaginativa e sensível. O juiz autoritário tenderia a ser impaciente e ter uma atitude em oposição ao subjetivo e ao sensível, insistindo com metáforas e preocupações bélicas e desprezando análises que busquem a compreensão das motivações e demais dados subjetivos do caso. Por vezes, a anti-intracepção se manifesta pela explicitação da recusa a qualquer compaixão ou empatia. Segundo a hipótese de Adorno, o indivíduo anti-intraceptivo tem medo de pensar em fenômenos humanos e de ceder aos sentimentos, porque poderia acabar por “pensar os pensamentos equivocados” ou não controlar os seus sentimentos;

05. Simplificação da realidade e pensamento estereotipado: tendência a recorrer a explicações primitivas, hipersimplistas de eventos humanos, o que faz com que sejam interditadas as pesquisas, ideias e observações necessárias para um enfoque e uma compreensão necessária dos fenômenos. Correlata a essa “simplificação” da realidade, há a disposição a pensar mediante categorias rígidas. O juiz autoritário tenderia a recorrer ao pensamento estereotipado, fundado com frequência em preconceitos aceitos como premissas, que faz com que não tenha a necessidade de se esforçar para compreender a realidade em toda a sua complexidade;

06. Poder e “dureza”: preocupação em reforçar a dimensão domínio-submissão somada à identificação com figuras de poder (“o poder sou Eu”). A personalidade autoritária afirma desproporcionalmente os valores “força” e “dureza”, razão pela qual opta sempre por respostas de força em detrimento de respostas baseadas na compreensão dos fenômenos e no conhecimento. Essa ênfase na força e na dureza leva ao anti-intelectualismo e à negação de análises minimamente sofisticadas. Não é possível descartar a hipótese de que o juiz antidemocrático reafirma posições duras (“lei e ordem”) como reflexo tanto de sua própria debilidade quanto da natureza da função que ele é chamado a exercer. O juiz autoritário veria tudo em termos de categorias como “forte-débil”, “dominante-dominado”, “herói-vilão”, etc.

07. Destrutividade e cinismo: hostilidade generalizada somada à desconsideração dos valores atrelados à ideia de dignidade humana. Há um desprezo à humanidade de tal modo que o juiz antidemocrático exerce uma agressão racionalizada. Ou seja, o juiz antidemocrático buscaria justificações para agressões, em especial quando acreditasse que a agressão seria aceita pelo grupo do qual participa. Em meio a juízes que aceitam agressões à pessoa, o juiz autoritário busca justificativas, ainda que contrárias à normatividade constitucional que o permitam agredir;

08. Projetividade: disposição para crer que no mundo existem ameaças e ocorrem coisas selvagens e perigosas. O juiz antidemocrático acredita que o mundo está sempre em perigo e que sua função, ainda que insuficiente, torna o mundo menos selvagem. Em suas ações, contudo, vislumbrar-se-ia a projeção de fortes impulsos emocionais inconscientes. Deve-se admitir a hipótese de que os impulsos reprimidos de caráter autoritário do juiz antidemocrático tendem a projetar-se em outras pessoas, em relação às quais ele acaba por atribuir toda a culpa por pulsões e pensamentos que, na realidade, dizem respeito a ele. Se um juiz insiste em “demonizar” uma pessoa (um acusado do crime de tráfico, por exemplo) atribuindo-lhe propósitos hostis para além da conduta imputada, sem que existam provas de nada além dos fatos imputados, existem boas razões para acreditar que o juiz autoritário tem as mesmas intenções agressivas e está buscando justificá-las ou reforçar as defesas da instância repressiva pela via da projeção. Da mesma maneira, deve-se assumir a possibilidade de que quanto maior for a preocupação com a “criminalidade organizada”, o “aumento da corrupção” ou as “forças do mal”, mais fortes seriam os próprios impulsos inconscientes do juiz antidemocrático no âmbito da destrutividade e da corrupção;

09. Preocupação com a sexualidade: preocupação exagerada com o “sucesso” sexual e com a sexualidade alheia. O juiz antidemocrático teria medo de falhar no campo sexual e compensaria suas inseguranças com condutas que acredita reproduzirem a imagem do homem viril. Penas altas e desproporcionais, por exemplo, procurariam compensar a impotência, o medo de falhar e quiçá a insegurança com o tamanho do pênis. Não se pode descartar a hipótese de que juízas procurariam reproduzir a imagem do “homem viril” como forma de se afastar do estereótipo do sexo frágil. Com Adorno, pode-se apostar na força das pulsões sexuais inconscientes do sujeito na formação da personalidade autoritária;

10. Criação de um inimigo imaginário: o juiz antidemocrático, que trabalha com estereótipos e preconceitos distanciados da experiência e da realidade, acabaria por fantasiar inimigos e riscos sem amparo em dados concretos. Nessas fantasias, marcadas por adesão acrítica aos estereótipos, prevalecem ideias de poder excessivo atribuído ao inimigo escolhido. A desproporção entre a debilidade social relativa ao objeto (por vezes, um pobre coitado morto de fome que comercializa drogas ilícitas em uma comunidade como meio de sobrevivência) e sua imaginária onipotência sinistra (“capitalista das drogas ilícitas e responsável pela destruição moral da juventude brasileira”) parece demonstrar que há um mecanismo projetivo em funcionamento. No combate ao inimigo imaginário com superpoderes igualmente imaginários, os sentimentos implicitamente antidemocráticos do juiz autoritário apareceriam por meio de sua defesa discursiva da necessidade do afastamento das formas processuais e dos direitos e garantias fundamentais como condição à eliminação do inimigo e da ameaça;

11. O fiscal como juiz e a promiscuidade entre o acusador e o julgador: a confusão entre o fiscal/acusador e o juiz é uma característica historicamente ligada ao fenômeno da inquisição e à epistemologia processual autoritária. A hipótese é de que, no momento em que o juiz tendencialmente fascista se confunde com a figura do acusador, em que passa a exercer funções típicas do acusador como tentar confirmar a hipótese acusatória, surge um julgamento preconceituoso, uma paródia de juízo, com o comprometimento da imparcialidade que atuaria como condição de legitimidade democrática do julgamento. Tem-se, então, o primado da hipótese sobre o fato. A verdade perde importância diante da “missão” do juiz, que aderiu psicologicamente à versão acusatória, de comprovar a hipótese acusatória ao qual está comprometido;

12. Ignorância e confusão: uma característica da personalidade autoritária é que ela se desenvolve no vazio do pensamento. Assim, o juiz autoritário em suas manifestações deixaria claro a ignorância e a confusão acerca de conceitos políticos, econômicos, culturais, criminológicos, etc. A hipótese, nesse particular, é que se o indivíduo não sabe sobre o que se manifesta, razão pela qual substitui o conhecimento pela força em uma postura anti-intelectual, que ele disfarça como “senso prático” (“eu faço”, “eu entendo porque sou eu que faço”, “eu sei porque passei em um concurso”, etc.”), precisa preencher o vazio cognitivo com chavões, senso comum, preconceitos difundidos na classe média e estereótipos. O pensamento estereotipado, que atua em favor de tendências reacionárias (todo movimento e propaganda antidemocrática busca o ignorante e, por vezes, alcança também o “semi-formado”, aquele que tem uma formação “superior” e diplomas, mas é incapaz de reflexão porque não consegue articular as informações recebidas ou as desconsidera por acha-las desimportantes para suas metas individuais). Impressiona, ainda hoje, o grau de ignorância e confusão observado em pessoas com nível educacional formal relativamente alto. Também não se pode descartar o fato de que a ignorância e a confusão, não raro, são incentivadas e produzidas pelos meios de comunicação de massa e pela propaganda, muitas vezes direcionada a fins antidemocráticos ou pseudodemocráticos;

03. Pensamento etiquetador: o pensamento etiquetador é fenômeno conexo ao pensamento estereotipado. O fundo de ignorância e confusão, mesmo que inconscientemente, gera um quadro de ansiedade, semelhante ao estranhamento e a ansiedade infantil, o que faz com que o indivíduo recorra a técnicas que afastem essa ansiedade e orientem a ação, mesmo que essas técnicas sejam grosseiras e falsas. Os estereótipos e as etiquetas, com as quais divide o mundo e as pessoas (“homem mau”, “pessoas de bem”, “homem do saco”, “personalidade voltada para o crime”, etc.), servem ao indivíduo como um substituto do conhecimento (ou uma forma de conhecimento precária e tendencialmente falha) que torna possível que ele tome decisões e posições (tendencialmente antidemocráticas, uma vez que falta a informação que legitima as escolhas verdadeiramente democráticas). A hipótese aqui é a de que o juiz antidemocrático recorre ao pensamento etiquetador para produzir em si uma ilusão de segurança intelectual ou como forma de buscar apoio popular no meio que também só pensa a partir de estereótipos e outras estratégias de simplificação da realidade;

14. Pseudodemocracia: a personalidade autoritária, por questões ligadas à ideologia, muitas vezes, caracteriza-se por recorrer a distorções de valores e categorias democráticas para alcançar resultados antidemocráticos. Há, nesses casos, um descompasso entre o discurso oficial e a funcionalidade real. Isso ocorre, por exemplo, ao se defender práticas racistas em uma sociedade racista a partir da afirmação do princípio democrático da maioria (“se a maioria é racista, o racismo está legitimado”). A hipótese, portanto, é de que o juiz autoritário recorre ao argumento de estar atendendo às maiorias de ocasião, muitas vezes forjadas na desinformação, para violar direitos e garantias fundamentais.

III – Desafio ao leitor
Agora, cabe ao leitor para ter uma ideia do pensamento e da mentalidade dos juízes brasileiros comparar artigos, entrevistas, decisões e demais manifestações desses importantes atores jurídicos com os sintomas e caraterísticas identificados por Adorno como tendencialmente antidemocráticos.

Importante ter em mente que as características e sintomas descritos por Adorno, em regra, apresentam nexos entre si, mas se referem apenas a uma tendência. As conclusões sobre a aderência, ou não, de cada pessoa às características da personalidade tendencialmente fascista nos servem para refletir sobre a formação da subjetividade de nossa época e a responsabilidade dos atores sociais na defesa da democracia.

Rubens Casara é Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais e Juiz de Direito do TJ/RJ

Do GGN